dezembro 27, 2023

SÃO PAULO, A METRÓPOLE DESGOVERNADA

 

(foto da internet, sem indicação de autoria)


Final de ano: 2024 bate às portas da cidade desgovernada.

Desgovernado, adjetivo, tem, segundo o dicionário, os seguintes significados: 1. que não tem governo ou está mal administrado; 2. descontrolado (diz-se de veículo, animal de montaria).

Para qualificar São Paulo, uso o significado número 1 literalmente, ou seja, uma cidade que, na minha opinião, sempre foi mal administrada (com raríssimas exceções que, aliás, para repetir um clichê, confirmam a regra). Porém, ressalto que o significado número 2 cabe perfeitamente, de forma metafórica, a essa cidade que parece sem rumo, descontrolada, o que significa “sem futuro”, ou sem um futuro que seja lógico e possível.

Tenho batido nesta tecla, sempre que posso: São Paulo não pode continuar crescendo. São Paulo precisa frear seu crescimento e começar a andar para trás, ou seja, precisa diminuir.

Numa metrópole com 12 milhões de habitantes, é humanamente impossível haver qualidade de vida.

Se levarmos em conta as condições geográficas, topográficas, climáticas, hidrográficas e outras mais, uma população de 7 a 8 milhões de pessoas seria o limite para se ter algum grau de civilização ou civilidade, de condições de vida razoavelmente confortável, de possibilidade de dar à população o mínimo necessário para viver e conviver, sem muito sufoco.

Pensemos nas condições geográficas da capital paulista. Vivemos num planalto, com vales e montanhas, com centenas de rios, sem mais locais com condições de expansão sem que as distâncias se tornem quase impossíveis de serem transpostas. (Entre os extemos da cidade – da Zona Sul para a Zona Leste – já são mais de 80 quilômetros!) A cidade está literalmente cercada de outros municípios, que se tornaram, muitas vezes, cidades-dormitório, e que fazem parte do que chamamos “a grande São Paulo”, cujo número de habitantes extrapola em muito os 12 milhões a que nos referimos.

Para onde, então, cresce a cidade?

A cidade cresce para cima! Verticaliza-se. Permitem-se prédios cada vez mais altos. Com mais gente dependurada em apartamentos cada vez menores, em todos os bairros. Eu disse: todos! Porque a sanha dos empresários da construção civil não tem limites e essa sanha é devidamente alimentada por leis cada ano mais permissivas, aprovadas pela Câmara de Vereadores, cuja maioria ou é estúpida ou está a soldo dessa canalha que destrói a cidade em nome de seus interesses imediatos.

Expliquemos: cada prédio construído modifica o microclima, impedindo a circulação do ar, exigindo mais ruas asfaltadas, eliminando a cobertura florestal, impermeabilizando o solo, mais garagens para automóveis, mais transporte público (que anda a passo de tartaruga), mais água, mais esgoto, mais energia elétrica. Multiplique isso por milhares e milhares de prédios que se erguem ano a ano, década a década, por toda a cidade, em todos os bairros e chega-se a uma conta que não fecha.

O planalto onde se situa a cidade de São Paulo é uma bacia hidrográfica com centenas de rios, riachos e ribeirões. Onde eles estavam, em sua maioria? Nos fundos de vales. O que existe hoje nos fundos de vales da cidade, como o Vale do Anhangabaú, a Avenida 23 de Maio etc. etc. et.? Avenidas asfaltadas, por onde literalmente se arrastam milhares e milhares de veículos (São Paulo tem mais 8 milhões de veículos registrados!).

Quando chove – e as chuvas torrenciais têm-se tornado comuns na cidade, por vários motivos, como veremos adiante – para onde vai a água, se os rios, riachos e ribeirões estão encanados, canalizados, espremidos debaixo das ruas e avenidas? A resposta é óbvia: cada vez mais aparecem pontos de alagamentos e inundações. Nem é preciso falar o prejuízo que isso traz para os moradores...

Dissemos que cada prédio construído muda o microclima da região e a somatória dessas mudanças traz para a cidade a mudança de seu clima, com maior aquecimento, maiores bolsões de calor, agravados, atualmente, pelas mudanças globais do clima, com as quais todos se preocupam. Então, a cidade se torna mais quente, com mais evaporação, e consequentemente chuvas mais intensas... O efeito disso todos sabem e já a ele me referi acima.

