março 26, 2019

ADEUS ÀS ÁGUAS DE MARÇO



(Benedito Calixto - inundação da várzea do Carmo, 1892)


Já amainam as temíveis águas de março. E São Paulo sofreu e sobreviveu, mais uma vez, à suas fúrias. Fúrias conhecidas desde tempos imemoriais, desde que, no século XVI, da recém-fundada vila de Piratininga, o padre Anchieta descreve numa carta, uma grande tempestade que, durante duas horas, castigou a vila, arrasou choupanas, provocou inundações. Se pularmos no tempo, pensando que as fúrias continuaram a açoitar a cidade, vamos encontrar um quadro famoso de Benedito Calixto, de 1892, cujo título é “a grande inundação da várzea do Carmo”. E o século XX teve inúmeros casos de “a maior inundação”, basta buscar nos arquivos da imprensa ou mesmo no famoso google. 

Com as águas do verão, fechadas agora pelas fúrias de março, centenas, talvez milhares de árvores caíram, vítimas, algumas, de raios, e a maior parte, vítimas da própria chuva. Também um fenômeno que se tem repetido insistentemente. E reclama a população da falta de “manutenção”, ou seja, de poda, das pobres árvores. E é sobre essas árvores – vítimas tanto quanto nós, seres humanos, não só das fúrias das águas, mas principalmente vítimas do nosso descaso para com elas que eu quero escrever. E descaso, aqui, não tem, absolutamente, nada a ver com podas muitas vezes radicais e assassinas, realizadas em prol de uma pretensa segurança ou da rede pública de fios ou de carros e casas próximos a elas. 

Árvores são seres vivos. E, mais do que seres vivos, são seres garantidores de vida, de melhoria do ar que respiramos; garantidores da qualidade de vida que desejamos; garantidores de nosso bem-estar, ao amenizar os efeitos de temperaturas excessivas, decorrentes da poluição causada pelo ser humano. E como seres vivos devem ser tratadas, as árvores. Devem ser cuidadas para que tenham um desenvolvimento sadio e cresçam e envelheçam sem pragas e com segurança. No entanto, não é exatamente isso o que vemos. O departamento de parques e jardins da prefeitura de São Paulo permite que as árvores plantadas em nossas ruas e avenidas sejam extremamente maltratadas. Isso quando os próprios funcionários não as podam de forma radical e sem critério, expondo seus troncos às intempéries e ao sol escaldante. 

O mais grave: permitem que cimentem ao redor de seus troncos de tal forma que praticamente nenhuma água penetre no solo para alimentar suas raízes. Eu acredito firmemente que essa seja uma das principais razões para a grande quantidade de quedas de árvores na cidade de São Paulo. Uma árvore de grande porte, sufocada pelo cimento ao redor de seu tronco, verá suas raízes diminuírem e secarem no interior do solo, ou não se desenvolverem de forma profunda e adequada à sustentação do tronco, dos galhos e das folhas, na superfície, o que, certamente, irá provocar sua queda, quando a água da chuva encharca seus galhos e folhas e os ventos fortes que acompanham as tempestades encontram uma estrutura frágil, que facilmente desaba sobre casas e carros, provocando prejuízos e a ira de uma população que não percebe ser ela mesma a causa de suas tragédias. 



Podem observar: a maioria das árvores que caem nas ruas e avenidas estavam sufocadas pelo calçamento ao redor de seus troncos. É claro que há outras razões para quedas de árvores durante uma tempestade, mas acredito ser esse um dos motivos principais, algo que poderia ter solução de médio e longo prazo com medidas razoavelmente simples: basta que se alarguem, nas calçadas, o espaço descoberto, sem cimento, sem calçamento, em torno das árvores, para que elas possam receber água em suas raízes que, fortalecendo-se, consigam, na maioria dos casos, sustentar a copa exterior. 

