... mas, dentro da minha
concepção profundamente pacifista, abomino o atentado que matou os cartunistas
da revista francesa "Charlie Hebdo" e outras várias pessoas, em
Paris, nesse começo de ano que promete continuar a rotina de chacinas,
atentados, levantes, guerras e outras misérias humanas, que não têm dado sinais
de arrefecimento há, pelo menos, um século.
E por que condeno o atentado e
não apoio o tal jornal?
Bem, vai ser uma longa conversa.
Em que a única promessa que faço é: vou desagradar a gregos e troianos. Porque
não acredito que haja mártires nem heróis nem inocentes nessa guerra suja em
que a humanidade - principalmente os países da Europa e do Oriente e os Estados
Unidos - estão metidos e enterrados até o pescoço, juntamente com todos as
seitas religiosas que grassam pelo mundo.
Primeiro, o lado político, social
e, claro, econômico.
Basta uma olhadinha na história
da Europa e dos Estados Unidos, para perceber o grau de barbárie com que eles,
os ditos "civilizados", se lançaram na conquista de colônias na
África e no Oriente. Mataram e espoliaram todos os territórios conquistados,
deixando um rastro de miséria e ódio que poucos historiadores tiveram coragem
de detalhar. Espalharam o preconceito através da pregação da hegemonia
"racial" contra todos os que eram diferentes, em termos de cor, de
hábitos, de cultura. Engrossaram seus orçamentos à custa do butim e da dor de
milhões de seres humanos tratados como gente de "segunda", como
escravos, como escória. A segunda grande guerra foi o ápice desse processo de
destruição e ódio. Quando os povos colonizados conseguiram, enfim, a alforria,
seu território estava exaurido, suas economias em frangalhos e seus povos,
muitas vezes, mergulhados em lutas intestinas e fratricidas, resultado da
imposição de fronteiras artificiais, pelos "sábios" reunidos em
grandes assembleias de vencedores. Aos poucos, a Europa, pela proximidade,
começou a ser "invadida" por hordas de migrantes, atraídos pelas
oportunidades oferecidas por um capitalismo selvagem, mas que ostentava índices
crescentes de um progresso obtido principalmente pela especulação financeira,
numa bolha que prometia estourar em algum momento e que, realmente, acabou
estourando. De início "tolerados", esses imigrantes acabaram pagando a conta da incúria dos europeus,
quando a bolha estourou. Assim como os nazistas imputaram aos judeus suas
mazelas, também os povos da Europa jogam nas costas dos imigrantes o seu ódio,
o seu desprezo, os seus preconceitos. São as minorias que têm o lombo crestado
de tanto apanhar que, de novo, recebem
as chicotadas dos "cultos" e "civilizados" eurasianos, que
nunca os assimilaram totalmente. É claro que pesa nessa história um longo,
longuíssimo estranhamento, desde os primórdios da alta idade média até nossos
dias, de lutas, de invasões, de não convivência e aceitação, mas de olhares enviesados
de uns para os outros, por serem "diferentes". E não se pense que os
"coitadinhos" espoliados sejam assim tão inocentes: sempre que
puderam, deram o troco, um troco miserável frente à grandeza da dívida, por
absoluta falta de meios. Porque, se puderem, se tiverem a ocasião e os meios,
terão contra os seus exploradores o mesmo espírito de vingança que tem norteado
as relações entre esses povos. Enquanto isso, vão fazendo os estragos que
podem, através de atos terroristas praticados por organizações criminosas que
não representam exatamente o pensamento do povo ou dos povos de onde procedem.
São apenas e tão somente criminosos com uma falsa causa, a causa religiosa.
E, então, entramos no problema
religioso.
Comecemos corrigindo a expressão
usada: religião. Essa palavra tem origem em "religare", ou seja,
abrange o conceito de que é uma organização ou algo parecido que tenha por
finalidade "religar" o homem com deus. Ora, se não há deus, não há o
que "religar". Essa, a primeira questão. Portanto, não há
"religiões", mas seitas que se dizem, cada uma à sua maneira, dona de
deus, dona da verdade. Desde que o homem inventou a divindade, os espertalhões
souberam se apossar da imagem dessa divindade, para tirar algum proveito da
submissão da pessoas, obtendo várias benesses advindas principalmente do poder.
As seitas nasceram intimamente ligadas (e não exatamente "religadas")
ao anseio de poder. E com ele conviveram desde sempre. Seus líderes ou eram os
chefes de tribos, de legiões, de estados, ou eram íntimos dos detentores do poder,
influenciando de alguma forma todas as suas decisões. No ocidente, o
cristianismo - uma seita tão bárbara quanto todas as outras - somente se tornou
um pouco mais civilizado, quando, a partir do século XVIII, depois de torturar
e queimar milhares de mulheres acusadas de bruxaria e de outras milhares de
pessoas acusadas de heresia, para se apossar de seus bens, começou a
desligar-se lentamente do poder político. As nações começaram a tornar-se
laicas, pelo menos em termos oficiais. Já as demais seitas - o islamismo entre
elas e, talvez, a mais importante - têm origem mais recente do que o
cristianismo e ainda não passaram pelo processo de "modernização", ou
seja, ainda não "largaram o osso do poder político". Não são, por
isso, mais bárbaras do que o cristianismo. Estão apenas numa fase anterior de
evolução. Os princípios gerais entre todas as seitas são, no fundo,
extremamente semelhantes. Não há grandes diferenças filosóficas e teóricas
entre elas. As diferenças mais profundas se situam todas na concretização da
fé, ou seja, nos sistemas de relacionamento dos fiéis com seus profetas e
líderes. Mas isso é o suficiente para despertar entre eles ódios seculares,
porque o deus de cada uma é sempre um deus de exclusão: para defender seu
território, seu rebanho, cada um prega a extinção do outro ou sua demonização.