São Paulo é um desastre urbanístico.

Um desastre urbanístico que começou nos inícios do século passado e que tem se agravado paulatinamente, ano a ano, com a estupidez de administradores que não tiveram nenhuma preocupação que não fosse a abertura de novas avenidas, de mais ruas, de enterramento dos rios, riachos e ribeirões como solução para as enchentes (uma solução, repito, estúpida), que privilegiou, principalmente a partir da metade do século passado, o automóvel, com a construção de novas avenidas (de fundo de vale!) , viadutos e túneis.

Um desastre urbanístico configurado, principalmente, com a entrega literal da urbanização da cidade às construtoras, permitindo cada vez mais que elas destruam parques, jardins, áreas verdes enfim, para o famigerado adensamento populacional, sem que os cuidados com transporte, saneamento básico etc. acompanhem esse crescimento exponencial.

Qual a solução para esse desastre urbanístico, que se chama São Paulo, e que parece aumentar a cada dia, para desespero dos paulistanos?

Uma breve observação: uma pesquisa, que pouco se divulgou e de que pouco se fala, realizada há alguns anos, traz um dado fundamental para o que consideramos como possível solução para os problemas cruciais da cidade de São Paulo. Perguntadas a respeito, cerca de 30% das pessoas que moram aqui declararam que gostariam de deixar a cidade, de morar em outro lugar ou de voltar para suas cidades de origem. E mesmo muitos paulistanos, se tivessem oportunidade, sairiam da cidade onde nasceram.

Está aí, na minha modesta opinião, a solução para os males da grande metrópole.

Os governos municipal, estadual e federal deveriam unir-se num plano coordenado que facilitasse a saída dessas pessoas da cidade, voluntariamente, com o incentivo de emprego, moradia, melhores condições de vida etc. em cidades ou mesmo em regiões agrícolas tanto do interior paulista quanto de outras cidades do país que pudessem, quisessem e se comprometessem com esse plano e recebessem o necessário incentivo para acolhimento das famílias que aderissem.

É claro que não é um plano de fácil execução, mas não impossível nem utópico, desde que haja vontade política de todos os envolvidos. Há regiões e cidades do Brasil que receberiam de boa vontade uma mão de obra razoavelmente promissora e especializada, já que se poderia até mesmo incluir no planejamento, como atração aos aderentes, cursos de formação ou de reciclagem, até mesmo para os filhos adolescentes desses futuros emigrantes.

Não seria um êxodo repentino, mas executado ao longo de vários anos, de uma década ou mais, que daria melhores condições de vida a centenas de milhares de cidadãos descontentes com a cidade grande, além de tonar a metrópole pouco a pouco mais viável, mais confortável e mais aprazível para os que aqui permanecerem.

Para isso, basta que São Paulo volte a ser governada por um prefeito de visão humanística, de vontade política, de trânsito entre todos os demais poderes, que não veja como loucura um plano como esse e que compre, portanto, a ideia e busque formas para viabilizá-la, para que ela – a cidade – encontre, enfim, uma saída que não seja essa corrida desgovernada para o caos que, aliás, já está batendo à porta de todos.

dezembro 22, 2023

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO NUM MUNDO CAPITALISTA

 

(Albert Bettannier - la tache noire, 1887)


Respeito muito o jornalista Luís Nassif. E quando ouço um vídeo em que ele diz que o Ministério da Educação está dominado pela Fundação Lemann, um dos esteios do capitalismo mais tenebroso de nosso País, só posso ficar alarmado. Principalmente pelo fato de que é um ministério comandado por um petista, Camilo Santana, ex-governador do Ceará, onde obteve avanços históricos no terreno educacional. Portanto, é um nome de respeito, mas um político, não exatamente um educador, já que as conquistas educacionais do seu Estado foram obra de um administrador competente.

Então, me vem uma dúvida atroz: se Camilo Santana está se deixando enrolar – e é essa a palavra exata: “enrolar”, “enganar” – ao ouvir o “canto da sereia”do Lemann e seus asseclas, isso é ingenuidade ou ignorância da importância de seu Ministério dentro de um governo democrático?

