novembro 19, 2010

CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEMPO, O TEMPO DA DOR

(Bruegel - os cegos)



Talvez seja o tempo a matéria de instigação filosófica mais complexa, para o homem. Só o que podemos afirmar sobre ele, o tempo, é que o futuro vem, inexoravelmente. E, por ainda não existir, podemos moldá-lo conforme nossas ações ou nossos desejos. Se ele vai confirmar nossas ações ou nossos desejos já é uma outra história.

O presente, não sabemos exatamente o que é e não o dominamos, por ser fluido como as letras que vou encadeando neste artigo: só estão no presentes no exato momento em que se materializam diante de meus olhos, para no instante seguinte, tornar-se passado. E quando se tornam passado, eu posso voltar e modificá-las. Como, aliás, fazemos com o passado.

O passado é o tempo que dominamos. Porque podemos mudá-lo à vontade, de acordo com a nossa percepção. E cada um tem do mesmo fato passado a sua visão particular. Portanto, não existe um passado, mas inúmeros passados para um mesmo acontecimento. Ou o que muitos chamam de versões, não importa.

Por que, mesmo, estou falando do tempo? E especialmente do passado? Porque quero falar do passado de Dilma Rousseff, presidente eleita do Brasil.

Sabe-se que lutou contra a ditadura, foi presa e torturada. São três fatos que podem ter, cada um deles, a versão que quisermos dar, conforme os interesses atuais de quem quer que os rememore, os reconte ou os interprete. Podem, portanto, constituir-se em algo nobre ou maléfico. Se sou de direita e apoiei a ditadura, são fatos tremendamente desabonadores. Se, pelo contrário, fui forte opositor ao regime, isso a torna uma heroína, aos meus olhos.

Onde está a verdade?

Poder-se-ia argumentar que a verdade estaria, como, no budismo, no caminho do meio, na zona cinzenta entre a traição à pátria e o heroísmo. Que a presidente eleita não é nem santa nem demônio.

Mesmo aí, nessa pretensa e quase impossível ortodoxia do politicamente correto, não teríamos qualquer certeza, diante das inúmeras possibilidades dessa zona cinzenta: são inúmeras as versões, são inúmeros os detalhes, assim como as circunstâncias em que os fatos ocorreram têm inúmeros atores, cada um com sua versão, e infinitos detalhes que podem ou não ter influenciado cada instante, cada ato, cada palavra.

E por que tudo isso, agora?

Às vésperas da eleição de Dilma Rousseff, algo estava para acontecer, como uma espada de Dâmocles suspensa sobre a Democracia brasileira: o jornal A Folha de São Paulo tinha entrado no Supremo com um pedido de liminar para ter acesso às informações da ficha da candidata nos arquivos da ditadura.

Que interesse teria o jornal em publicar o que está escrito em documentos produzidos pelos militares que prenderam e torturaram a então candidata? A versão deles é a versão de quem a considerava “elemento perigoso”, “inimiga do regime”, “terrorista” .
E todos que lutaram, com ou sem armas, contra a ditadura foram perseguidos como inimigos, muitos foram presos, torturados, mortos e enterrados, sem que tivessem a mínima possibilidade de contar com a Justiça ou com um julgamento justo.

Naquele momento crucial da eleição, publicar a palavra dos ditadores, dos militares que estavam no comando, dos torturadores enfim, teria por único objetivo conturbar o ambiente eleitoral e tentar intervir no resultado das urnas, de forma unilateral e desesperada, como foram unilateral e desesperadamente anti-democráticas todas as ações dos militares durante o período ditatorial. Ou seja, queria o jornal A Folha de São Paulo abalizar, como já o fez no passado, quando apoiou e até contribuiu para o regime militar, as versões unilaterais de carniceiros torturadores que seriam, em qualquer país civilizado do mundo, presos e julgados por crimes imprescritíveis, que são os crimes de tortura.

É essa a democracia que deseja e defende A Folha de São Paulo?

E agora que, passadas as eleições, eles – os donos e jornalistas de A Folha de São Paulo – obtiveram o acesso a esses dados da ditadura, o que pretendem fazer? Vão ter a hombridade de publicar todas as versões, inclusive a da presidente eleita e de todos os envolvidos? E mesmo que o façam, com que finalidade? De provocar comoção e vender mais jornais? Saberão as cabeças quentes pela derrota de seu preferido manter uma certa idoneidade, para trabalhar com rigor histórico os dados que lhes oferecerem os registros dos torturadores?

O passado da presidente eleita, como tudo aquilo que é passado, tem inúmeras versões e pode ser reconstruído de acordo com infinitas possibilidades, em função de interesses atuais, em função da cabeça de quem o manipula ou interpreta e até em função da ignorância de alguns ou de todos os fatos, porque, afinal, ninguém, absolutamente ninguém, conseguirá reproduzir o passado tal como de fato aconteceu.

Então, eu pergunto: qual o passado que a Folha de São Paulo pretende resgatar? O da sua verdade, eivada de preconceito, como têm demonstrado todas as suas “reportagens” políticas atuais ou o passado de apoio e ajuda aos mesmos elementos que prenderam e torturam a jovem Dilma, naqueles idos e terrivelmente vividos dias de dor e confronto?

Alguém, em sã consciência, acredita em alguma boa intenção desse jornal?