E preciso dizer mais uma coisa importante aos concidadãos dessa megalópole: cuidem das árvores, como cuidam de suas vidas, de suas calçadas, de suas casas. Folhas de árvore no chão não é sujeira, é coisa que uma vassoura e um saquinho de supermercado resolve. Sujeira é cocô de cachorro nas calçadas, quando os donos nãos os recolhem; sujeira é os bares despejaram nas calçadas e nas ruas a água servida da lavagem diária de seus estabelecimentos (e isso é proibido por lei!); sujeira é a ainda absurda existência de estabelecimentos comerciais que não têm ligação de esgoto e soltarem seus dejetos imundos em plena rua, misturados à água da chuva, para disfarçar (e, acreditem, isso ainda existe, sim!); sujeira é jogarem ao chão o lixo de seu consumo diário e constante, desde palitos de picolé até sacos de supermercado e garrafas pet. 

Concluindo: árvores não sujam ruas, árvores bem cuidadas não caem à toa, árvores ajudam-nos a respirar melhor, árvores melhoram o clima. Cuidemos de nossas árvores, plantemo-las por toda a cidade, sem medo, deixemos um pouco de solo descoberto em nossos quintais e até mesmo em condomínios, não impermeabilizemos totalmente nossas ruas, deixemos espaço sem cimento ao redor das árvores nas calçadas, que a natureza devolverá o nosso cuidado com uma bem melhor qualidade de vida. E quando dermos adeus às águas de março dos próximos anos, possamos fazê-lo sem precisar contabilizar tantos prejuízos.

março 19, 2019

O NOVO COLONIALISMO






O colonialismo tradicional, praticado até meados do século XX, implicava domínio do território colonizado, com um governo títere estabelecido ou um governante devidamente empossado, com toda a estrutura burocrática, preocupação com defesa, diplomacia etc. Isso dava muito trabalho, embora tenha sido sempre uma empresa extremamente lucrativa, para o país dominador, claro. Mas, o tempo passa e tudo se sofistica. Tudo se torna mais simples. Ou menos trabalhoso. Então, inventa-se uma nova forma de colonialismo, inaugurada pelos Estados Unidos, já que os países europeus têm outras preocupações lá deles. 

Nada de ocupação territorial etc. etc. etc. Basta colocar um governo títere, que ama os Estados Unidos, depois, é claro, de dar um jeito de convencer o povo a votar no imbecil que eles querem. O que não é muito difícil, com as fake news, com uma série de “preparações” devidamente combinadas com juízes corruptos e complacentes ou coniventes e que também “amam os Estados Unidos”, porque foram formados lá, e têm todas as ferramentas do direito deles, contrariando princípios jurídicos milenares, provindos do Direito Romano. 

Empossado o imbecil escolhido, coloca-se no seu pescoço a coleira, com alguns agrados típicos para domesticar cães que adoram receber biscoitinhos do dono, em troca da fidelidade total. O imbecil viaja aos Estados Unidos com toda a pompa e circunstância, é recebido na Casa Branca, visita a CIA, abana o rabo para o presidente deles, que também é um imbecil, mas é um imbecil esperto e tinhoso. Então, o imbecil que diz que “ama os Estados Unidos” abre as portas do país para o capital, para o povo, para tudo que é estadunidense, em falsos acordos em que só um país tem deveres e o outro tem todos os direitos. 

O cachorrinho amestrado daqui e seus filhotes fofinhos acham que abrir as fronteiras para os “americanos”, que não mais precisarão de visto para entrar no país, vai atrair turistas, vai atrair dólares. E que seremos felizes e enriqueceremos enfiando a mão no bolso dos gringos idiotas, que vão pagar para levar bala perdida no Rio de Janeiro, subir morro de favela, comprar fitinha do Senhor do Bonfim, na Bahia, comer baião de dois no Recife etc. etc. etc. 

Então, que venham os “americanos”! 