Não é uma pergunta fácil de responder, por isso vou tentar levantar algumas hipóteses antes de condenar ou absolver o ministro. Advirto que não sou um especialista em educação, embora tenha sido professor durante a maior parte da minha vida, sendo essa a minha formação. Sei que uma coisa é militar no magistério; outra, bem diferente, é ser um Educador, ou seja, uma pessoa que tem formação em Filosofia da Educação e pensa a Educação como um processo complexo e extremamente importante dentro da sociedade.

Feita essa ressalva, vamos tentar trazer algumas ideias que me acossam, quando penso em educação. E vou trazer essas minhas reflexões dentro do contexto de um mundo capitalista, o mundo em que vivemos, já que é impossível nos livrarmos do capitalismo, pelo menos no curto ou médio prazo. O mundo é assim e, embora eu desejasse um mundo diferente e até, se tivesse oportunidade, lutaria com todas as minhas forças para mudá-lo, ou seja, para acabar com o capitalismo, não posso deixar de inserir essas minhas reflexões na realidade em que vivemos.

A opinião que o povo tem de educação é bastante rasa (e não há nisso nenhuma condenação, apenas constatação): espera-se que o poder público ofereça escola e merenda para seus filhos. E escola de qualidade é aquela que leva a criança e o adolescente a obter conhecimentos suficientes para enfrentar a fase adulta de sua vida, ou seja, ter uma profissão e viver dignamente. Outras discussões, como ideologia do que se ensina, currículo escolar, metodologia educacional etc. são secundárias e, em geral, não são compreendidas claramente pelo povo. Claro que ninguém é ingênuo a ponto de pensar que todos os jovens se tornarão “doutores” (e esse desejo, legítimo, percorre todas as classes sociais), que todos chegarão ao ensino superior, visto, em geral, como o ponto máximo do processo educacional. Uma boa parte da população já se dá por satisfeita, quando os filhos obtêm uma profissão. Assim, as escolas profissionais tornam-se importantes e não vamos discutir isso aqui, já que é matéria para outro momento e outras reflexões, não menos importantes.

O que eu quero dizer com o parágrafo anterior é que discutir educação, para a população em geral, é discutir sua universalização, de preferência, de forma gratuita. Mas, aceitam-se outras possibilidades, como bolsas de estudo do governo, financiamentos etc. O importante é ter escolas, e a qualidade delas será medida apenas pelo sucesso de seus filhos em “achar colocação” no mercado de trabalho. Quaisquer outras discussões só ganham algum relevo, quando provocadas por algum factoide. Lembro o famoso “kit gay”, que as comunidades evangélicas disseminaram para demonizar o Partido dos Trabalhadores. Essa bobagem, no entanto, ganhou as consciências e provocou um grande estrago nas hostes progressistas. Minha hipótese é que isso não tenha surgido da imaginação de pastores (que eu acho que não têm capacidade para tanto), mas de laboratórios de manipulação da extrema direita, interessada, como sempre, em tirar proveito ou da ingenuidade ou da estupidez, seja de quem for.

Portanto, discutir ideologia no processo educacional não faz parte do repertório popular, embora seja algo extremamente crucial, porque é através da ideologia programática que se constrói a mentalidade de uma geração.

Dou um exemplo histórico que repercute até hoje. Durante a ditadura getulista, o Ministério da Educação implantou, de forma consistente e sutil, a ideologia dominante na época: o horror ao comunismo (que nunca ameaçou o País) e o esquecimento da população negra. Há uma tese defendida junto à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Universidade Federal de Minas Gerais por Felipe Menezes Pinto, com o título de “O vermelho e o negro: intolerância, construção da identidade nacional e práticas educativas durante o Estado Novo (1937-1945)” que destrincha de forma clara e precisa os métodos de doutrinação utilizados pelo Ministério da Educação para incutir na população o anticomunismo e o racismo, através não só do currículo orientado pelo governo, mas também através da farta distribuição de imagens em livros, revistas, filmes etc. que, de forma sutil, alimentaram o “patriotismo” e o “esquecimento” da população negra, aprofundando o racismo estrutural vigente.

Esse verdadeiro massacre ideológico, que repercute até hoje, nunca teve uma discussão ampla nos meios de comunicação. É um fato absolutamente desconhecido pela maioria absoluta do povo, que ainda acha que o comunismo ameaça o Brasil e que os negros são uma “raça” inferior.

