dezembro 21, 2014

PENSAR FORA DA CURVA







Incomoda-me o pensamento raso de pessoas inteligentes e cultas, ao dizer, por exemplo, que "nunca se roubou tanto neste país", ou, ainda, "votava no PT, mas quando Lula abraçou o Maluf, eu me desiludi"... Há vários outras afirmativas de mesmo teor por aí, mas vamos ficar nessas duas.

Corrupção. Não é invenção do PT. Não é invenção do PSDB. Não é invenção de nenhum partido político atual ou do passado. Ela existe, sim, desde que o mundo é mundo. Mas, para ficarmos apenas no nosso País, a corrupção instala-se com grandes negociatas a partir do começo da modernização, lá na década de quarenta, cinquenta, quando o Estado começa a investir em grandes obras. Brasília não estaria pronta e inaugurada em três anos, se houvesse Ministério Público naquela época, e se Juscelino não tivesse fechado os olhos às falcatruas das empreiteiras. Era uma questão de sobrevivência do Governo e, por extensão, do próprio Estado. As grandes empreiteiras nasceram ali, na construção de Brasília e começou assim, de uma forma singela: chegava o caminhão com material para descarregar e era registrado na entrada; mas ele não descarregava: saía do canteiro de obras e voltava a entrar pelo mesmo portão, e isso várias vezes. O candango encarregado do controle devia receber o seu quinhão para fechar os olhos e fazer os registros. E assim... o monstro cresceu, Brasília foi inaugurada, Juscelino deu a volta nos militares que o queriam deposto. A bomba só veio a estourar nas mãos de Jango. Mas isso é outra história.

O golpe militar colocou no poder a "moralidade pública" de fachada. Os generais tinham contas a pagar, pelo financiamento do movimento, contas que industriais e fazendeiros (os dois pilares da economia, naquela época, e talvez ainda hoje) cobraram com juros e muita correção monetária e incorreção ética. E os apoiadores do golpe tornaram-se grupos poderosos, à custa de muita estrada mal acabada, de muita obra superfaturada, que os militares engrandeceram com o mote desenvolvimentista. Não eram os ditadores exatamente corruptos (eles mesmos não enriqueceram devidamente), mas permitiram que os amplos e gordos úberes governamentais fossem devidamente sugados com muito apetite por quantos os apoiassem e entrassem no jogo cujas regras eles decidiam, sem Ministério Público, sem imprensa, sem oposição, sem fiscalização.

Os governos democráticos subsequentes herdaram a estrutura corrupta montada - e muito bem montada - durante os governos militares. Era simplesmente impossível ir contra ela. Podia-se ser mais leniente ou mais rigoroso com as licitações, mas seria suicídio político ir contra a óbvia cartelização das grandes empreiteiras. Fizeram-se leis, leis até rigorosas contra isso. Mas - todos sabem - malandro que é malandro se adapta. Quanto mais rigor de um lado, mais criatividade do outro, para driblar a lei e continuar mamando. Sempre foi assim. E não é  porque foi sempre assim que devemos ser vacas de presépio e nos conformarmos. Ao contrário: a luta contra a corrupção deve ser um processo diário e contínuo de todos os cidadãos, a começar pela suas próprias vidas privadas. E sem moralismos. Porque é uma questão de sobrevivência e melhoria de condições da sociedade. Sabemos todos que cada centavo que vai para a corrupção significa menos serviços públicos de qualidade.

A punição à corrupção sempre ficou restrita aos entes públicos, isto é, quando - e isso ocorria, sim, mas de forma bem menos sistemática do que gostaríamos - se descobriam "mal feitos", o funcionário público era demitido, processado e raramente ia para a cadeia. Aí incluindo na categoria "funcionário público" os políticos e governantes de todos os escalões do poder. Só agora, de muito pouco tempo para cá, é que há uma intensa fiscalização por órgãos bem estruturados e independentes, como o Ministério Público e a Polícia Federal. Mesmo que esses órgãos cometam exageros, de vez em quando, e até mesmo errem, sua independência e competência só são possíveis se houver um governo que banque essa ideia e realmente permita que eles façam o seu trabalho. Por mais que queiramos, a influência política nesses órgãos é, sim, intensa. Basta uma palavra, um despacho do Palácio da Alvorada, para que muitas investigações acabem na gaveta da CGU (Controladoria Geral da União), como muito bem sabemos, ou fiquem anos e anos nos meandros da Justiça. Além do que, é o Palácio do Planalto que escolhe e nomeia -  direta ou indiretamente - os responsáveis pela investigação e julgamento dos corruptos.

