janeiro 05, 2016

CARTA ABERTA A UM AMIGO GAY







Caro amigo.

Sei que você levou muito tempo para “sair do armário”, assumir publicamente sua condição de homossexual, principalmente por causa da família, sempre um problema para pessoas como você. Passados os notórios disse me disse, os sustos e as cobranças, contornados todos os obstáculos, refeitas as amizades, reconstituída a vida, agora num novo patamar, você é um ser pleno, realizado e, dentro das condições normais de um ser humano, pode-se dizer que seja até feliz, embora eu não acredite na felicidade. Mas isso não vem ao caso, agora.

No entanto, não se pode apenas ser homossexual, numa sociedade conservadora como a nossa. Assumir a homossexualidade é um ato profundamente político. Mesmo que digamos que o que se passa entre quatro paredes não diga respeito a ninguém, não é possível viver e conviver sem o filtro da moral social e, principalmente, sem o respeito a certas convenções. E com relação a respeito, a nossa sociedade é assim: exige que respeitemos suas convenções, mas não respeita nossas crenças íntimas, não respeita nossas convicções, não respeita nosso modo de viver, se esse modo de viver foge, um milímetro que seja, às suas convenções.

Assim, um homossexual assumido tende a se tornar também um cidadão atuante pela causa, ou seja, defensor dos direitos mais do que justos de todos os que são diferentes, na visão dessa sociedade. Logo, você se tornou um ativista. O que é perfeitamente normal.

Mas, aí vem o motivo pelo qual ouso escrever essa carta: na sua luta, vejo o amargor das pequenas derrotas diante de pequenos e grandes crimes e injustiças contra os homossexuais. Queixam-se todos de perseguição, de não poderem sair às ruas em segurança, de serem agredidos por uma simples troca de carícias ou por andarem de mãos dadas. Queixam-se de que as leis não punem a chamada homofobia, mesmo diante de toda a celeuma da aprovação do “casamento gay”, isto é, da aprovação legal de união de indivíduos de mesmo sexo. Queixam-se, enfim, de perseguição.

Ora, meu amigo, desculpe, mas vocês, gays, estão tendo o tratamento que a sociedade sempre deu aos diferentes, àqueles que não nasceram com a “marca da normalidade” da chamada maioria branca, endinheirada ou pretensamente endinheirada, dona ou pretensamente dona do pensamento dominante, seguidora ou pretensamente seguidora das leis de um deus que premia os justos e castiga os “pecadores”, um deus que não só não tolera desvios da fé, mas também olha com olhos de condescendência e de falso perdão aqueles que são diferentes.

Por isso, caro amigo, quando nascia um bebê com síndrome de Down, a que se dava o nome de mongoloide, as famílias o escondiam em seus porões ou em quartos trancados. Por isso, quando algum membro da família manifestava uma sexualidade diferente, era enviado para seminários e conventos, ou era obrigado a sufocar ou disfarçar esse “desvio”, de forma que não o ficassem sabendo parentes e amigos. Havia sempre um tio excêntrico, um sobrinho “desviado”...

Por isso, caro amigo, as famílias tratavam com “bondade” seus empregados negros, numa espécie de limbo, em que os direitos eram apenas os estipulados pela falsa condição de “quase membros da família”, no seio da qual “tinham tudo”, casa, comida, roupa, só não tinham liberdade. Porque eles eram tão invisíveis à sociedade quanto as crianças problemáticas ou os membros “disfuncionais”.

E mais, meu caro amigo, essa sociedade “branca”, conservadora, profundamente religiosa, burguesa mantinha o predomínio dos meios de produção à custa de uma imensa população invisível por quem ela manifesta um profundo desprezo, como operários, negros, índios, homossexuais, ateus e toda uma gama de seres que não rezam pela sua cartilha ou não são “bem-nascidos”. E a invisibilidade garantia a toda essa gente a “suprema felicidade” de não sofrerem uma perseguição contumaz e constante por parte dessa nossa sociedade tão ciente de sua supremacia e tão “bondosa” na distribuição das benesses de que disfrutam, mas “apenas” as injustiças sociais “normais” de séculos e séculos de cerviz baixa e de servilismo.

