novembro 10, 2018

UMA FACADA MUITO SUSPEITA







Por que eu desconfio de que a facada que o deputado eleito presidente da república foi uma armação? 

Bem, não existem provas, mas num país em que se condenam pessoas porque o juiz tem convicção, embora não haja provas, por que não posso ter desconfiança de que a tal faca ocorrida em Juiz de Fora não foi uma armação? E estou falando de desconfiança, não de convicção. 



Então, vamos aos fatos e argumentos: 



1. O candidato andava sempre com colete à prova de balas e, no dia e hora do atentado, no meio de uma multidão e, portanto, em situação vulnerável, usava apenas uma camiseta. Por quê? 

2. No momento do atentado, há dezenas e dezenas de celulares erguidos, filmando, além, é claro, de filmagens profissionais e de amadores, possivelmente com aparelhagem bem mais sofisticada do que simples celulares. No entanto, quando procuradas, aparecem sempre as mesmas imagens, como se feitas por uma única pessoa, como se fossem as “imagens oficiais”. Onde estão as outras imagens? Por que ninguém as publica? 

3. Dizem os especialistas que nem sempre há sangue, após uma facada. Mas nenhum? Nem uma gota? Nenhum vestígio, nas fotos publicadas do candidato sendo conduzido ao hospital, nenhuma gota. 

4. O candidato estava cercado de seguranças – oficiais, da Polícia Federal, e seguranças pessoais, contratados por seu staff. E mais: estava cercado de “apoiadores” (adotemos o termo da mídia) fanáticos, uma multidão. Pessoas – tanto os seguranças do staff quanto os tais “apoiadores” – que não são exatamente “frias” diante de uma provocação, quanto mais de um atentado. No entanto, o autor da facada não leva sequer um sopapo, não é agredido. Está bem: a PF pode ter impedido isso, mas não eram tantos agentes que conseguissem conter uma multidão enfurecida, que tentaria agredir o autor da facada. Isso, absolutamente, não aconteceu. O autor do atentado saiu incólume – e protegido – do local do crime. 

5. Logo após o atentado, um dos filhos do candidato afirmou, numa entrevista, que seu pai “tinha acabado de ganhar a presidência”, com aquele fato. Ora, numa situação de estresse e, principalmente, de incerteza de que o pai, depois de uma facada, estava vivo ou não, como alguém fala uma bobagem como essa? Estranho, muito estranho. 

6. Logo após o atentado, um dos filhos do candidato afirmou que a faca entrara doze centímetros no corpo do pai. Como ele sabia disso? Outro declarou quase ao mesmo tempo que o ferimento tinha sido superficial, que o pai estava bem. Contradições nessa hora são normais, ou não? 

7. Também a foto na maca, com o candidato sendo conduzido já no hospital, não apresenta nenhum vestígio de sangue. 

8. Por que a pressa em transferir o candidato para São Paulo, se o primeiro boletim médico não indicava nenhuma urgência e dizia mesmo que o paciente estava bem? 

9. Já em São Paulo, depois de uma (assim referida) segunda operação, por que a insistência em divulgar fotos do candidato no hospital, até mesmo fazendo pose com as mãos como se fossem armas (um gesto característico dele), quando, em situações similares, procura-se preservar o doente e publicam-se apenas fotos em ocasiões muito especiais (lembram do Tancredo Neves e a “foto oficial” com os médicos e parentes?) 

10. Por que, em nenhum momento após o fato, o candidato, conhecido por seus arroubos e raivas repentinas e ódios, não condenou de forma peremptória o autor do atentado? Ele não falou praticamente quase nada sobre o autor, sobre o fato. Nada. Estranho, muito estranho. 

11. O autor do atentado: um completo desconhecido, que alegou ter agido porque não queria que o candidato vencesse as eleições. Uma alegação frágil, para alguém tentar matar outrem, principalmente diante de um fato que podia ou não acontecer, já que, naquele momento, não se podia afirmar que ele venceria. E mais: o cara estava desempregado e, apurou-se, com poucos recursos. No entanto, hospedou-se em hotel em Juiz de Fora, tinha vários celulares em seu poder e teve conhecimento prévio da agenda do candidato, para segui-lo por alguns dias e aguardar o momento exato do atentado. 

12. Ainda o autor: de onde apareceram os seus advogados? Quem os contratou? Quem está pagando sua defesa? 

13. E mais: por que, depois de várias audiências, a justiça acabou por acatar a tese de que “desequilíbrio” do autor e suspendeu o processo? Não é estranho? 

14. O fato de ficar imobilizado e não poder continuar a campanha foi muito conveniente para o candidato: foi a desculpa perfeita para não comparecer a nenhum debate e não se expor diante de outros candidatos muito mais preparados e experientes do que ele. 

15. Durante sua permanência no hospital e, depois, em casa, fazendo campanha apenas pelas redes sociais, as fake news dispararam e alavancaram sua candidatura, sem que houvesse o menor receio de que, descoberta a falcatrua, ele tivesse de dar alguma declaração a respeito, o que foi muito conveniente. 

Concluindo: acho que a operação por que o candidato passou, aqui em São Paulo, foi verdadeira, mas era algo que já estava programado, diante de alguma doença preestabelecida, devidamente oculta pelo seu staff e, depois, pela farsa da facada. Com isso, ele se preservou de especulações sobre seu real estado de saúde e se preservou de fazer uma campanha desgastante e, principalmente, de enfrentar em debates os seus experientes opositores. 

Tudo muito conveniente. E uma jogada de mestre. Ou não?





outubro 29, 2018

CHOREMOS NOSSAS PITANGAS E PREPAREMOS A RESISTÊNCIA


 


Chorar as pitangas, de acordo com o folclorista (e não por acaso um camisa-verde dos anos trinta) Luís da Câmara Cascudo, tem a ver com expressão portuguesa “chorar lágrimas de sangue”, já que são vermelhas as nossas pitangas. Choremos, pois, nossas pitangas; façamos nosso dever de olhar o que podia ter sido e não foi; analisemos a situação e, sobretudo, preparemos nossas fileiras para o que virá, que o vento que sopra para um lado, de repente, muda. 