E eles virão, sim. Não as famílias endinheiradas do Texas, ou o branquelos de Wall Street, com suas valises cheias de projetos ou de negócios ou mesmo com a intenção de se bronzear em nossas praias, como sonha a família de cãezinhos amestrados do palácio da Alvorada, mas virá gente do mais alto gabarito das múltiplas máfias de traficantes de drogas, de armas, de carne humana. E virão todos os bandidos endinheirados para fazer – como já fizeram nos tempos de antanho em Cuba – “grandes negócios” e negociatas, transformando o nosso país num grande quintal de suas sacanagens, devidamente protegidos pela extensão de nosso território, de nossas praias desertas e paradisíacas, de nosso interior de grandes extensões vazias ou quase vazias de população. E mais: sem serem incomodados pelas nossas polícias, que mal conseguem correr atrás de nossos próprios bandidos. 

É claro que os branquelos de Wall Street não virão em carne, osso e valises cheias de dinheiro, mas mandarão seus prebostes ou os contratarão por aqui mesmo (que os haverá, às dúzias – entreguistas e canalhas são como formiga), para comprarem nossas terras, nossas florestas, nossas indústrias e ganharem muito, muito dinheiro, à custa da mão de obra de um país empobrecido pelas políticas econômicas de um idiota que se diz economista, mas é só mais um especulador canalha e entreguista do mercado de capitais; pelas políticas sociais de um cretino que cumpre bem o papel de tirar direitos trabalhistas do povo, de reformar a previdência para obrigar o povo a trabalhar até morrer; pela pregação evangélica de pastores estrategicamente colocados em postos chaves do governo para impor ao povo a ideologia do cristianismo mais torpe, aquela que prega a humildade, a pobreza e a ignorância como a única forma de entrar no tal reino de deus. 

É este, pois, o novo colonialismo. Ao qual o Brasil dá as boas-vindas, com o povo amordaçado, espezinhado, empobrecido, sem perspectiva, a não ser esperar as migalhas do dono lá de cima.




março 15, 2019

UM NOVO DESATINO




(Thomas Bühler: narrenschiff - a nau dos insensatos)


Ler “A História da Loucura na Era Clássica”, de Foucault, neste momento, talvez seja uma das chaves para entendermos certas insanidades da nossa “era moderna”, desse nosso louco século XXI. Mas, como o livro é um mar imenso de elucubrações e investigações filosóficas, creio que poucos se aventuram a singrá-lo. Então, vou apenas me basear em algumas de suas informações e investigações, para tentar desvendar um pouco do ser humano atual, que se diz tão “avançado”, mas cujas ideias e filosofia de vida mais se aproxima da idade média do que até mesmo dos séculos XVII e XVIII abordados por Foucault. 

Somos a era da tecnologia, mas não uma era iluminada em termos de visão de mundo, pelo menos não em termos globais. Com sete bilhões – e aumentando – a população desse nosso planeta perdido está mais envolta em trevas de demônios e superstições do que sonha nossa mais improvável filosofia. Há poucos luminares, filósofos, artistas, poetas, escritores, políticos (esses, então, pouquíssimos!) que tenham uma visão de mundo em consonância com toda a tecnologia e todas as descobertas e teorias científicas de que dispomos. A maioria absoluta da população está mergulhada num deísmo fundamentalista ou, se não chega a ser fundamentalista, é um deísmo supersticioso de crenças absurdas, que envolvem desde práticas primitivas de liturgias e cultos até a crença popularizada pela mídia de grande circulação em horóscopos e magos que preveem o tempo ou curandeiros que prometem a cura de unha encrava ao câncer, ou então, a promessas absurdas de líderes religiosos que pretendem expulsar o demônio dos corpos doentes e promover milagres devidamente encenados para arrancar dinheiro dos mais pobres, não só de espírito, mas também de grana, para enriquecer à custa do empobrecimento dos que neles acreditam; aiatolás embrutecidos pela guerra santa, a cometer crimes terríveis, assombrando o mundo com atentados e exércitos medievais de recuperação de crenças fundamentalistas de ódio a tudo quanto não esteja de acordo com seu pensamento retrógrado e assassino. A lista de insanidades – chamemo-las assim – alonga-se e não é de nosso interesse ir até ao seu final. Todos os que tiverem chegado até aqui, neste texto, sabem muito bem do que estou falando. 