Assim, todos os projetos educacionais, mesmos os mais sérios e importantes, vieram sempre, ou tiveram que vir, mascarados em aspectos secundários do processo educacional, embora importantes, como: construção de escolas; preparação de professores (um ponto crucial, juntamente com a valorização profissional, geralmente relegado a segundo plano); merenda de qualidade (algo extremamente importante, principalmente para o ensino fundamental, mas muitas vezes visto como “esmola” pelo poder público); distribuição de material didático (aqui, às vezes, a sanha ideológica de pequenos grupos forma verdadeiras patrulhas) e uniformes (principalmente para o ensino fundamental) etc. Cito dois exemplos: a criação dos CIEPS na gestão do governador Leonel Brizola, em 1983, no Rio de Janeiro, inspirados por Darcy Ribeiro, e os CEUS, implantados em 2002 em São Paulo, pela gestão da então prefeita Marta Suplicy. Em ambos os casos, o conceito por trás das notáveis construções era o de educação integral para as populações mais carentes, unindo num local agradável e sadio não apenas o ensino e a descoberta de conhecimentos, mas também lazer, cultura, cidadania etc. Quando se dá ao aluno das classes menos favorecidas um bom ambiente escolar, acolhedor e de qualidade, está-se incutindo na mente deles, de forma indireta, que eles não são cidadãos de segunda classe e sim que merecem todas as oportunidades de uma vida digna. E mais: isso é a semente de cidadãos pensantes e críticos da realidade, coisa que incomoda as classes dominantes e muitos governos dominados pela ideologia classista de que pobre só serve como mão de obra barata.

Não sei como estão hoje os CIEPS e os CEUS, já que muitas outras administrações, com visões diferentes, passaram por essas cidades. No entanto, posso imaginar que os projetos originais sofreram alterações e, provavelmente, foram cooptados pelos interesses dos grupos governantes, como sempre acontece com as boas ideias: começam com as melhores intenções e acabam nas garras dos capitalistas e seu olhar sempre atento para tudo que possa, mesmo que de leve, contrariar seus interesses.

Não há dúvida de que vivemos um momento de predomínio da direita e, dentro da direita, de um extremismo neonazifascista, cujas ideias, que vinham há muito sendo gestadas, ganharam força com o golpe contra a presidenta Dilma e, posteriormente, com a eleição do tenebroso Jair Bolsonaro. O preparo para a tomada do poder, em várias áreas importantes do pensamento, principalmente na área educacional, foi devidamente preparado pelo governo Temer que, pelo que sei, abriu as portas para a Fundação Leman que, se não obteve o comando do Ministério da Educação no governo seguinte – haja vista os nomes absurdos que foram designados, nenhum com um mínimo de preparo e de visão educacional, nem mesmo pela tal Fundação – conseguiu, no entanto, “comer pelas bordas”, ou seja, designar e manter um pessoal dentro do ministério que, diga-se de passagem, é bem mais competente que os seguidores do ex-presidente, com a finalidade de controlar de forma indireta as rédeas da educação no Brasil. E é, possivelmente, esse pessoal “técnico”, mas ideologicamente alinhado com o pensamento da direita, que deve estar até hoje no Ministério da Educação, sob o olhar – repito: não sei se ingênuo ou de desconhecimento das reais intenções desse povo - do ex-governador e atual ministro Camilo Santana, o que eu acho um tanto estranho, em se tratando de um político, até prova em contrário, inteligente, experiente e bom gestor (como gostam de ser chamados os administradores da direita, para esconder seu viés ideológico).

Quando me refiro à “ingenuidade” possível do Ministro, preciso explicar claramente o que quero dizer. Como não é da área educacional, Camilo Santana, como político e administrador, pode estar sendo seduzido por propostas muito bem elaboradas e bem emolduradas de desenvolvimento do ensino, em termos de projetos que escondem suas verdadeiras intenções, ou seja, iludem-no com alternativas que parecem realmente interessantes (o “canto da sereia” referido acima), como a implantação de projetos de reforma e construção de escolas, preparação de professores, distribuição de material didático etc., mas que são apenas o iceberg de um projeto maior de cooptação das mentes de nossos jovens, através da ideologia da “escola sem partido”, amplamente propagada pelos papagaios a soldo dos interesses capitalistas de fundações como a do senhor Lemann. Ressalte-se que a pretensa desideologização da escola (“sem partido”) consubstancia-se na ideologização de valores da direita dessa mesma escola. Será Camilo Santana tão “ingênuo”, que não percebe essa manobra?