Se não está comigo, está contra mim (e nem vou colocar entre aspas a citação,
porque, no fundo, ela não tem um dono exclusivo). E ponto.
Temos, até agora, dois dados de
realidade: o preconceito entre os povos, com a inegável ojeriza do europeu a seus
imigrantes africanos e orientais, por questões históricas, raciais, teístas e
econômicas e seitas que se odeiam em nome de seus respectivos deuses e
profetas.
Analisemos, agora,
especificamente, o caso do "Charlie Hedbo".
Os países muçulmanos não têm o
que nós chamamos de "liberdade de expressão", porque lá prevalece a
lei islâmica, a voz do profeta, a teocracia. Se o profeta diz que sua imagem
não pode ser reproduzida, isso não é, para eles, um preceito
"religioso", mas a lei. E uma lei que tem o aval do deus é uma lei
absoluta. No ocidente, eu posso xingar o papa, ironizar a fé das pessoas,
criticar atos de extremismo etc. As pessoas atingidas ficarão com ódio de mim?
Quase certamente, sim. Poderão fazer algo contra mim? Dentro da lei, sim. Podem
me processar etc. Mas não passa disso. Porque, há alguns limites éticos que eu
não posso ultrapassar. Se posso satirizar o Cristo, devo tomar cuidado para não
exagerar na dose e não entrar em aspectos que sejam tabus ou de mau gosto.
Imagine se alguém publica uma sátira com o profeta do cristianismo em ato
libidinoso homossexual (deixo à sua imaginação): é claro que isso provocaria
muito mais do que um escândalo. Eu tenho o direito de fazer isso? A resposta,
por mais paradoxal que seja, é: sim, tenho o direito de fazer isso. E
provavelmente - porque o cristianismo, em geral, não exatamente algumas de suas
subseitas - já tendo mitigado a sua sede de sangue, de vingança, eu não
correria grande risco de vida. Ou seja, não haveria nenhum líder religioso a
exigir de seus fiéis, de forma clara e taxativa, a minha morte. Teria, no
entanto, de enfrentar muitos protestos e quase certamente um processo legal por
intolerância religiosa ou algo assim. Impensável tal atitude para os
muçulmanos, entretanto.
Lembremos o caso romance
"Versos Satânicos" de Salmon Rushdie, que se viu obrigado a viver
longos anos totalmente escondido e sob proteção policial, porque um aiatolá
decretou contra ele uma "fatva", uma sentença de morte, por
considerar o seu livro ofensivo ao profeta do islamismo. E pergunta-se: têm os
seguidores de tal profeta o direito de decretar a morte de quem quer que seja
por ofensa - seja ela qual for - à sua crença, a seus valores, a seu profeta? A
resposta é óbvia e taxativa: claro que não. Tal ato, em nome de um deus, é
simplesmente barbárie, algo condenável sob todos os aspectos. Porque, embora
todas as seitas sejam sanguinárias, tenham histórico de lutas e guerras, até
mesmo de extermínio, e o deus de todas elas prescreva a destruição do
"inimigo" (basta ler com atenção qualquer um dos livros ditos
sagrados dessas seitas, que lá encontrarão histórias e exemplos de vingança em
nome do deus), hoje, depois de tanto sangue derramado, nossos princípios éticos
começam a despertar para o fato de que ninguém tem o direito de tirar a vida do
outro, a não ser em casos excepcionalíssimos (autopreservação, por exemplo).
Os desenhistas do jornal francês
tinham o direito de produzir charges e piadas contra os muçulmanos, por mais
que isso incentivasse até mesmo o ódio contra esse povo e sua seita? Pelo que
pensamos até agora, sim. Eles tinham o direito e a liberdade de fazer o que
fizeram. Então, entramos na reta final de nosso raciocínio: deviam ser mortos
pelo que fizeram? Absolutamente, não. Erraram eles, ao "cutucar a onça com
vara curta", ao desprezarem princípios comezinhos de respeito ao outro e,
não são por isso, exatamente heróis, por mais que reconheçamos seus talentos,
mas absolutamente não mereciam morrer por causa disso. Essas mortes foram,
repito, um ato de absoluta barbárie.
E uma última palavra, para pôr
uma pá de cal nisso: os líderes de seitas, de todas elas, são muito estreitos
de pensamento. Uma ofensa revidada repercute em favor de quem ofende. Alimenta
a polêmica. Acende os holofotes para algo que, na maioria absoluta das vezes,
ficaria restrito a um grupo específico de pessoas, sem maiores repercussões.
Salmon Rushdie era um escritor de poucos leitores, em termos mundiais. Não sei
se ganhou muitos mais leitores, depois da sua condenação à morte, mas esse fato
tornou-o mundialmente conhecido. O mesmo vale para o "Charlie Hebdo":
quantas pessoas realmente o leem? Na verdade, a maioria absoluta das pessoas
que hoje estampam cartazes "Je suis Charlie" nunca tinham lido ou
ouvido falar desse jornal. Com o assassinato cruel, brutal, ignominioso,
absurdo de seus cartunistas, a próxima edição sairá com um milhão de exemplares
e, com certeza, será reproduzida e comentada em termos mundiais. Se os
terroristas, por sua vez, se tornaram "heróis", por seu feito odioso,
para uma parcela de extremistas, milhões de pessoas estarão bradando por
liberdade de expressão, em todo o globo, mesmo que muitos saibam que isso seja
uma utopia. Como é uma utopia um mundo sem ódios. E sem retaliações e
vinganças.