setembro 26, 2010

CIDADÃO SÃO PAULO





O veneno desta cobra, hoje, se adoça, vira mel. E enche-se de saudade de um tempo em que São Paulo, já metrópole, ainda se curvava ao talento de um homem simples, sempre de terno e gravata “brabuleta”, que cantava o Bairro do Bixiga, as ruas da cidade, as personagens comuns, que viviam, trabalhavam, cantavam ou morriam em seus becos.

Estamos falando do Charutinho.

Estamos falando de Adoniran. Aquele palhaço que transformava tragédia em samba. Que ignorava o falar elegante dos salões, para criar letras em legítimo dialeto popular, italianado, para falar de gente como ele.

Assisti, mais uma vez (quantas?), a um vídeo que qualquer um pode ver na internet, em que ele, Adoniran, encontra-se com Elis Regina num bar do Bexiga. Um bar simples, pé-sujo, onde almoçam, trocam confidências, cantam e, principalmente, dão muitas risadas.

A simplicidade da grande dama da canção ao lado do gênio de sambas inesquecíveis, seu inequívoco prazer em estar ao lado daquele homem alegre e de fala popular, a atmosfera de bar, os músicos concentrados no acompanhamento de uma letra que fala em tragédia – Iracema, meu grande amor foi você – a declamação séria e ao mesmo tempo irônica de Adoniran – você atravessou a rua São João, veio um carro te pincha no chão, o chofer num teve curpa, paciência, paciência – tudo isso torna o vídeo um momento de grande emoção, para quem admira a obra de ambos – Elis e Charutinho, o Adoniran Barbosa, cidadão São Paulo, símbolo da mixórdia étnica da grande metrópole.

E depois, eles saem pelo bairro, pelas ladeiras e escadarias do Bixiga, conversam com pessoas simples, interrompem por alguns segundos o jogo de bola da molecada, espiam por sobre os muros os terrenos abandonados, as casas decadentes dos mestres artesãos italianos do início do século, atravessam ruas cheias de kombis velhas e automóveis antigos, até a porta do teatro, onde se despedem. Cúmplices da beleza antiga e decadente da cidade que os acolheu e que os aplaudiu, talvez menos do que merecessem.

Realmente um momento antológico de saudade, de beleza, de emoção. Fica em nossa boca o sabor da culinária italiana, da carne de panela e da macarronada, e não deixa de surgir, no canto de nossos olhos, uma lágrima, uma lágrima por aqueles que cantaram uma São Paulo que ainda existe, sim, na nossa imaginação, na emoção do riso cristalino de Elis e no jeito bonachão de Adoniran.

Esse encontro ocorreu ontem mesmo, no ano de 1978.

Inesquecível Elis, com sua gargalhada, com sua bossa.

Inesquecível cidadão São Paulo, símbolo dessa terra, o velho Charutinho.

setembro 25, 2010

UMA CERTA ELITE CAIPIRA

(Henry Tuke - sous le soleil)




São ricos, muito ricos. Ricos e mal afamados. Ricos e inconsequentes. Ricos e bagunceiros.

Não têm o menor respeito à vida, alheia e própria. Não têm o menor respeito às pessoas. Não têm o menor respeito às mulheres. Tratam-nas como objeto, e ponto. Que devem estar disponíveis, sempre, mesmo que à força – da grana ou do muque.

Porque são moleques fortes, acostumados à vida rural, às vezes até mesmo a montar touros bravos em rodeios regados a uísque importado, animados por duplas sertanejas famosas e com muitas, muitas mulheres, algumas até famosas, modelos de revistas ou figurinhas carimbadas da televisão.

Constituem, com seus pais, familiares e agregados, a elite caipira do interior de São Paulo. E são a lata de conserva do que há de mais tradicional, antiquado e moralista jeito de viver das cidades médias e grandes do interior do Estado mais rico do País.

Copiam dos Estados Unidos da América aquilo que eles têm de mais conservador e fascistoide: desde as roupas estilo country, com chapéus, camisas listradas, jeans, botas e esporas, até o jeito de andar e falar, como os machões do velho oeste.

Em vez de cavalos, montam caríssimas vans e jipes de mais de cem mil dólares, com vidros escuros e aparelhagem de som de dar inveja a qualquer show de rock, para tocar em volumes ensurdecedores o último hit de uma dupla sertaneja qualquer ou de uma cantora cobiçada e admirada mais por suas pernas e seios do que pelas qualidades vocais.