Portanto, pensar um pouco fora da curva, neste momento, em relação à corrupção, é não entrar no jogo da mídia, que nos quer fazer crer que "nunca se roubou tanto neste País", quando, na verdade, a afirmação correta é: "nunca se puniram tantos corruptos neste País"! Porque há independência e competência dos órgãos investigativos, mesmo que algumas denúncias possam estar viciadas por jogos de interesse, e certos "vazamentos" se tornem, muitas vezes, seletivos. É o preço que se paga. E parece que há disposição da atual - e próxima - governante de continuar a pagar esse preço, mesmo que tenha de cortar em sua própria carne, o que vem acontecendo.

Jogo político. A redemocratização trouxe a necessidade de uma nova Constituição. E a "Constituição cidadã", nos dizeres de Ulysses Guimarães, sacramentou princípios éticos muito salutares para a sociedade que estamos construindo. Mas seu bojo - extenso e contemporizador - apresenta distorções que, pouco a pouco, comprometeram e estão comprometendo o desenvolvimento político do País. Se nos deu segurança jurídica e permitiu um novo modelo de sociedade menos injusta, o seu lado político - construído por políticos - deixa muito a desejar. Se a ditadura restringiu os partidos políticos a apenas dois, ARENA e MDB, faces ambos da mesma moeda, por mais que o segundo tentasse ser oposição (era uma oposição consentida, acuada, devidamente controlada por mecanismos de perseguição e cassação de direitos), a atual Constituição tomou o caminho oposto e permitiu a criação de uma quantidade tão grande de partidos políticos, que  nenhum ser humano consegue imaginar tantas ideologias a justificar cada um deles. São, portanto, partidos "fisiológicos", legendas de aluguel, que vivem e sobrevivem de uns poucos "puxadores de votos" que não têm nenhum tipo de escrúpulo, quanto mais algum tipo de pensamento ou de ideologia política, muito menos projeto político para a sociedade, apenas o projeto pessoal de chegar ao poder ou dele se aproveitar, não importando qual partido esteja governando.

No meio desse imbróglio, três grandes agremiações: PT e PSDB que, por injunções eleitorais e ideológicas, têm polarizado as atenções e têm-se revezado no poder, sem, no entanto, alcançar a maioria, e, entre eles, talvez o maior partido de todos, o PMDB que, também por injunções mais eleitorais e menos ideológicas, é grande e forte, mas não tem obtido sucesso na ascensão ao poder. Tornou-se, por isso, o fiel da balança. Em geral, apoia o vencedor, que não pode prescindir de seus votos em qualquer casa legisladora, desde o Senado até a menor câmara de vereadores de qualquer município. Tem, no entanto, o PMDB um defeito de origem: como era uma "frente ampla", um "movimento" contra a ditadura, abrigando descontentes de todos os naipes ideológicos, desde a direita insatisfeita com os militares até o mais radical comunista, continua abrigando em suas fileiras uma razoável quantidade de facções que não tiveram força para formar outro partido (como os petistas e peessedebistas, dos quais muitos vieram do PMDB) ou não lhes interessa sair do partido, pela força da sigla ou por outros interesses, muitas vezes regionais. Exemplifico com o PMDB do falecido Orestes Quércia, em São Paulo, que sempre divergiu da direção nacional, mas nunca partiu para a independência. Assim, há dentro do PMDB facções que são de direita e apoiam a direita, e há facções que são de esquerda e apoiam a esquerda, além dos "fisiologistas" de sempre.