Estamos, claro, falando das eleições de ontem. Eles venceram. O ódio, muito bem plantado, primeiro pelos órgãos da nossa mais do que conservadora imprensa, por ocasião do golpe aliada aos movimentos bem articulados da direita hidrófoba, liderada pela FIESP do Paulo Skaf e pelo PSDB, o perdedor não conformado das eleições anteriores; mais adiante, pela fúria moralizante de juízes que julgam não pelo valor das provas nos autos, mas de acordo com suas convicções, formadas em cursos nos Estados Unidos, para orientá-los e conformá-los nos princípios de um direito que fere nossas mais caras tradições de que “in dubio pro reo”; e, mais recentemente, já em plena campanha política, pela apropriação do ódio pelo partido do candidato nazista que, em conluio com Steve Bannon e sua Cambridge Analytica, disseminou através das redes sociais algo não quantificável de fake news pregando o ódio e a destruição do inimigo, como se adversário político fosse realmente inimigo. A quem dirigiu-se todo esse ódio? Ao Partido dos Trabalhadores, o inimigo a ser vencido. 

Então, eles venceram. Venceram a batalha, mas a luta continua, para usar o jargão militar que lhes é caro. 

O que fez o PT de errado? Na minha opinião, apenas um erro cometeu o candidato do partido, durante a campanha. Quando questionado sobre se o PT devia fazer mea culpa de seus erros do passado, agiu ele como uma “madre Teresa de Calcutá”, com a lisura e a educação que lhe é própria, confessando com uma certa humildade que o partido teria cometido alguns erros, mas... etc., etc. etc. Ora, numa campanha política, não se confessam erros cometidos. O que passou passou. Vejam o exemplo, no passado, de Getúlio Vargas: depois de quinze anos de ditadura, em que perseguiu, prendeu, torturou, matou e exilou adversários e inimigos, voltou em 1950 como o grande “pai dos pobres”. “Bota o retrato do velho /bota no mesmo lugar / que o sorriso do velhinho / faz a gente trabalhar” – foi o bordão ufanista de sua campanha, uma campanha que lembra não o ditador, mas o homem com autoridade para tocar para frente o País. Devia, pois, o candidato do PT dizer que o partido não teria cometido erro algum, e sim elementos do partido, já devidamente punidos, e alguns até mesmo injustamente, teriam cometido deslizes. Quanto ao partido, sempre agiu com lisura e quando esteve à frente do governo obteve grandes realizações em prol do povo e é o que ele, candidato, pretendia resgatar: o emprego, a distribuição de renda, a saída da pobreza e independência do FMI. (A lógica é simples: partidos e entidades, sejam elas públicas ou privadas, não cometem erros ou “fazem” coisas, mas seus membros é que são os responsáveis por tudo o que de certo ou errado se faz em seu nome, tanto é que não se coloca uma empresa no banco dos réus, mas sim o seu presidente, por exemplo). 

Dizer que o PT não devia ter lançado candidato é não entender nada de política. Um partido que se preze não pode desperdiçar uma eleição, tem que tentar se reerguer, principalmente um partido que fora destroçado pelas forças do atraso e que agora precisava lutar mais do que nunca contra as forças do nazi-fascismo. E o partido conseguiu uma proeza que poucos julgavam possível: apresentar um candidato que chegou ao segundo turno e obteve um cabedal de votos que o torna praticamente invencível numa futura campanha para a presidência, daqui a quatro anos. Digo quase invencível, porque não creio no sucesso do candidato nazista. E aqui passo a dizer por quê. 

Não preciso mais traçar o perfil do candidato vitorioso: todos sabem que ele é tudo aquilo que disse durante anos e anos de boquirrotice e de disseminação do ódio a minorias, a mulheres, a tudo que não esteja na sua cartilha de militar de uniforme sujo e mal lavado. Vamos falar mais especificamente de suas promessas de campanha e de suas estratégias de governo. 

Primeiro, as estratégias de governo. Prometeu o candidato não negociar cargos. Ou seja, escolher um ministério e, consequentemente, os cargos de primeiro e segundo escalão da administração, de forma independente, sem intromissão de políticos. Ora, isso é uma armadilha que ele armou para si mesmo, por pura estupidez ou por artimanhas de campanha: se não negociar com políticos, ou seja, com o Congresso, onde não tem maioria ou, se a tiver, será uma maioria fluida, ocasional, não governa. O famigerado “centrão” e os partidos a ele ligados constituem a massa fisiológica mais ardorosa quanto a cargos e posições, quanto a benesses e barganhas com o poder, porque é dessas permutas que eles tiram os seus votos e mantêm os seus eleitores no cabresto do toma-lá-dá-cá mais abjeto. Sem essa massa amorfa e interesseira, nada se aprova no Congresso. Não se governa. Se ele, no entanto, ignorar as próprias palavras e negociar com a malta faminta, será cobrado em altos brados não só pela oposição como pela imprensa e por seus eleitores. Será a primeira decepção. Veremos qual vai ser o jogo do capitão nazista. 

Uma outra armadilha suspensa sobre sua garganta, dentre muitas: o discurso da honestidade. Ora, a malta que o rodeia está faminta. E faminta das benesses do poder e de tudo o que ele pode proporcionar em termos econômicos. Poder atrai dinheiro e dinheiro dá poder, o círculo vicioso não será quebrado, principalmente porque o capitão nazista tem filhos, e esses filhos – que também estão na política – não irão deixar passar a oportunidade para terem o seu quinhão entre os mais poderosos – e mais ricos. A ocasião, neste caso, não faz o ladrão, porque ele já vem feito. Vejam o exemplo do ex-governador do Rio de Janeiro: filho de um homem probo, um intelectual, não teve nenhum pejo em assaltar com vontade os cofres públicos, para ostentar riqueza e poder ao lado de ricos e poderosos em Paris e onde mais houvesse riqueza e poder. Alguém acha que os “filhotes” do capitão vão resistir aos apelos da ganância e da ostentação? Só se você acredita no chupa-cabras. 

Muitas outras armadilhas – promessas de campanha – estão suspensas sobre a cabeça e poderão estraçalhar as pretensões do capitão, diante das dificuldades que ele terá, em termos políticos, de implantar medidas que, no ardor de uma campanha, podem parecer a solução para inúmeros problemas, mas no dia a dia da dura realidade irão encontrar paredões intransponíveis não só na oposição, mas também em interesses contrariados de grupos até mesmo ligados ao próprio governo. Exemplo? Reforma tributária. Outro exemplo: reforma da previdência. E mais: enxugamento da máquina administrativa, com a redução de ministérios. Logo verá que menos ministros, menos poder de barganha. Menos poder de barganha, mais concessões. Mais concessões, menos governo. E por aí vai. 