Nos rodeios, gastam o dinheiro dos pais para verem e serem vistos, na ostentação barata de um poder provindo daquilo que move a economia não só do Estado mas também do País: o agronegócio.

Influenciam, com seu jeito rude de quem fez alguma faculdade apenas para colocar na parede o diploma inútil (isso quando terminam a faculdade) as milhares de pessoas que lucram de forma direta ou indireta com os negócios de seus pais, tios, primos etc., porque assim como os pais, tios e demais familiares, também eles serão, passados os arroubos da juventude, os líderes políticos regionais e até mesmo, aqueles mais espertos e menos broncos, de renome estadual ou nacional.

Suas idéias políticas, no entanto, não ultrapassam os muros do conservadorismo mais comum e mesquinho, com conceitos como família, trabalho, honra etc. É claro que a família é a deles, sempre; o trabalho, o dos empregados mal pagos e mal tratados de seus canaviais e fazendas e a honra, bem, a honra é aquela do “prenda suas cabritas que meu bode está solto”.

Catalisadores desse conservadorismo, são os novos coronéis de negócios milionários que implicam exportar milhões dólares de etanol, laranja, café, carne etc. e importar carrões, ideias e preconceitos estadunidenses, para manter cativo um extenso e bem nutrido eleitorado, espalhado pelas outrora afamadas terras roxas do Estado de São Paulo.

E como dinheiro traz poder e dinheiro e poder juntos arrebatam e arrebanham, eles, os jovens (e também os velhos) donos do agronegócio paulistano mandam e desmandam no Estado, inclusive sob os auspícios de uma certa mídia que lhes abana o rabo, sedenta ela também das migalhas desse poder e dessa grana toda.

É essa elite – enlatada e conservada em agro dólares – que vota e leva todos os seus agregados a votar em gente como Geraldo Alkmim – o arrogante primaz da Opus Dei – para manter o maior Estado do País nos trilhos seguros do conservadorismo demotucano aqui profundamente arraigado.

setembro 09, 2010

ATÉ ONDE VAI A ESTUPIDEZ HUMANA

(Bosch - pássaro)




Muito difícil abordar esse assunto, sem se indignar profundamente. Porque a estupidez humana, neste mundo globalizado, parece não conhecer limites.

Vamos aos fatos: um obscuríssimo pastor americano, cuja igreja é frequentada por não mais do que duzentos fiéis, ameaça pòr fogo no Corão, como forma de protesto contra os atentados de onze de setembro. Isso não passaria de uma grande bobagem, se, primeiro, não tivesse tido repercussão internacional e, segundo, não houvessem as lideranças islâmicas feito protestos veementes e até ameaças, o que deixou o mundo inteiro à beira de um ataque de nervos.

Ora, é estúpido queimar livros. Quaisquer que sejam. Mesmo como ato simbólico ou de protesto. Também é uma estupidez dar tanto valor a um mero objeto, considerado “sagrado”, por quem quer seja.

Nada é sagrado.

Em nome do sagrado, milhões de pessoas têm morrido diariamente. Em nome do sagrado, os homens têm-se engalfinhado e se matado ao longo da longa trajetória do deísmo absurdo e inútil, em nome de deuses carniceiros que esbravejam suas ameaças em páginas de livros considerados sagrados pelas religiões estúpidas que se espalham como praga pelo mundo afora.

Absurdos são todos os deuses e todos os seus profetas. E estúpidos são todos os homens que neles crêem, principalmente, quando essa crença se transforma em razão não de viver, mas de morrer em seu nome ou em nome de seus princípios.

Por isso, um pastorzinho fanático e medíocre, líder louco e megalomaníaco de uma mais que obscura igrejola do interior dos Estados Unidos, ameaça a paz mundial (o que é uma total exagero, claro), ao fazer ameaças idiotas em nome do seu deus, porque considera que todos os que não seguem esse seu deus são demoníacos. Aliás, como todos os demais que seguem outras religiões também consideram todos os demais filhos do demônio.

Cultivam deuses e demônios como cultivam couve em suas hortas esses imbecis. E em nome de seus deuses e de seus demônios, ameaçam centenas, milhares, talvez milhões de vidas em todo o mundo.

A estupidez humana, regada a deísmo e fanatismo, não tem mesmo nenhum limite.