Portanto, caro amigo, se não quer ser perseguido ou que seus companheiros não sofram, só há uma saída: voltem todos vocês para o gueto, para a invisibilidade, para os becos escuros. Não reivindiquem nada, não peçam nada. E principalmente, não queiram justiça. Não queiram igualdade. Não bradem por respeito. Sim, isso mesmo, tranquem-se em porões, escondam-se atrás dos muros, sintam vergonha de serem o que são. Virem fantasmas. Nadas.

Se, com isso, não vão mais ser perseguidos ou mortos a pauladas, como tem acontecido? Ah, isso já é pedir demais. No entanto, os casos serão em número bem menor, quase não haverá notícias na mídia, ninguém comentará nada quando um branco, bom moço, elegante, filho de uma boa família os agredir na rua, ou em qualquer lugar. E o fato de ninguém comentar e de a mídia não publicar será muito bom: não servirá de exemplo para que outros façam o mesmo.

Enfim, invisíveis, quem vai se importar com vocês? E isso – a invisibilidade e tudo aquilo que ela traz – é só um sofimentozinho tão pequeno, frente a tantas outras vantagens! Não é, não?

Um grande abraço.


janeiro 02, 2016

NÃO HÁ RACISMO NO BRASIL





Não, não há racismo no Brasil.

Enquanto os negros estão na senzala, escravizados e massacrados pelo açoite, não há racismo no Brasil.

Enquanto os negros, mesmo libertos, constituem a população invisível dos guetos, das favelas, dos quilombos, das comunidades perdidas e anônimas do interior, não há racismo no Brasil.

Enquanto os negros, ainda que à custa de muita luta e muito trabalho, ocupam os cargos invisíveis da sociedade branca, como porteiros, seguranças, garis, domésticos etc., não há racismo no Brasil.

Enquanto os negros, depois de anos e anos de semiescravidão à elite branca, começam a obter, por meritocracia, alguns cargos de destaque na sociedade, como negros de alma branca, não há racismo no Brasil.

Mas...

Agora os negros não querem apenas as migalhas que caem das mesas da elite. Reivindicam cotas, para seus filhos e netos. Querem participação. Querem igualdade. E mais, o absurdo dos absurdos, querem ser reconhecidos como construtores da sociedade para a qual vieram sem ser convidados, mas à qual querem ser integrados não como população invisível, ou como negros de alma branca, mas como seres humanos que têm uma história, uma cultura, um conhecimento que desejam compartilhar.

Não mais os restos, não mais a obscuridade, não mais a subserviência: igualdade. E mais do que igualdade: respeito.

E então eles, os negros, aparecem nas escolas, nas faculdades, nos restaurantes, nas praças. Competem em igualdade de condições nos melhores empregos. Não porque foram beneficiados por cotas, mas porque tiveram a oportunidade que, desde 1888, não se lhes deram: a oportunidade de mostrar que são gente, que podem e devem ser cidadãos como todos os outros, e não cidadãos de segunda ou terceira classe.

As cotas apenas abrem portas, não fazem milagres. O milagre é a ascensão econômica de uma imensa quantidade de cidadãos desprezados porque a cor de sua pele é diferente, como se cor de pele fosse o estigma da pobreza e do desprezo.

E então, como os negros se tornam, pouco a pouco visíveis, o racismo de dezenas e dezenas de anos aflora à mente dos escravocratas de plantão, dos imbecis que acham que a cor da sua pele os torna superiores, dos fascistas que desejam um mundo de castas que se mantenham escravizadas para seu benefício, dos falsos democratas e defensores de doutrinas absurdas, baseadas apenas no seu próprio interesse. No seu interesse econômico, disfarçado de posição ideológica, ou a ideologia racista justificando seus mais baixos instintos.


Não, não há racismo no Brasil...