O ser humano esqueceu muito rapidamente o mal das ideologias políticas extremadas, sejam as da esquerda (principalmente o stalinismo) sejam as da direita (colonialismo, capitalismo, nazismo, fascismo). Ou melhor dizendo, esqueceu muito mais rapidamente o mal das ideologias da direita e vem sistematicamente ressuscitando todas elas, reciclando-as e tornando-as o novo avatar para o futuro da humanidade. O colonialismo deixou de ser o de conquista territorial, para transformar-se no colonialismo cultural ou político, através do domínio dos meios de comunicação ou através de imposição da superioridade armamentista do “leão do norte”, os Estados Unidos da América, com sua sede insaciável por commodities que lhe satisfaçam o apetite consumista, à custa da destruição literal de países nos quais intervêm com o uso de bombas e armas poderosas ou através da intrusão em suas políticas, derrubando sistematicamente os governos que não lhe sejam favoráveis, na América Latina ou em qualquer parte do mundo que lhes interesse. O capitalismo, por sua vez, evoluiu para o chamado neoliberalismo e para os impérios corporativos mundiais, em que grandes, imensas empresas dominam o mercado de vários países ao mesmo tempo, com ganhos trilionários, à custa de mão de obra barata, às vezes até mesmo da mais deslavada situação de escravidão de populações inteiras, da exploração de insumos de forma predadora, sem qualquer respeito ao meio-ambiente, contribuindo, assim, em grande parte, para a deterioração da vida terrestre, através da poluição e do aquecimento do planeta. Já o nazifascismo ganhou inúmeras fauces, todas elas terríveis, e é sobre elas que nos deteremos um pouco mais, para tentar entender certas atitudes quase incompreensíveis, principalmente de jovens assassinos seriais. 

As ideologias nazifascistas divulgadas pelas redes sociais, pela internet profunda, pelos sites de doutrinação, enfim, divulgas através da rede mundial de computadores, apresentam filosofias afirmativas de grande apelo popular, seja por pregarem de forma clara ou sutil o ódio, seja por elevar a autoestima de pessoas que estejam em situação de fragilidade psicológica ou mental, por estarem passando por alguma situação difícil ou por serem muito jovens e ainda não terem desenvolvido uma visão de mundo menos tóxica, para usar um termo de fácil compreensão atual. 

Essas ideologias atraem tais mentes porque abrem perspectivas de fortalecimento do ego, da ideia de que “eu posso”, de que “eu sou um super-homem”, de que “os que me desprezam podem ser destruídos”: num jogo de ficção, destruímos nossos inimigos em nossas mentes, o que nos leva a uma catarse aliviadora de nossas frustrações e de nossos ódios, mas na “vida real” dos sítios de ódio, a destruição do inimigo transforma-se em algo físico, ou com possibilidades de sua destruição física, daí o culto às armas. E as armas que, na ficção, são simbólicas, aparecem aqui como êmbolos concretos de atração, pela sua beleza destrutiva, seu design de objeto de luxo, seu poder de alcance e, principalmente, pela possibilidade de aquisição, seja através de sites clandestinos ou de informações privilegiadas que levem ao traficante mais próximo. 

Então, chegamos ou tentamos chegar à mente do adolescente e do jovem de hoje: se ele não tiver tido uma formação sólida em termos de valores saudáveis, não importa, aí, a ideologia ou a religião; se não tiver uma família que o ampare e proteja, e não apenas o critique e puna por suas idiossincrasias e por suas dúvidas e erros próprios da idade; se ele não tiver o respeito de sua tribo, ou seja, de colegas de escola e amigos, de pessoas que também tenham valores saudáveis; se ele não tiver uma perspectiva de futuro, através de uma visão de esperança e de vida; enfim, se sua mente estiver conturbada por imensas dúvidas e descrenças, por sonhos absurdos de megalomania, ou seja, por aquilo que Foucault chama de desatino, que era uma espécie de loucura da era clássica, mas que parece permanecer na mente humana até nossos dias, os sites nazifascistas que apregoam a força do indivíduo sobre o coletivo, o ódio a todos aqueles que lhe fazem mal ou sejam obstáculos – reais ou imaginários – à realização do seu ego, do seu individualismo exacerbado pelas crenças fundamentalistas, seja de origem deísta ou meramente de culto à violência, ao poder individual, exercem sobre esse jovem um poder de atração incoercível e impossível de podermos medir até onde pode levar o fanatismo que se impregna na sua mente e na sua weltanshauung, e até mesmo desencadear mecanismos de ódio que o levem a agir e sua ação à destruição de inimigos reais ou inventados, ao massacre indiscriminado de outros seres humanos, simplesmente num ato de vingança não exatamente contra aqueles que estão sendo atingidos, mas contra toda a humanidade. Tudo isso apimentado, se assim podemos dizer, por uma certeza de que serão, se morrerem, considerados heróis por seus pares, exaltados os seus feitos pela mídia, mesmo aquela que os condenam, além de esperarem, muitas vezes, recompensas absurdas numa outra vida. 

