Caro amigo.
Sei que você levou muito tempo
para “sair do armário”, assumir publicamente sua condição de homossexual,
principalmente por causa da família, sempre um problema para pessoas como você.
Passados os notórios disse me disse, os sustos e as cobranças, contornados
todos os obstáculos, refeitas as amizades, reconstituída a vida, agora num novo
patamar, você é um ser pleno, realizado e, dentro das condições normais de um
ser humano, pode-se dizer que seja até feliz, embora eu não acredite na
felicidade. Mas isso não vem ao caso, agora.
No entanto, não se pode apenas
ser homossexual, numa sociedade conservadora como a nossa. Assumir a
homossexualidade é um ato profundamente político. Mesmo que digamos que o que
se passa entre quatro paredes não diga respeito a ninguém, não é possível viver
e conviver sem o filtro da moral social e, principalmente, sem o respeito a
certas convenções. E com relação a respeito, a nossa sociedade é assim: exige
que respeitemos suas convenções, mas não respeita nossas crenças íntimas, não
respeita nossas convicções, não respeita nosso modo de viver, se esse modo de
viver foge, um milímetro que seja, às suas convenções.
Assim, um homossexual assumido
tende a se tornar também um cidadão atuante pela causa, ou seja, defensor dos
direitos mais do que justos de todos os que são diferentes, na visão dessa
sociedade. Logo, você se tornou um ativista. O que é perfeitamente normal.
Mas, aí vem o motivo pelo qual
ouso escrever essa carta: na sua luta, vejo o amargor das pequenas derrotas
diante de pequenos e grandes crimes e injustiças contra os homossexuais.
Queixam-se todos de perseguição, de não poderem sair às ruas em segurança, de
serem agredidos por uma simples troca de carícias ou por andarem de mãos dadas.
Queixam-se de que as leis não punem a chamada homofobia, mesmo diante de toda a
celeuma da aprovação do “casamento gay”, isto é, da aprovação legal de união de
indivíduos de mesmo sexo. Queixam-se, enfim, de perseguição.
Ora, meu amigo, desculpe, mas
vocês, gays, estão tendo o tratamento que a sociedade sempre deu aos
diferentes, àqueles que não nasceram com a “marca da normalidade” da chamada
maioria branca, endinheirada ou pretensamente endinheirada, dona ou
pretensamente dona do pensamento dominante, seguidora ou pretensamente
seguidora das leis de um deus que premia os justos e castiga os “pecadores”, um
deus que não só não tolera desvios da fé, mas também olha com olhos de condescendência
e de falso perdão aqueles que são diferentes.
Por isso, caro amigo, quando
nascia um bebê com síndrome de Down, a que se dava o nome de mongoloide, as
famílias o escondiam em seus porões ou em quartos trancados. Por isso, quando
algum membro da família manifestava uma sexualidade diferente, era enviado para
seminários e conventos, ou era obrigado a sufocar ou disfarçar esse “desvio”,
de forma que não o ficassem sabendo parentes e amigos. Havia sempre um tio
excêntrico, um sobrinho “desviado”...
Por isso, caro amigo, as famílias
tratavam com “bondade” seus empregados negros, numa espécie de limbo, em que os
direitos eram apenas os estipulados pela falsa condição de “quase membros da
família”, no seio da qual “tinham tudo”, casa, comida, roupa, só não tinham liberdade.
Porque eles eram tão invisíveis à sociedade quanto as crianças problemáticas ou
os membros “disfuncionais”.
E mais, meu caro amigo, essa
sociedade “branca”, conservadora, profundamente religiosa, burguesa mantinha o
predomínio dos meios de produção à custa de uma imensa população invisível por
quem ela manifesta um profundo desprezo, como operários, negros, índios,
homossexuais, ateus e toda uma gama de seres que não rezam pela sua cartilha ou
não são “bem-nascidos”. E a invisibilidade garantia a toda essa gente a “suprema
felicidade” de não sofrerem uma perseguição contumaz e constante por parte
dessa nossa sociedade tão ciente de sua supremacia e tão “bondosa” na
distribuição das benesses de que disfrutam, mas “apenas” as injustiças sociais “normais”
de séculos e séculos de cerviz baixa e de servilismo.
Portanto, caro amigo, se não quer
ser perseguido ou que seus companheiros não sofram, só há uma saída: voltem
todos vocês para o gueto, para a invisibilidade, para os becos escuros. Não
reivindiquem nada, não peçam nada. E principalmente, não queiram justiça. Não
queiram igualdade. Não bradem por respeito. Sim, isso mesmo, tranquem-se em
porões, escondam-se atrás dos muros, sintam vergonha de serem o que são. Virem
fantasmas. Nadas.
Se, com isso, não vão mais ser
perseguidos ou mortos a pauladas, como tem acontecido? Ah, isso já é pedir
demais. No entanto, os casos serão em número bem menor, quase não haverá
notícias na mídia, ninguém comentará nada quando um branco, bom moço, elegante,
filho de uma boa família os agredir na rua, ou em qualquer lugar. E o fato de
ninguém comentar e de a mídia não publicar será muito bom: não servirá de
exemplo para que outros façam o mesmo.
Enfim, invisíveis, quem vai se
importar com vocês? E isso – a invisibilidade e tudo aquilo que ela traz – é só
um sofimentozinho tão pequeno, frente a tantas outras vantagens! Não é, não?
Um grande abraço.