A aposta é: quanto meses durará o governo do capitão nazista, se ele se impuser da forma e do jeito que ele pensa e quer se impor: sem negociação, aprovando medidas e mais medidas de mudanças mal programadas e mal preparadas, governando por medidas provisórias que só serão aprovadas com concessões. Será que ele cairá na tentação do populismo barato do Jânio Quadros ou no populismo extremista e totalitário do Collor? Qualquer que seja o caminho, o desastre será inevitável. 

Aliás, o desastre desse governo que ainda não começou é inevitável. Se ele cumprir todas as promessas com sucesso, convulsionará o País, atiçará movimentos populares que acordarão forças terríveis contra ele. Se ele não obtiver sucesso, da mesma forma despencará na avaliação do povo e cairá de maduro, sem ninguém que chore por ele as pitangas que nós, da oposição, choramos agora. E teremos um réquiem de consequências terríveis. Ou seja: não há saída, perdemos todos, por enquanto. A esperança estará sendo renovada para se reverter a situação com, aí sim, a apresentação de novo do candidato recém-saído das urnas com uma quase consagração. Uma campanha bem-feita, e eles, os nazistas, é que chorarão as pitangas. Para alívio de um povo que não merece ter sido enganado.


outubro 13, 2018

REFLEXÕES SOBRE BANCOS E CAPITALISMO



(Bernard Buffet (1928-1999) -LEnfer-de-Dante-Lucifer-1976)
 

Partamos da seguinte ideia: um almoço num restaurante qualquer. O prato que você pedir tem um preço e neste preço você está pagando, a grosso modo: 

· o custo de produção de cada um dos ingredientes 

· o custo da colheita desses mesmos ingredientes 

· o salário dos agricultores que os plantaram e colheram 

· o lucro do dono da terra 

· a embalagem e o transporte desses ingredientes 

· o lucro do intermediário na sua comercialização 

· o transporte dos centros distribuidores para o comércio 

· o lucro do comerciante, aí incluídos todas as suas despesas, inclusive salários dos seus funcionários 

· os impostos devidos aos municípios, aos estados e ao governo federal 

· o custo de construção do restaurante ou o seu aluguel 

· as despesas de manutenção do estabelecimento 

· os salários dos empregados do estabelecimento (cozinheiros, garçons etc.) 

· os impostos que o estabelecimento paga para funcionar 

· os equipamentos do estabelecimento, desde fogões, geladeiras etc. até mesas, cadeiras, pratos e talheres 

· a arte de quem elaborou a receita do seu prato 

· as perdas e refugos naturais desse tipo de estabelecimento (o que você deixa no prato, por exemplo; ou os alimentos que perdem a validade) 

· o lucro do dono do restaurante 

Bem, fiquemos por aqui. Já percebeu que você está sustentando uma longa cadeia produtiva, que vai do presidente da república ao catador de lixo da rua, com sua carroça, num simples (ou não) prato de comida. Mas, essa é apenas a rede que podemos vislumbrar, ou talvez, a mais concreta, embora complexa, tão complexa que possivelmente não tenhamos elencado todos os seus componentes, nem cheguemos a percebê-la em todos os seus detalhes. Há uma outra rede ainda mais complexa e mais extensa, que é aquela que envolve o que está no seu bolso: o dinheiro, seja ele em moeda corrente ou em qualquer outra forma de pagamento. 

Na verdade, é a rede que sustenta tudo o que você faz dentro de uma sociedade de consumo como a nossa. Sim, vivemos numa sociedade de consumo. E o consumo é a sua base. E o que sustenta o consumo, reiteramos, para não deixar dúvida é o dinheiro. Dinheiro que não é meu nem seu, nem exatamente de ninguém. O dinheiro que pertence a uma entidade ao mesmo tempo concreta e abstrata, que são os bancos. 

Os bancos são algo concreto, quando você entra em uma agência bancária, feita de tijolos, aço e vidro, de móveis e máquinas e... funcionários. Local onde as pessoas vão fazer inúmeros tipos de transações. E são essas transações que tornam os bancos uma instituição abstrata: eles – os bancos – fazem o dinheiro circular pelo mundo todo, e dessa circulação retiram seus lucros. Mas não são os lucros dos bancos aquilo que mais importa. Através dessas transações, dos grandes negócios, do financiamento dos empreendimentos, da intromissão em todos os aspectos da vida humana atualmente, os bancos obtêm aquilo de que vivem e aquilo que os mantém: o poder. 

E mais: o poder dos bancos e dos financistas é que constrói, mantém e engorda o sistema chamado capitalismo. Um sistema que nos aprisiona e do qual até agora não obtivemos meios de escapar, porque está presente em todos os aspectos de nossa vida, desde o nascimento até a morte. 

Os bancos são uma criação recente na história da humanidade. Surgiram no final da idade média, no início do Renascimento. Nesses poucos mais de quinhentos anos, foram eles que urdiram a trama que sustenta o sistema capitalista que sucedeu ao sistema feudal. 

Se pensarmos friamente, sem os bancos e a urdidura capitalista, a humanidade não teria um milésimo do desenvolvimento alcançado nestes quinhentos anos. Os bancos financiaram as grandes expedições, incentivaram o comércio, a indústria, a ciência. Estabeleceram, com isso, as bases do capitalismo e propiciaram ao ser humano a possibilidade até mesmo de viajar a outros planetas, além dos óbvios avanços em cada um dos setores do dia a dia. O sistema capitalista, sem dúvida, tem esse lado incontestável de sua história e existência. Sem ele, o ser humano estaria ainda tateando luzes medievas em busca de soluções para a sua dura sobrevivência. 

A pergunta é : seríamos mais felizes? Responda você, se for capaz, meu caro leitor. 

Mas... Como em toda história, há o lado cruel do capitalismo. Ele trouxe o desenvolvimento, a riqueza. Mas trouxe também a pobreza, a miséria, a morte de milhões de seres humanos que não têm acesso aos bens de consumo e a todas as demais benesses que o capitalismo trouxe. E esse é o seu paradoxo: trazer o bem e fazer o mal. 

Difícil, muito difícil explicar isso. Tentemos. Sem fabulações. 

O sistema capitalista aufere lucros fantásticos de suas benesses, de seus negócios e negociatas, enfim, do poder que ele tem sobre o dinheiro e sobre todos os meios de produção. Poder-se-ia perguntar: se é tão poderoso, se tem tantos lucros, porque não acaba com a miséria do mundo, não redistribui melhor os seus ganhos e não torna melhor a vida de milhões e milhões de seres humanos? 