Se, no entanto, prevalece o fato de o ministro estar sendo enrolado, enganado por essa gente, cabe a algum de seus assessores mais ligado às forças progressistas abrir os olhos dele, já que a esquerda e, principalmente o Partido dos Trabalhadores, conta em suas fileiras com muitas e boas cabeças pensantes na área da educação. E cabe aqui a mesma pergunta: como pode uma “raposa velha” da política deixar-se enrolar por essa gentinha esperta, mas não tão esperta assim?

Qualquer que seja o motivo pelo qual o Ministério da Educação esteja dominado ou cooptado pela Fundação Lemann, a soldo da sanha capitalista de lucro a qualquer custo, deve o Presidente Lula ser devidamente alertado. E, já que o seu Ministro da Educação faz parte de sua cota pessoal de confiança, chamá-lo a uma conversa séria e devidamente assessorada por pessoas competentes, para que ele possa rever sua política, suas práticas, fazer a devida faxina no ministério e, se for necessário, deve até mesmo o Presidente buscar outro ministro que tenha mais conhecimentos da área educacional e não seja apenas um bom gestor, como eu acho que é o senhor Camilo Santana, para lhe fazer a devida justiça.

Concluindo, ressalto que o atual governo, de escopo claramente comprometido com as forças democráticas e com a reconstrução do País, depois de dois tsunamis – Bolsonaro e a pandemia – deve, a partir de segundo ano, com alguns de seus pilares e programas devidamente implantados e começando a render frutos, preocupar-se seriamente com a área ideológica, principalmente na educação – uma área sensível a formar mentalidades – para não entregar de novo o País a aventureiros despreparados, mas títeres de forças extremistas de tradição neonazifascista.

Podemos suportar governos de direita, isso faz parte do processo democrático. Mas não podemos tolerar jamais experiências extremistas, fascistoides e golpistas novamente.

outubro 27, 2023

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CAPITALISMO

 

(Escultura de  Francesco Queirolo: desilução ou liberação da decepção)

O capitalismo é, em si mesmo, perverso. Só não diria ser o capitalismo demoníaco, porque não acredito em demônios. Nem em deuses. Portanto, o sucedâneo do capitalismo, se um dia tivermos condições de destruí-lo, não será um regime celestial, no seu sentido metafórico de bondades e de existência livre de quaisquer dificuldades. Também não será socialista ou comunista, infelizmente, porque não acredito na capacidade humana de criar um regime de tal forma igualitário, que consiga administrar os bens de produção da forma preconizada por esses regimes, numa espécie de limbo angelical ou extremamente confiável na capacidade humana de convivência harmônica, como no caso do socialismo, ou numa ditadura do proletariado que realmente funcione sem que haja o surgimento de focos de resistência, de grupos que se tornem hegemônicos e acabem criando novas formas de dominação, no caso do comunismo. Vou tentar aprofundar um pouco isso, mais adiante. Por enquanto, volto à ideia de que, destruído o capitalismo, o que deverá sucedê-lo será um regime que não seja tão perverso, mantendo alguns de seus princípios, ainda que, pessoalmente, por condenar tão profundamente o sistema capitalista, eu preferia acreditar na utopia de uma sociedade sem leis, sem deuses, sem classes, ou seja, numa sociedade anarquista, no seu sentido mais radical. Isso, porém, sabemo-lo todos, é claramente uma utopia. Precisaríamos volta ao sistema de escambo. E o ser humano atual precisaria ser destruído e reconstruído em outras bases conceituais, conservando, todavia, a expertise cerebral adquirida da atual “civilização”, sem os seus desvios consumistas, ideológicos, teístas etc. Utopia, claro.

Deixemos as utopias e vamos a algo mais real, mais palpável, embora de enormes dificuldades de consecução. Não importa. É preciso que acordemos para a estupidez do capitalismo e tentemos, mesmo com ideias aparentemente absurdas, mitigar seus efeitos mais do que nocivos. A humanidade precisa acender a primeira vela, para que um dia a escuridão despareça.