Temos, portanto, em pleno século XXI, um novo tipo de desatino, de quase loucura, que não está catalogada em nossos manuais de psicologia e psiquiatria, que é o desatino ideológico, a loucura ideológica, provocada numa mente fragilizada por um discurso altamente atrativo de ódio e de superação, apesar de as duas palavras parecerem paradoxais. Porque, na verdade, são esses tempos em que vivemos tempos paradoxais. Convivemos com a mais alta tecnologia, que nos permite curar doenças que há dois séculos matavam em poucos dias ou eram incuráveis, que nos permite perscrutar os mais remotos recônditos do universo, que nos permite viajar através da Terra com velocidades impensáveis, que nos permite que nos comuniquemos uns com os outros instantaneamente, mesmo que estejamos a centenas de milhares de quilômetros distantes, que nos permite unir vozes e compartilhar nossas emoções, nossas ideias e nossa vida com milhares ou milhões de outras pessoas, e, ao mesmo tempo, estamos cada vez mais isolados em nosso próprio ser, em nosso próprio mundo individual, curtindo e remoendo nossa própria bile, para despejar para os outros não o nosso lado melhor de seres humanos, mas as nossas idiossincrasias, nossos preconceitos, nosso racismo, nossos ódios a tudo quanto é diferente e, o que é pior, tudo isso se espalha por todos cantos, aumentando e retroalimentando, num círculo vicioso, nossa visão de mundo deturpada e tóxica (abuso do termo), ao parecermos conectados com milhares de outros seres que pensam exatamente como nós, numa espécie de fermento onde borbulham as larvas do ressentimento e do desatino. E só parecemos conectados, porque, na verdade, nas redes sociais de que participamos, nas quais compartilhamos tudo o que nos vem à cabeça, há um imenso abismo de solidão, de profunda e amarga solidão a nos soterrar e embrutecer.

março 13, 2019

UMA RAJADA DE BALAS E UMA FACADA ELEGERAM UM ASSASSINO PRESIDENTE




A execução de Marielle foi um crime quase perfeito. Nessa época de milhares de câmeras espalhadas por aí, só mesmo um dedo-duro para indicar à polícia os autores do crime. E essa delação, como disse o delegado que prendeu os assassinos, entregou o nome deles o que permitiu o levantamento de provas, através de um trabalho minucioso de investigação. Que o tal delegado não pôde deixar de cumprir, porque estava pressionado pela opinião pública nacional e internacional e pela polícia federal. Já tentara, esse mesmo delegado, dar uma pista falsa à imprensa, pressionando presos que tinham ligações com grilagem e milícias, mas que nada tinham contra a vereadora, cuja atuação não os atingia. Foi só uma ópera bufa, para distrair as atenções, não deu certo. Agora, porém, ele sabe: sabe que os assassinos têm fortes ligações com uma “família poderosa de políticos do Rio de Janeiro”, mas tem que se calar sobre que família é essa. 

Mas, por que morreu Marielle? 