Porque sua força, seu poder, provém justamente da exploração da força de trabalho do ser humano, ou seja, daquilo que todas as pessoas fazem para lhe dar mais poder ainda – sua energia. Um sistema energético não pode contrariar uma lei da física, ou seja, produzir energia por si mesmo, retroalimentar-se, num moto perpétuo. Para criar energia, é necessário queimar energia. Isso acontece com um mecanismo, com uma máquina, mas é reproduzido a grosso modo no sistema financeiro e produtivo capitalista: ele precisa consumir energia, para produzir energia. A energia que ele consome é a força de trabalho humano, e como toda queima de energia gera desperdício e refugo, os miseráveis são o refugo do capitalismo. Para manter a máquina funcionando, há necessidade de uma sobra de energia que o realimente, que é dada por aquilo que Marx chama de mais valia. Se a máquina usar toda a energia e não gerar refugo, ela entra em entropia e se destrói, se desintegra. A perda de energia, a entropia, tem ocorrido periodicamente, as famosas crises periódicas do capitalismo, mas a crise se resolve com o derrame do excesso, representado por desemprego, mais miséria e sofrimento de seres humanos, e logo se estabiliza, reequilibrando as perdas com a redução da energia e sua retomada gradual, retirando da sociedade combalida e sem forças a força que o sistema precisa para novamente atingir um pico de desenvolvimento e consumo, até uma nova crise, ou uma nova perda de energia. 

E por que o ser humano não se aproveita dessas crises para se livrar do capitalismo? 

Aqui entramos no terreno pantanoso das relações da humanidade com o consumo, que faz com que as pessoas imaginem que a crise é passageira para todos e que, logo, estarão de novo na cadeia produtiva. Pagam o preço do sonho de consumo com suas vidas, se necessário, mas pagam. E para isso contribuem outras forças poderosas, aliadas do sistema, além do controle dos meios de produção (que já é em si um tsunami em cima de pobres e indefesas populações): o controle dos sistemas educacionais e o controle dos meios de comunicação. 

Ou seja, o capitalismo escraviza o homem não só com o trabalho, mas escraviza sua mente, seus desejos, sua visão de mundo. Entorpece os seus sonhos e conforma-os ao consumo, à sobrevivência diária, à falta de perspectiva. Por isso, os pobres e miseráveis do mundo não se revoltam: estão encharcados até a medula de toda uma doutrinação de vida de gado, de conformismo. Quando a corda arrocha demais o pescoço, quando há possibilidades de rebelião, quando até mesmo explodem revoltas e sedições, a morte comanda o espetáculo, através da mais torpe repressão, a mando de governos que se dizem democráticos, mas que o são apenas na aparência, já que sustentados pelas forças poderosas dos mais poderosos, que é o poder econômico. E as fogueiras de esperança nunca recebem o combustível de sua permanência ou o alimento para sua vitória, porque não há tempo para que os líderes construam na mente das pessoas um novo imaginário, uma nova perspectiva de vida, são todos presos, mortos e devidamente calados para sempre. 










outubro 10, 2018

O ESTILO É O HOMEM









Do conforto de sua casa, curtindo o dolce far niente da recuperação de uma facada – que ainda não sei se incompetente ou inconsequente – que levou durante a campanha, o candidato fascista começou a disparar mensagens pelas redes sociais, como forma de motivar seu bando de eleitores idiotizados por um discurso “patriótico” e “contra tudo”, além de preconceituoso, homofóbico, racista, a favor da violência, um discurso em geral raso como um pires. 


Vou-me deter no estilo dessas mensagens, com a ressalva de que a crítica que, por acaso, apareça quanto a seus erros de português, nada tem de preconceituosa, pois, na minha opinião, não é isso o que importa, já que ele está concorrendo à presidência da república e não a uma vaga à Academia Brasileira de Letras. 


Fechado esse parêntese, devo chamar a atenção para o título desta pequena crônica – o estilo é o homem. Nesses tempos de interpretações grotescas, em que as pessoas mal leem o que se escreve e já saem dando caneladas a torto e a direita, devo explicar, ou pelo menos tentar, que falamos e escrevemos não só de acordo com nossa personalidade, nossa formação, nossos valores, como também refletimos – quando falamos e escrevemos – o meio em que vivemos. 


Por exemplo: não se vai querer de um jogador de futebol, durante um treino ou uma partida, que fale como um príncipe ou, pelo menos, como um cidadão comum. Seu linguajar estará eivado de palavrões, de expressões chulas, de xingamentos que podem, à primeira vista, ofender a sensibilidades mais aguçadas. Até mesmo contra seus próprios companheiros, ele usará de expressões muitas vezes grosseiras, para reclamar de um passe mal feito ou de uma jogada infeliz. Não há nesse linguajar exatamente nada de ofensivo. É o que manda a cartilha de comunicação do ambiente onde vive. Raramente, os ofendidos permanecerão ofendidos por mais do que alguns segundos ou minutos, já que usarão também do direito de resposta, imediata e muitas vezes no mesmo diapasão. 


Assim, vamos aos primeiros bilhetes do candidato fascista, que me chamaram a atenção: cheio de erros de português, numa linguagem mais grosseira, próxima à caserna de onde veio o tal candidato, essas mensagens estavam muito mais próximas daquilo que é a sua cartilha ideológica, ou seja, refletiam com bastante nitidez o seu pensamento político, o que ele realmente pensa. Se o deixassem livre para continuar a escrever, é lógico que “pegariam no seu pé” pelos erros de gramática – erroneamente, já que isso não é absolutamente importante –, mas teríamos um repositório de seu real pensamento político, o que seria muito mais útil a seus pretensos eleitores e, principalmente, para a desconstrução pelos seus opositores desse mesmo pensamento, que beira o tosco e a ideias genéricas e mal alinhavadas sobre os problemas do país. 


No entanto, logo veio a interferência dos seus marqueteiros e as mensagens começaram a se sofisticar em termos de linguagem, o que acaba por mascarar completamente toda a sua falta de preparo para a discussão séria de qualquer tema. Os termos mais rebuscados e a estrutura mais condizente com uma linguagem culta escondem as armadilhas de um discurso mais próximo do palatável do que a liberdade de expressão que antes o candidato tinha de dizer de forma mais clara o que pensa. 