Primeiro, esqueçamos por um momento esquerdas e direitas, as ideologias que nos sufocam. Também precisamos jogar no lixo da história todas as teorias e todas as metafísicas. Inclusive as religiosas. Não precisamos enforcar o último religioso nas tripas do último militar. Mas esqueçamos também os militares. Não servem para nada. Sem eles e suas armas e suas bombas e suas fronteiras, os governos precisam estabelecer tratados pacifistas de ajuda mútua, sem ideologias, de total respeito aos povos e suas culturas, de total respeito ao ambiente que nos cerca, não para salvar o planeta, mas para salvar a própria humanidade. O fim último de todo e qualquer governo deve ser a melhoria de condições de vida da humanidade, de toda a humanidade, sem preconceitos, sem racismos, sem fronteiras.

Em concerto entre si, os governos todos devem começar a estabelecer leis extremamente duras contra as grandes corporações, a fim de eliminá-las da face da Terra. Como? Proibindo-as de terem filiais em cada país, ou melhor, cada país deve nacionalizar todas as empresas que tenham capital e administração internacionais. Limitar ao máximo o poderio dessas instituições catastróficas para a humanidade, distribuindo seus dividendos entre todos os seus funcionários, que passariam a partícipes dos lucros e não mais meros fornecedores de mão de obra barata, explorada e até mesmo escravizada. As administrações regionalizadas dessas empresas passariam a ter indivíduos devidamente eleitos pelos colaboradores e controladas pelo poder público, possivelmente através do poder judiciário. O capital deixaria de se concentrar nas mãos de uns poucos, com o limite de ganhos de todos – empresários, sócios, colaboradores etc. Não é taxar as grandes fortunas: é acabar com elas. Não é necessário igualar ganhos, embora numa sociedade igualitária isso fosse o ideal, mas limitar os ganhos de tal forma que as diferenças financeiras e econômicas entre as classes seja a menor possível. Tudo isso, claro, sob o controle dos governos, repito, de todos os governos de todos os países, concertados entre si, na mesma política determinada a acabar com a miséria e a exploração do ser humano. Sem ideologias, sem populismos de direita ou esquerda, mas de forma séria e coordenada, a fim de que terminem as lutas intestinas de poder, num sistema democrático de escolhas diretas, pelo povo, de seus dirigentes devidamente compromissados com uma carta de intenções global que tenha por princípio realmente acabar com a selvageria do capitalismo, com a ditadura – essa, sim, incrustrada nas grandes corporações – de empresários que só visam ao lucro para si e para seus acionistas. Se todos os operários forem acionistas, participarem dos lucros, e esses lucros forem limitados, as desigualdades tenderão a desaparecer, já que o excedente dos lucros obtidos pelas corporações devidamente socializadas será revertido aos cofres públicos, para a realização de políticas de melhoria das condições de vida da população, como educação, transporte, lazer, cultura etc.

Enfim, isso é o que eu penso. É o que eu desejo. Talvez seja a minha utopia, mas está mais próxima de uma realização futura, a longo prazo, do que a eliminação do capitalismo através de uma revolução popular que nunca ocorrerá. Infelizmente.

maio 31, 2023

LULA, VENEZUELA E O MARCO TEMPORAL



Lula assobiou para os malucos poderem dançar. E eles não só dançaram, mas sapatearam, sambaram, boleraram, tangaram, funkearam. Gastaram saliva, gastaram texto, gastaram os dentes e ficaram roucos de tanto ranço. Estou falando, é claro, da mídia, da oposição, dos influencers e todos os que caíram de pau no Lula, porque ele estendeu tapete vermelho e defendeu o presidente Maduro, da Venezuela.

Concordo: Maduro não é flor que se cheire, em termos de democracia. Assim como muitos outros chefes de estado do mundo (nem vou perder tempo citando-os, por ser inútil). Mas, existem aqueles que despertam mais o ódio das direitas hidrófobas que pululam nos parlamentos (principalmente no parlamento tupiniquim) e na mídia internacional. Maduro é um deles. Afinal, está sentada a Venezuela sobre reservas de petróleo. E não é preciso dizer mais.