Os fatos são lógicos: ela seria candidata ao senado, concorrendo com o filhinho da tal “família poderosa”. E poderia incomodar muito o tal filhinho, cuja intenção também era o senado (e ele foi eleito!). Marielle não era um nome conhecido nacionalmente, mas tinha o respeito de muita gente no Rio, pelo seu trabalho, pela sua seriedade, pela sua inteligência. Era uma liderança que se firmava. Basta ver que seus votos eram difusos, por toda a cidade, em todas as classes sociais, o que indicava um processo de construção de uma possível candidata muito forte ao senado. Então, era preciso livrar-se dela. Teve a “família poderosa de políticos” o motivo e os meios: eliminar a concorrência e um vizinho assassino profissional, quase um familiar, com histórico de ocorrências exitosas e com um igual ideário político de direita. Que agiu com o máximo de profissionalismo. E como profissional, deve ter sido muito bem pago, apesar da ideologia. Que só foi preso porque houve uma delação e, a partir do nome dos suspeitos, a polícia pôde rastrear tudo o que fizeram para planejar e executar o crime. 

O senado estava garantido. Era necessário garantir a presidência. 

Então, a facada. Que tirou o candidato das ruas e jogou-o na mídia, sem precisar fazer mais nada, sem precisar fazer campanha, sem precisar comparecer a qualquer debate. Um golpe de mestre perpetrado por um idiota contratado que trocaria uns dois anos de prisão por um resto de vida confortável e sem problemas. Uma facada ocorrida no meio de 30 a 40 seguranças, no meio de uma multidão, quando o candidato, que sempre usava colete a prova de balas, não o estava usando naquele momento. Uma facada sem sangue. Dada por um individuo que, se quisesse realmente matar o candidato, usaria sem dúvida uma arma de fogo, fácil de ser adquirida e com chances muito mais claras de êxito. Bem, já escrevi muito sobre os furos do tal atentado e suas incoerências, para repeti-las aqui. 

Dois atentados. O primeiro, realizado por assassinos frios, com meses de preparação, com resultado exitoso. A morte de uma mulher que poderia incomodar um futuro candidato. Uma mulher cuja morte, naquele momento, com certeza na cabeça dos mandantes, não iria provocar mais do que uma investigação sem resultado. O que não esperavam: a repercussão de sua morte. Menosprezaram o fato de que ela havia, embora de forma incipiente, reunido em torno de si muitas simpatias. E isso fez toda a diferença para a repercussão como crime político de alcance internacional. O segundo, falseado e falsificado, para dar ao candidato a possibilidade de fuga ao debate, em que sua incapacidade intelectual ficaria clara, sua “tosquice” militar saltaria aos olhos de todos e o “mito” gritado por seus fanáticos seguidores se esvairia em deboche e, quase com certeza, numa grande derrota eleitoral. 

Tudo isso dentro de um cenário político de grandes incertezas e de grande polarização, preparado com muito cuidado pela direita desde a instalação da operação lava jato, pela tal “república de Curitiba”, tendo à frente um juiz venial e disposto a levar adiante um projeto que devolvesse à direita o poder, na visão deles, “usurpado” pelo Partido dos Trabalhadores. É claro que o juizeco, àquela altura, não tivesse qualquer ligação com a “família poderosa de políticos do Rio de Janeiro”, e sim com a alta cúpula de partidos de direita (PSDB et caterva) e de grandes capitalistas (bancos, indústria, agronegócio etc.). Sua formação ou deformação ocorrida nas universidades dos Estados Unidos, voltada para novos princípios jurídicos que contrariam toda a nossa tradição de jurisprudência, permitiu que ele condenasse sem provas o líder maior da esquerda, aquele que seria a pedra no sapato do golpe. E o golpe veio. E vieram as manifestações. E vieram os apoios da mídia. E vieram as fake news. E, no embrulho, a “família poderosa de políticos do Rio de Janeiro”, a quem o juizeco passou a servir como um cão atrelado pela coleira a comer na mão do dono, agora como ministro de um governo eleito através de mentiras, de golpes, de assassinatos. 

A conclusão parece óbvia: o governo brasileiro está nas mãos não só de um incompetente e tresloucado presidente, que não sabe se o que disse de manhã é verdade à tarde, mas nas mãos de um possível e provável assassino.