Assim, quando lamenta os incidentes provocados por seus seguidores – com agressões e até mesmo uma morte por facadas de um capoeirista baiano – por causa de divergências políticas, nem mesmo os seus marqueteiros conseguem esconder seu desprezo pela vida humana, quando ele diz que não pode “controlar as ações das pessoas”, esquecido de que essas ações tiveram origem na sua pregação homofóbica, preconceituosa, machista e, sobretudo, de defesa da violência contra marginais, bandidos etc. É claro que, quando se defende a tortura e a morte de pessoas que atacam a sociedade, qualquer um pode interpretar que está livre para torturar e matar quem não esteja do mesmo lado político ou ideológico que o seu, já que o seu lado é o correto, é o da sociedade, e quem está contra o seu lado está contra a sociedade, merecendo portanto a tortura e morte.



maio 08, 2018

ESTOU, SIM, COM MUITA RAIVA...




  




O cara nasceu nos cafundós de Pernambuco, no meio da seca do Nordeste, numa família típica do interior, destroçada pela fome, pela falta de perspectiva de sobrevivência, por um pai sem nenhuma noção de valores humanos, que abandona essa família de vários irmãos; depois, a mãe e os filhos pequenos pegam um pau de arara e vêm para São Paulo, tentando fugir da fome, da miséria absoluta, da morte; vivem na periferia, sabe-se lá como, sobrevivendo como todo miserável neste País de miseráveis; o cara consegue estudar um tiquinho, começa a trabalhar numa fábrica ainda muito jovem, perde um dedo numa prensa, consegue se formar torneiro mecânico numa das escolas do SESI, única porta de entrada para um emprego mais decente, consegue emprego numa fábrica de automóveis, a primeira mulher morre no parto, por falta de assistência, por causa da pobreza, esse cara torna-se metalúrgico, começa aos poucos a participar da vida sindical, levado pelo irmão mais velho, torna-se conhecido e líder desses metalúrgicos, obtendo a presidência do sindicato; durante a fase mais dura da ditadura daqueles malditos militares, quando tudo parecia caminhar para o pior, o cara devolve aos operários a dignidade, liderando movimentos e greves que tiram um pouco do peso opressor do regime das costas dos trabalhadores, passando claramente a mensagem de que é possível lutar ainda, vai preso pelos militares e, depois de solto, funda um partido político, participa dos movimentos pelas eleições diretas, candidata-se várias vezes, primeiro ao governo de São Paulo, depois à presidência da república, contra todos os preconceitos relacionados à sua origem, à sua pretensa falta de preparo, à sua condição de operário; percorre várias vezes todo o Brasil, numa campanha árdua de esclarecimento, de longos discursos e mais longas ainda reuniões com membros do seu partido, com organizações sociais, com representantes de todas as classes, com membros dos diversos sindicatos e, finalmente, consegue eleger-se presidente da república, mesmo com a desconfiança de amplos setores conservadores; promete, como prioridade, dar ao brasileiro três refeições por dia, isto é, lutar para tirar da miséria uma grande parcela da população que passa fome, como ele passou na infância e na adolescência; vence as dificuldades todas colocadas pelos seus opositores em seus primeiros quatro anos de governo, reelege-se, torna-se líder de reconhecimento mundial, admirado nos quatro cantos do planeta, por sua luta contra a fome, coloca o País entre as oito maiores potências econômicas do planeta, adquire um poder moral e político raramente alcançado na História, obtendo, ao final do mandato, uma popularidade recorde, como um homem poderoso, líder de uma nação, respeitado e admirado até por adversários; e esse cara, que conviveu com os poderosos do País e do Mundo, se quisesse ser corrupto, se tornaria o cara mais rico do Brasil, bajulado por milhares de empresários poderosos, bajulado por banqueiros e fazendeiros, esse homem vive como sempre viveu, num apartamento de classe média em sua cidade de origem, São Bernardo do Campo, esse cara não tem aviões ou carrões ou joias, não tem apartamento em Paris, não tem obras de arte nas paredes de alguma mansão, já que nem mansão ele tem, não faz ostentação em hotéis de luxo pelo mundo, não tem dinheiro em bancos suíços ou em qualquer outro lugar do planeta, ou seja, pelos padrões de alguém que teve todo o poder possível do País, é um cara que se pode considerar classe média média, quase pobre, um homem que tem como riqueza apenas a sua história, uma trajetória de vida pessoal, uma trajetória de vida política e uma trajetória de realizações que poucos, muito poucos homens lograram obter, e esse homem que podia estar riquíssimo, se fosse corrupto, se fosse ladrão como tantos e tantos que se locupletaram das benesses do poder, esse homem está preso, condenado por quatro juizinhos de merda, porque esses idiotas acham que ele recebeu propina para reformar um apartamento de classe média no Guarujá e por uma porcaria de obras num sítio de Atibaia, no interior de São Paulo, que, juntas, essas reformas não chegariam nem a 2 milhões de reais, estando mais do que provado que nem o apartamento nem o sítio estão em nome dele e também não estão em nome de laranjas, como é comum entre os que se dizem impolutos por aí a fora, ou seja, um dos homens mais poderosos do País, que poderia ter lucrado milhões de dólares de propina, recebe como recompensa um apartamentozinho meia boa e um sítio de poucos hectares, enquanto malas e malas de dinheiro passeiam de mão em mão, enquanto um apartamento com 51 milhões de reais é descoberto na Bahia, enquanto maracutaias de bilhões de dólares são descobertas, com dinheiro público passeando pelos paraísos fiscais do mundo, esse homem é condenado por quatro juízes idiotas, cretinos, mal intencionados, sem nenhuma prova concreta, apenas para cumprir a missão que lhes foi delegada pela direita que não admite que o cara seja de novo candidato, que o cara volte à presidência... então, eu fico realmente com muita, muita raiva, e mesmo sendo contra a pena de morte, eu daria, sim, quatro tiros na cabeça desses juízes... 













abril 17, 2018

A ADEGA DO MALUF







Fico aqui matutando: coitado do Maluf, tão doentinho, tão alquebrado! Acho que saiu da cadeia em Brasília para um hospital em São Paulo. Numa cadeira de rodas. Um velhinho inofensivo. Depois de tantos anos de glória e roubalheira. De “rouba, mas faz”. De vários governos, menos o federal, coitado. Vai morrer frustrado, porque não chegou à presidência. Mas foi prefeito, foi governador, foi (ou é) deputado. Enfim, um homem de histórias, para a História. Mesmo que pelo lado torto. “Rouba, mas faz”. E fez. Fez muito. 

Tanto, que tem uma bela mansão num dos bairros mais nobres de São Paulo. Ele merece, merece muito. Trabalhou bastante, em prol de seu bolso. Construindo pontes, viadutos, espalhando asfalto, abrindo avenidas. Cobrando comissões, claro. E isso é trabalho duro: negociar com empreiteiros empedernidos, que amam seu rico dinheirinho e não gostam de soltá-lo assim, sem mais nem menos, sem um muito bom contrato de uma grande obra superfaturada. Então, a mansão do Maluf é presente por suas grandes atuações. 

