É quase impossível pensar
racionalmente, quando se tenta entender a política brasileira. Principalmente
quando entra em campo a decantada, amaldiçoada e mal entendida
"governabilidade".
A Constituição de 1988 abriu a
porteira das ideologias - verdadeiras ou falsas - represadas desde o golpe
militar e permitiu que inúmeros partidos políticos fossem criados. Com isso, pulverizou-se
a ideia de partido majoritário. Cada partido que "ganha" as eleições,
com alianças antes e, principalmente, depois das eleições, precisa garantir a
tal governabilidade com longas e desgastantes negociações, senão não consegue
aprovar nada. O exemplo crucial dessa política foi o governo FHC, que atingiu o
ápice da troca de favores com o Congresso para a aprovação de matérias de
interesse do Executivo, ao comprar, à custa da quebra do Estado, a sua reeleição.
O políticos descobriram a mina de ouro: dificultar para obter favores. Contados
os votos, lambem-se as feridas e é o momento em que os vitoriosos buscam e os
derrotados negociam apoios. Formam-se novas e improváveis alianças. Quem fica
de fora do butim, torna-se oposição e os "situacionistas" cobram o
preço, às vezes de forma brutal, quase sempre com cargos e ministérios.
Essa é a realidade.
E esta é a
constatação mais infeliz: não há mais ideologias nos partidos políticos. Resta
alguma em nanicos, como o PC do B, ou o PSOL. Mesmo o PT, que tem um berço
nobre, acolhe em suas fileiras muitos aproveitadores, políticos e líderes que só
querem a legenda para melhorar de vida. Para obter contratos. E não é possível
impedir a entrada dos aventureiros, porque não existe atestado de ideologia. É
como o jogador de futebol contratado por milhões que, ao vestir a camisa do
time, beija seu escudo e jura fidelidade... e o torcedor acredita! Porque não é
possível não acreditar. E porque, na maioria dos casos, deseja-se muito
acreditar.
Dito e compreendido isso, vamos
às eleições de 2014. Desde já deixemos claro que Marina Silva só é a cotada da
vez para vencer essas eleições catapultada que foi pela espetacularização da
mídia em torno da morte prematura de Eduardo Campos, um político neófito
tratado como chefe de estado e grande estadista. Uma nova viúva Porcina: foi
sem nunca ter sido. E entendamos as razões de a mídia ter feito isso: como seu
queridinho, Aécio Neves, estava mal nas pesquisas, resolveram incrementar a
candidatura de Marina, com a esperança de que, dividida a esquerda, ela tirasse
votos da Dilma Rousseff, cuja reeleição parecia quase impossível de ser
evitada, para desespero da mídia, alinhada com a direita mais retrógrada desse
País, como sempre. Só que a canalha deu um tiro no pé: Marina tirou votos, sim,
de Dilma, mas tirou muito muitos mais do minerim das baladas cariocas,
jogando-o para o desesperador buraco dos perdedores de primeiro turno. E agora?
Se é sustentável a situação de
Marina Silva, só o tempo - pouco, a essa altura - poderá dizer. Mas tudo indica
que, passada a comoção da morte do moço de olhos azuis, avaliado o estrago que
sua candidatura ocasionou ao queridinho da mídia e da direita, não há dúvida de
que a ex-seringueira odiada pelo agro business começará a perder forças e essa
perda (e não, "perca") será terrivelmente impulsionada por uma
tentativa de desconstrução de sua figura, a começar pelo caso do jatinho
acidentado, que parece ter conteúdo suficiente para fazer a poderosa rede Globo
tentar achar em seus destroços sinais de corrupção e troca de favores que
respinguem fortes em Marina Silva e seus acólitos. E uma campanha difamatória
sutil e impiedosa começará a tomar conta de todos os meios de comunicação, como
tentativa desesperada de inflar de novo o balão murcho de Aécio Neves. Claro
que petistas desesperados tentarão aliar-se a essa guerra suja, o que será uma
lástima, tanto para Dilma quanto para o próprio histórico do partido.
Especulemos, no entanto: e se
Marina Silva ganhar as eleições?
Há, na mídia, como uma espécie de
esperança consoladora, a ideia de que Marina Silva poderia aliar-se aos
depenados tucanos de FHC, a essa altura curtindo uma profunda síndrome de
abstinência de poder. Ora, se essa senhora tiver a cara dura de passar-se, a essa altura
de sua trajetória, para a direita, teremos de reconhecer que, em matéria de
política, tudo é mesmo possível. Nada, no seu ideário político até agora
expresso, indica que isso possa acontecer, mesmo que ela venha, durante a
campanha, por motivos eleitorais e eleitoreiros, a acenar com algumas
concessões à direita, como tentativa de acalmar certos ânimos e obter
financiamento para a campanha. Então, não será, quase com certeza, com o PSDB
que ela irá governar. Talvez também não, no início, com o PT. Restará, então,
qual partido com que aliar-se no Congresso para tentar aprovar suas propostas?
Sem dúvida nenhuma, o PMDB, o partido que não é partido, ou melhor, é tão
partido, que alinha em suas fileiras gente de todas as cores, de todas as
ideologias. Tem, sim, PMDB para a esquerda e para a direita, para o centro e
para qualquer outra nuance ideológica que se apresente no poder. É só saber
estalar os dedos. Porque, hoje, no Brasil, nenhum presidente da República logra
sucesso, sem o PMDB, porque ele é o maior, o mais bem estruturado, com bancadas
sólidas no Congresso e em quase todas as casas legislativas. Só lhe falta - e
isso é fruto de suas múltiplas faces e de sua origem como frente ampla - um
líder de apelo nacional, que o conduza à Presidência.
Além disso, não tenham dúvidas de
que, não importa com qual PMDB ela se alie, Marina Silva tenderá sempre para a
esquerda e poderá levar o País para um caminho que o PIG - o Partido da
Imprensa Golpista - e a direita mais hidrófoba não irão, absolutamente, gostar:
o caminho de um nacionalismo à Cristina Kirchner, talvez sem os desvarios da
politicagem peronista que mantém os argentinos à beira de um ataque de nervos,
mas com uma política econômica muito mais próxima da heterodoxia do que hoje se
vem praticando com Lula e Dilma. E isso poderá trazer consequências desastrosas
para o País. Não exatamente sua política, mas a oposição de cachorro louco que
ela enfrentará depois de alguns meses de governo.
O que se quer dizer, ao fim e ao
cabo, é: Marina Silva é mais esquerda que o PT, mais esquerda que Dilma e Lula
juntos, se acreditarmos nas ideias que ela expôs até agora. E se acreditarmos
na força que suas origem tem nas ideias que ela expressa. Isso,
independentemente de seu evangelismo que, sendo outra vertente, de sua
personalidade, se vier à tona, poderá trazer sérios atritos com a sociedade
civil que luta por direitos importantes como o das mulheres (no caso, a
regulamentação do aborto, e não sua penalização), como o dos grupos GLBT (no
caso, a união civil entre pessoas do mesmo sexo), e muitas outras lutas e
conquistas que a sociedade espera e deseja. Creio muito mais num certo
vocacionismo místico meio sebastianista, resultante de sua concepções
religiosas, do que a interferência dessas ideias nas políticas de seu pretenso futuro
governo. Marina pode ser muita coisa do que dizem dela seus detratores, mas não
é estúpida, nem amadora. Sabe o quer, e tem personalidade forte para impor sua
vontade. Desde que faça as alianças certas, no Congresso. Se isso não acontecer,
aí, sim, a tal "governabilidade" entrará em campo, para melar seu
governo. E o desastre será inevitável.