Também concordo em que Lula exagerou nos salamaleques a Maduro. O Brasil não tem nada a ver com os problemas internos de nenhum país, claro. Por isso, não pode e não deve discriminar nenhum governo, nenhum governante. Principalmente, porque há negócios e interesses que estão acima de qualquer viés ideológico. Então, bastava receber bem o Maduro e tudo estaria bem, pelo menos as críticas seriam menores. Mas, sim, Lula exagerou.

Abro parênteses. Concordo com praticamente tudo quanto disse Lula. A Venezuela é discriminada e seu povo tem sofrido por causa de destemperos e coisas estúpidas de seu líder. Essa história de punir todo um povo por atos de seus governantes, sob o comando dos Estados Unidos já deu. O mundo não é mais o quintal deles. E de ninguém. Há meios menos cruéis de dizer a um povo que ele pode se libertar de suas lideranças despóticas. Sem intervenções, sem imposições. Como já dizia um líder estadunidense: “Não se pode enganar todo o povo todo o tempo”.

Abro parênteses de novo para dizer que, neste mundo globalizado por fake news e por empresas e indivíduos inescrupulosos e manipuladores, está cada dia mais difícil um povo escolher seu destino livremente. Mentes e vontades têm sido abduzidas por essas máquinas universais a soldo de grupos de ideologias perigosas, principalmente de neonazifascistas.

Voltemos a Lula e a Maduro, para deixá-los por aqui. Antes, duas coisinhas a mais. Primeira, o escorregão do presidente pode lhe trazer um ou outro dissabor político e diplomático, mas não passará disso. Não atinge a ninguém mais. Logo será esquecido e o mundo voltará a girar. Segundo, enquanto os malucos dançavam e sapateavam sobre esse fato, a boiada nazifascista bolsonarista arreganhava as porteiras da Câmara, para aprovar, isso sim, uma medida que tem o potencial de uma bomba atômica a cair sobre as cabeças de nossos povos originários e sobre toda a política ambientalista que o Brasil precisa desenvolver, para se tornar, de novo, uma nação respeitada no mundo.

Estou falando do tal “marco temporal” que 283 insanos e vingativos deputados aprovaram, na manobra absurda do presidente da Câmara, Arthur Lira. Absurda por dois motivos: queriam os “nobres deputados” que o Supremo Tribunal Federal tirasse da pauta a votação da mesma matéria que lá tramita, num ato de tentativa da chantagem mais deslavada de um poder da República contra outro e queria, ou melhor, quer o senhor presidente da Câmara “mandar um recado” ao Executivo, de que o governo precisa “pagar a fatura” de possíveis, prováveis e futuros apoios a matérias de seu interesse, numa clara – aí, sim – chantagem de um poder da República contra outro.

Abro novos parênteses, para dizer que temos péssimas lembranças de presidentes da Câmara que extrapolaram seus poderes e se tornaram verdadeiros gângsteres da política. Há um deles, inclusive, que está preso, por crimes não só políticos. E o atual está pretendendo ser um novo Nero, a pôr fogo no governo e no país, já que a “lira”ele vem tocando há tempos...

Voltando ao que interessa: estamos diante não de uma Câmara de Deputados, mas de uma quadrilha de chantagistas, formada principalmente pelos deputados do chamado “centrão” bolsonarista que, além de toda essa chantagem absurda, ainda querem se vingar nos povos originários, nos nossos indígenas, pela derrota que seu candidato sofreu nas urnas. E querem perpetuar, com a aprovação desse fatídico “marco temporal” o genocídio dos povos indígenas iniciado pelo governo anterior, além da destruição de nossas matas e rios, com a abertura para garimpeiros, madeireiros e criadores de gado das fronteiras das terras demarcadas das populações originárias. Um verdadeiro ato de estupidez paquidérmica (que me perdoem os elefantes) que ajudará o Brasil a se manter nas trevas do negacionismo, nas garras de ideologias fascistas e na desconfiança dos demais países de que não somos mesmo um país sério.

Ou pior, vai pensar o mundo que somos um país que não sabe escolher seus representantes nos diversos parlamentos, porque é permanentemente enganado por espertalhões, falsos religiosos, falsos juízes e quem sabe mais que tipo de gente estúpida e mal-intencionada em que insistimos em votar.

E não sabemos, mesmo.