Não é, porém, da mansão do Maluf que eu quero falar. Aliás, é da mansão, sim, mas apenas de um detalhe da mansão: a adega do Maluf. 

Dizem as más línguas, os invejosos de plantão, os que não gostam de ver ninguém vencer na vida por seus méritos, e ficar rico, apesar de que o Maluf já era rico antes da política, apenas multiplicou sua fortuna, mostrando a todos como é fácil ganhar dinheiro neste país, com o trabalho duro, de décadas... Tergiversamos. Voltemos à adega. 

Dizem, portanto, as más línguas que a adega do Maluf é excepcionalmente rica em vinhos preciosos. Fruto de suas muitas viagens à Europa; de sua participação em leilões de safras especiais e, claro, principalmente graças a seu extremo bom gosto na escolha das melhores cepas, das melhores vinícolas. 

Há, ali, dizem, vinhos que não têm preço. E outros, cujos preços alcançam milhares de dólares. Todos muito bem acondicionados, devidamente deitados em berço esplêndido, em temperaturas supercontroladas, trancados a sete chaves. Aliás, sete chaves é só força de expressão: deve haver uma chave única, com segredo etc. 

Bem, voltemos ao dono da adega: ele está velhinho. Cumpre ordem de prisão domiciliar. Aliás, uma história mal contada: se ele foi condenado em Brasília e tem como local de residência oficial, para a Justiça, o apartamento funcional em Brasília, devia estar cumprindo prisão domiciliar nesse apartamento, e não na mansão em São Paulo, com todas as mordomias que nós, simples mortais, nem tentamos imaginar quais sejam. Eu, por exemplo, só penso na adega. 

E o Maluf lá, doentinho, cheio de remédios para isso, remédios para aquilo, com os médicos enchendo seu pobre corpo alquebrado de drogas que prolonguem a vida do ilustre deputado. E o coitado, gente, com tanta droga no corpo, não pode – por ordens, médicas, claro – nem tomar uma taça de vinho. Não pode mandar o mordomo ir lá na adega e pegar aquele vinho especial, daquela safra, daquela marca e lhe servir uma simples taça desse mel dos deuses. 

Coitado do Maluf! 

E logo me arrependo da expressão: não, coitado de mim, que não tenho grana nem para comprar um vinho de supermercado. Que trabalhei a vida inteira, mas não tive a competência do deputado em amealhar a fortuna que ele obteve. Não fui amigo do Costa e Silva; não enfrentei a má vontade de donos de empreiteiras que queriam pagar só dez por cento; não me lancei candidato a presidência várias vezes; não fui o homem do “rouba, mas faz”, e então estou aqui apenas sonhando e imaginando uma coisa, uma só coisa que eu queria muito neste momento, uma coisa impossível, eu sei, mas que não custa nada pensar, imaginar, sonhar: 

Eu queria herdar a chave da adega do Maluf!




(Ilustração: Philipe Mercier - LE JEUNE DEGUSTATEUR - c.1725)



março 12, 2018

DEMOCRACIA? ONDE?







“Um governo do povo, para o povo e pelo povo”. Essa a frase que nos vem à cabeça quando falamos de democracia. Uma espécie de meme, totalmente falacioso, mas grudado na memória de todos, por força do tanto repetir. 

E por que esse conceito é falacioso? 

Bem, a conversa promete ser longa. E o assunto, inesgotável. Vamos tentar levantar alguns problemas dessa definição e da própria existência da democracia no mundo ocidental, principalmente no Brasil. 

A primeira falácia é a própria noção de “democracia grega”: o povo grego, as chamadas classes populares, os comerciantes, os artesãos e, naturalmente, os escravos (que eram muitos, na época, por questões relacionadas a guerras e a dívidas) nunca participaram da escolha dos governantes gregos, escolhidos sempre por uma aristocracia dominante, através de vários processos, muitos deles não exatamente democráticos. Mas deixemos que os gregos enterrem os gregos. Falemos do presente. 

Para começar, o que seria um governo “do povo”? 

Acredito que um “governo do povo” fosse um governo que tivesse realmente representantes oriundos do povo, escolhidos livremente por todos, através de processos realmente democráticos e complexos, que pudessem selecionar pessoas que irão exercer o poder com compromissos muito bem fincados em um longo processo de discussão das prioridades e dos anseios desse povo. Talvez, através de assembleias que começassem em quarteirões e bairros, atingissem toda a cidade e fossem gradativamente levando seus representantes até a uma assembleia nacional, em que se discutissem todos as sugestões programáticas, para escolher as mais importantes e factíveis, com as quais os então escolhidos representantes iriam se comprometer ao chegar ao governo. Mas isso é um processo caro e difícil, que não demanda nem mesmo a existência de partidos políticos ideologicamente estruturados. 

Então, encontramos o primeiro nó: política precisa de ideologia? E a ideologia deve ser preocupação da política? 

Sim, se vivemos num mundo dividido em forças econômicas e ideológicas que desejam apenas o poder para aumentar ainda mais a sua capacidade de ganhar dinheiro e, por conseguinte, de oprimir o povo e subjugá-lo, para ganhar ainda mais poder e mais dinheiro, num círculo vicioso de ganância e escravidão. Estamos, é claro, falando do predomínio do sistema capitalista, com suas políticas (que são várias) de exploração do povo e de dominação. 

Não, não precisaríamos de ideologia na política, se vivêssemos num mundo igualitário, em que não houvesse a exploração do homem pelo homem... E paremos por aí, porque a utopia está evidente nessas poucas palavras. Esse mundo ideal não existe e não podemos afirmar que vá existir algum dia, embora o desejemos todos. 

O nó ideológico, portanto, ainda não tem condições de ser desfeito: mesmo nas assembleias mais democráticas, como as que possamos realizar a partir das bases mais profundas da organização popular, estarão eivadas de ideologia que irá contaminar seus resultados e seus projetos. E o povo, mais uma vez, seria enganado. Ou se enganaria nas suas escolhas. Voltaremos a isso mais adiante. 

Portanto, um governo “do povo” é uma falácia, porque os representantes, mesmo aqueles que provieram do povo, que iremos eleger foram e são escolhidos por uma elite partidária, para atender demandas e facções e exigências de quem já está no poder ou tem o poder para manipular eleições e resultados ou, se não podem manipular eleições, têm o poder de, através do investimento em propaganda e marketing, levar o povo a escolher os seus preferidos. 