Assim, nem PT nem PSDB, quando chegam ao governo - qualquer governo - conseguem governar sem o apoio do PMDB. Que tem sempre uma facção disposta a apoiar, e outra que se diz "independente" ou, às vezes, até fazendo o papel de oposição ao próprio governo que o partido apoia. Uma miscelânea, como podemos imaginar. Logo, quem está no poder precisa contar com alguma parte do PMDB, sem dúvida, mas quase sempre isso não é suficiente. E aí entram os "nanicos", as siglas "de aluguel", com seus parcos, poucos e importantes representantes legislativos. E negociar com eles é um jogo de paciência e de acomodação de interesses conflitantes.

Pergunta-se: por que negociar com eles? Porque existe a tal "governabilidade". Se o chefe do executivo - desde o prefeito até a presidência da República - não tiver votos no legislativo, para aprovar suas medidas, seu governo, suas contas, ele simplesmente não consegue governar.

Então, quando Lula é abraçado por Maluf, muito mais do que o abraça, ele não estava acolhendo o político e corrupto Paulo Maluf, filhote e sobrevivente da ditadura, mas abraçando e acolhendo o seu partido, porque, naquele momento, sem o partido do Maluf, Lula não conseguiria maioria suficiente de votos para governar. Dizem que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. A frase é forte, mas não a interpretemos apenas como corrupção financeira e ética, mas também como a corrupção decorrente da própria necessidade do poder, que é governar. E o ato de governar, em quase todas as democracias constitucionais, não importa o tipo de regime, recai nas mãos do mandatário principal, presidente, primeiro ministro ou que outro nome tenha. Esse, sim, tem que ser ético o suficiente para saber que, ao chegar ao "inferno", ao poder, tem que abraçar o capeta, em nome de seus próprios princípios. Se esses princípios são legítimos, ou visam ao bem público, esse "pecado" é o que os católicos chamam de "venial", de pouca monta, sem importância. Se esses princípios não "rezam" (para continuar com as metáforas "cristãs") pela melhor ética, então, sim, o ato de "abraçar o capeta" pode se traduzir na transformação da vida do cidadão em um verdadeiro "inferno". No caso de Lula, pelo que vimos de seu governo - que teve erros e acertos, mas muito mais acertos do que erros - o "inferno" ficou longe, muito longe, da vida do cidadão comum. Porque foi o presidente que iniciou uma verdadeira revolução neste País, ao conseguir iniciar o movimento de inclusão de milhões de brasileiros no mercado de trabalho, tirando-os da pobreza absoluta. Note que disse "iniciar", porque o caminho é longo, como todos sabemos, depois de mais de quatrocentos e cinquenta anos de governos preocupados apenas com a elite e com os mais ricos.

Então, pensar fora da curva, no caso da política (que exemplificamos com o abraço entre Lula e Maluf - o ético e o corrupto), não é imaginar que Lula passou a apoiar o Maluf ou a ser igual a ele, como nos quis e nos quer fazer pensar a mídia de um olho só, mas dar a ele o crédito de sua história pessoal, política e do estadista que ele foi. E achar que, assim como há tantos políticos desonestos e safados, há outros tantos honestos e bem intencionados. Desistir da política por causa dos primeiros é fazer o jogo dos que querem continuar a apoiar aqueles mesmos de sempre, aqueles que fizeram desse País um dos campeões de desigualdade e de pobreza no mundo, apesar de sua riqueza territorial zelosamente explorada por poucos. Se esses que corrompem, que roubam, que querem a manutenção do status quo de pobreza de nosso povo continuam a ter votos - como o próprio Maluf e muitos outros - é graças ao pensamento dentro da curva que nos impõem os meios de comunicação que estão  nas mãos exatamente dos que pensam como os que sempre governaram esse País.


Sei que é difícil, muito difícil, pensar fora da curva. Mas não temos outra saída. E se você pensou que pensar fora da curva é apoiar o PT (como eu, até agora, apoio), você está saindo de uma curva para outra. Pensar fora da curva é ter a liberdade de apoiar qualquer partido ( e é essa a liberdade que eu exerço), mas não ficar no discursinho padrão da direita, e dizer coisas como as que colocamos nos dois exemplos acima. Apoie você o PT, o PSDB, o PMDB ou qualquer outro partido, mas não entre no jogo sujo e manipulador de pensar só o que eles querem que você pense: saia do quadrado, entre também no redondo, no triângulo, no tetraedro...