Abro, aqui, um parêntese, para exemplificar com a história de nosso País. Desde a proclamação da República, em 1889, quantos presidentes oriundos das classes populares teve o Brasil até agora? E a resposta é óbvia: um, apenas um, que governou por oito anos, com grandes dificuldades, e agora, está sofrendo um terrível processo de perseguição política, para que não volte ao poder: Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, mesmo Lula não foi exatamente escolhido pelas classes populares. Eu disse que ele é oriundo do povo, e somente obteve a benevolência do voto popular, quando abriu mão de uma série de compromissos populares, para não “assustar” as chamadas elites. Foi, sem dúvida, o maior avanço democrático da história desse País, mas tem um pezinho na ajuda de forças eleitorais poderosas que, se não o apoiaram, não o atrapalharam, apostando no seu fracasso estrepitoso, para voltarem depois como “salvadoras da pátria”, como sempre o fizeram, para manter o povo sob o seu tacão. 

Repito, pois: um governo “do povo” é uma falácia, um fato que não ocorre nunca nem no Brasil nem em nenhum outro país do Ocidente. E a nação mais poderosa da Terra, os Estados Unidos, é um exemplo mais do que acabado de que a democracia ali está a anos luz do povo: o processo de escolha dos candidatos é baseado unicamente no seu poder de arrecadar dinheiro para a campanha; depois, o processo eleitoral é indireto e, nas últimas “eleições” (sim, com aspas), houve claramente um vitorioso pelo voto, mas elegeu-se aquele que foi escolhido pelo tal do “colégio eleitoral”, num processo que remonta a fundação da “democracia americana” (deveria poder colocar, pelo menos, umas dez aspas), quando outras eram as forças eleitorais e outro o país, um processo, portanto, arcaico e hoje totalmente sem sentido. Embora, isso não importe muito, já que o processo todo é viciado e o eleito nunca foi, não é e nunca será um legítimo representante do povo, mesmo que seja negro, como o ex-presidente Barak Obama. 

A segunda parte da tal definição de democracia, redundantemente “um governo pelo povo e para o povo”, pode ser desmontada facilmente. Se não se elegem legítimos representantes do povo, nenhum governante tem realmente compromisso com as demandas populares. Nenhum governante governa “pelo povo” que o elegeu ou aplica programas de governo que sejam realmente “para o povo”. Você vai dizer que eu estou exagerando, que houve governantes que fizeram isto ou aquilo pelo povo, que construíram obras ou deixaram um bom legado para o povo. Sim, em sei disso. E podemos listar praticamente todos os presidentes do Brasil: todos eles deixaram alguma “contribuição” para o povo. Mas não exatamente “pelo povo”. Se fizeram isto ou aquilo, se construíram pontes e estradas, se desenvolveram o ensino, se tiveram políticas sociais voltadas para o combate ao desemprego ou à miséria e etc. e etc. etc., tudo isso foi feito porque é preciso que o povo tenha algum quinhão da riqueza, como forma de controle, de manutenção do status quo, de que a pobreza não atinja pontos de extrema penúria que coloque em risco os seus empregos (digo, os empregos dos governantes e de quem os governa, os capitalistas, as elites mantenedoras do sistema). Fazem, sim, governos “populistas” (e aí emprego o termo no seu sentido mais nobre), não porque se comprometeram com o povo, mas porque, se não o fizerem, arriscam-se a colocar em desequilíbrio o sistema, levando ao colapso de bancos, indústrias, agronegócio etc. 

Abro novamente um parêntese, para falar de Lula. Seu governo foi um governo “para o povo”, apesar de tudo. Conseguiu, com todas as dificuldades políticas de um partido sem maioria no Congresso, impor políticas de erradicação da pobreza e de pleno emprego, que tiraram milhões de pessoas da linha da miséria. Mas seu governo parou aí: não conseguiu, porque não havia, como disse apoio político, aprofundar reformas que o Estado Brasileiro necessita, para definitivamente aplicar políticas de distribuição de renda permanentes de amplo espectro, para que se tornasse um governo “para o povo e pelo povo”. Embora tendo feito sua sucessora, esta também não teve condições de aprofundar quaisquer políticas que mudassem o País. Reeleita, sofreu um golpe sujo das forças conservadoras e não pôde concluir sua obra de preparar terreno para a volta de Lula. E as forças conservadoras lançaram mão do mais sórdido meio de perseguição a um líder: o Judiciário. Através de um juizinho de primeira instância, devidamente orientado e formado nos corredores da CIA e nos escritórios luxuosos de Wall Street, a perseguição a Lula tem como objetivo eliminá-lo da corrida presidencial, já que há a possibilidade de que, usando de seu carisma e sua força política, inclusive internacional, um terceiro mandato de Lula levasse à aprovação de reformas de interesse do povo. E isso dá urticária aos mandatários maiores da Nação, os banqueiros, os grandes capitalistas, os donos de indústrias e de empresas agrícolas, cujo sonho é alinhar definitivamente o Brasil aos Estados Unidos. Portanto, urge condenar e até prender o senhor Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo que hão haja provas para isso. 

Fechemos nosso parêntese e voltemos ao nosso tema: a farsa da nossa democracia. E vamos, agora, falar de um elo importante, ou melhor, o elo mais importante do processo democrático verdadeiro: o povo. 

Todo discurso, seja ele realmente democrático, seja ele falsamente democrático, como costumam ser os discursos dos conservadores e de todos os seus próceres e seguidores, coloca como centro de todas as suas preocupações o povo, o povo que ouve e se cala, ou o povo que ouve e aplaude, ou o povo que ouve e vaia. Mas é só isso o que resta ao povo fazer: ouvir. E votar. 

Então, você vai me dizer: está aí a democracia – o voto popular. Sim, o voto na urna é feito pela mão do povo. Mas... será que a mão do povo tem mesmo liberdade de escolher os melhores? Mesmo que os tais “melhores” não venham a ser exatamente os seus legítimos representantes? 

A resposta é não. Com todas as letras. Raríssima mente o povo escolhe realmente os melhores. E mesmo quando os escolhe, ou são minoria ou são anulados de uma forma ou outra pelas forças conservadoras, seja pela cooptação econômica e ideológica ou, até mesmo, pela força e pelo impeachment, como ocorreu recentemente. 

E o povo não escolhe bem por diversas razões, dentre as quais vou citar as duas mais importantes e interligadas: ignorância e manipulação. 

Um ídolo do futebol brasileiro (e mundial) disse, uma vez, que “o povo não sabe votar”. Foi massacrado. E ainda o é, toda vez que se levanta essa questão. Mas a verdade é cristalina: o povo não sabe votar. 

E por que o povo não sabe votar? 

Primeiro, porque a maioria não tem educação formal suficiente, para perceber-se no mundo como realmente é: uma maioria explorada, sem outras perspectivas de vida que não sejam medíocres, um povo mantido na ignorância pela falta de escolas, pela falta de educação de qualidade, pela falta de condições de vida para até mesmo lutar por melhores condições de vida. Um povo, enfim, sem consciência de si, de sua situação e, portanto, um povo que não sabe o que pode querer e o que pode conquistar, pois não sabe e não lhe permitem saber e conhecer a força que tem. 

A manutenção desse povo nas trevas da falta de autoconhecimento tem um custo altíssimo no desenvolvimento do próprio País, mas esse custo tem sido bancado de forma sistemática e cruel pelas forças conservadoras e mantenedoras do sistema capitalista selvagem ou liberal (você pode escolher qual demonização você quer lhe dar) imposto ao País desde sempre. E sem perspectivas de que isso mude. 

O sistema de ensino no Brasil não precisa de reformas, precisa apenas de duas coisas: investimento na melhoria dos salários dos professores e investimento na melhoria da infraestrutura educacional. 

A primeira, melhoria dos salários dos professores, é o único caminho para a excelência do ensino, porque com melhores salários, os professores irão investir mais em sua própria carreira, melhorando o seu desempenho; e mais: com melhores salários, gradativamente, a profissão atrairá cada vez mais talentos, que começarão a fazer a diferença na qualidade do ensino, em vez de buscarem sustento e possibilidade de sucesso profissional em outros campos. Com isso, o nível de ensino melhora e teremos uma juventude realmente preparada para os desafios da Nação e não uma juventude treinada para ser mão de obra barata, segundo os interesses do capital. 

A segunda, investimento na infraestrutura educacional, é ainda bem mais fácil de realizar: prédios, carteiras, livros, bibliotecas, condução para os alunos, laboratórios, tudo isso não tem custo tão alto, se tivermos a decência e honestidade de buscar o melhor pelo menor preço ou o melhor sem sobre-preço. Nem é preciso construir CIEPs (um projeto fantástico de Darci Ribeiro, no Rio de Janeiro, infelizmente sucateado) ou CEUs (um projeto também muito bom, implantado pela Secretaria da Educação de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, a caminho de ser sucateado), embora até mesmo se objetive a chegar a tal ponto, mas basta, no começo, uma política de pé no chão, de utilização inteligente dos recursos disponíveis. 

Perceba-se que o ensino, o sistema educacional, tem um lugar fundamental em todo o processo democrático. Somente através da escola, da educação como um todo, um povo toma consciência de si mesmo, de sua força, e consegue se livrar do opressor ou dos opressores, estejam eles encastelados em posições de mando político ou desfrutando das benesses do capital que explora e mantém escravos. 

Somente a educação liberta um povo, insisto. Ou você acha que nosso sistema educacional é ruim por culpa dos professores ou por falta de dinheiro? Não, nosso sistema educacional é ruim porque querem que ele seja ruim. 

Tirando o povo da ignorância, damos o primeiro passo para que aprenda realmente a escolher seus representantes (mesmo, repito, que esses representantes não sejam exatamente aqueles que verdadeiramente o representem). Mas isso não basta: é preciso que o povo não seja manipulado. 

Mesmo um povo que tenha um excelente ou muito bom sistema educacional pode ser manipulado, para manter o status quo (vejam os Estados Unidos). A manipulação começa com o cerceamento dos professores e mestres em sala de aula, quando o Estado impõe ao sistema educacional a ideologia dominante, não permitindo que as ideias e as discussões fluam livremente. Ou você acha que o movimento “Escola sem partido” visa a quê? Não é preciso que os mestres e professores professem ou ensinem ideologias, mas é necessário que permitam a discussão, que provoquem a discussão, que levem seus alunos a suas próprias conclusões, ou seja, é preciso liberdade, coisa que o citado movimento quer, obviamente, cercear, em nome, mais óbvio ainda, da manutenção do status quo, ou seja, da ignorância do jovem. 

Outra forma de manipulação do povo, mesmo o mais culto, ocorre com o controle dos meios de comunicação. Na maioria dos países ditos “democráticos”, os meios de comunicação social estão nas mãos de poucas empresas ou “famiglias”, comprometidas todas elas com as forças conservadoras, ou por ideologia ou por serem sustentadas por elas. Isso acontece no Brasil, de forma escancarada, cruel e aberta. Redes de televisão, imprensa, emissoras de rádio, praticamente todo o nosso complexo de comunicação está nas mãos de poucos. Que sabem muito bem o que querem e o que não querem, por isso interferem, com seu poder, na composição de governos, na escolha de ministros, nos destinos da Nação. 

Se não houver um contraponto a esse mando exagerado dos meios de comunicação, com o impedimento de que grandes grupos mantenham controle de diversos meios, ou com a sua democratização, através do financiamento de meios ligados a sindicatos e a organizações sociais populares, o poder dessa mídia não pode ser desprezado na hora das eleições e na influência do eleitorado. Temos um novo “eleitorado de cabresto”, o “eleitorado da mídia”, que vota segundo as notícias – verdadeiras ou falsas ou, se verdadeiras, devidamente editadas – veiculadas pela mídia, segundo a opinião de donos da emissora de televisão ou a opinião de comunicadores de auditório ou “formadores de opinião” devidamente orientados pela “voz do dono”, segundo os interesses das forças conservadoras que os sustentam. 

Há muitas outras variáveis que levam o povo à ignorância, à ignorância de si mesmo, de seu poder, de sua força. Mas, por enquanto, fiquemos com essas, que já são suficientes para nosso propósito de reafirmar a falácia de nosso sistema dito democrático. 

Se é que isto seja consolo, o que nos resta dizer é que não estamos sozinhos. Se nosso sistema eleitoral ou político não tem quase nada de democracia, muito pelo contrário, é um sistema pensado, construído e mantido para que o povo não tenha voz e para que as forças dominantes continuem no comando, podemos afirmar que, no mundo ocidental, praticamente nenhum país obteve ou vive uma democracia plena. Há-os mais ou menos democráticos, mas totalmente democráticos só na nossa imaginação, no nosso desejo.