Prova está aí, nesse Congresso recheado de neonazifascistas, de racistas, de genocidas, de preconceituosos, de falsos defensores da democracia, de juízes, religiosos, de empresários e defensores do agronegócio que se comportam como gado na defesa de interesses inconfessáveis e antipatrióticos.

maio 21, 2023

A CPI DO MST

 



Uma comissão parlamentar de inquérito quase sempre dá palanque e visibilidade a seus componentes: a mídia divulga e comenta em boletins diários os principais depoimentos, os embates, as contradições das testemunhas etc. Também pode virar, muitas vezes, um circo mambembe de atuações toscas de parlamentares despreparados, de testemunhas circenses e grotescas, desgastando esse importante instrumento de vigilância que a Câmara e o Senado usam para fiscalizar, denunciar e até, muito raramente, para punir malfeitos.

O MST, Movimento dos Sem Terra, todos sabemos, tem uma trajetória de luta pela reforma agrária e pela defesa da agricultura familiar. Invade terras? Sim, e todos estamos carecas de saber que invadem, sim, terras. E muitas vezes, invadem grandes propriedades ou latifúndios que eles consideram improdutivos. Isso incomoda o agronegócio e os grandes fazendeiros? Sem dúvida alguma. E eles odeiam o MST. Cometem exageros? Com certeza, dentre as inúmeras vezes que eles invadiram “propriedades” (sejam improdutivas ou do agronegócio, ou de grandes corporações), houve, sim, alguns exageros, cometidos irrefletidamente ou não por membros do MST. São condenáveis esses exageros? Muitas vezes, sim. Embora a luta ideológica – de que não vamos falar neste breve artigo – possa justificar tais exageros, principalmente porque o outro lado também comete muitos exageros, e até mesmo crimes. Mas deixemos de lado, por enquanto, esse aspecto da luta agrária brasileira, luta que vem de há muitas e muitas décadas.

O que nos importa, por enquanto, é tecer algumas considerações sobre a CPI já instalada e que pretende investigar as atividades do MST.

Na minha modesta opinião, eu creio estaremos diante de um palco iluminado para o show dos deputados da bancada ruralista e da direita hidrófoba que existem hoje no Congresso. E será um show de horrores.

Explico: o objetivo deles é demonizar o MST. Ou tentar, pelo menos. E tudo quanto vão “descobrir” ou “denunciar” do MST todos nós já sabemos. Então, a mídia vai ampliar as denúncias, vai dar voz a essa malta hidrófoba que vai se esgrimir contra as testemunhas favoráveis ao MST – se houver - e vai dar o seu próprio show de sempre, ao lado da direita, porque também a mídia – comprometida sempre, por seus patrões, com os valores da direita – já deve estar afiando os dentes para cravar no pescoço dos “bandidos” do Movimento dos Sem Terra.

Não haverá nada de novo, portanto. E quando o show não tiver mais nada a mostrar ao público e à mídia, o relator – escolhido a dedo para isso – irá apresentar suas conclusões óbvias de condenação, de vários pedidos de indiciamento e até de prisão dos membros do MST.

E depois? E depois, nada.

Porque conclusões de CPIs são apenas conclusões de CPIs. Algumas até se transformam em lentos processos na justiça, ou pedidos de investigação pela Polícia Federal ou por outro órgão fiscalizatório, mas... na maioria dos casos (vide a CPI da covid-19, que relatou crimes graves!) nada acontece. Tudo cai no esquecimento, porque outra CPI ou outros assuntos vão ocupar a vida dos senhores parlamentares e alimentar a mídia, cuja boca é sempre voraz por novidades e cuja memória tem o tempo do acontecimento.

Então, meus amigos, relaxemos e deixemos que se abram as cortinas do espetáculo, para criticar e, principalmente, para aplaudir ou demonizar aqueles com os quais concordemos ou discordemos, nas redes sociais, nos desenhos dos cartunistas, nas piadas de sempre, nos comentários divertidos ou rancorosos. E vida que segue.

abril 28, 2023

ELES TÊM DEUS NO CORAÇÃO: O ASSASSINATO DO GAROTO LUCAS TERRA

 




“Eles violentaram, espancaram e depois queimaram vivo meu filho porque ele flagrou Fernando e Joel mantendo relações sexuais.” Essa é a declaração do pai do adolescente Lucas Terra, em 2001. Após sete meses de minuciosa investigação, a polícia baiana concluiu o inquérito que indiciou o indivíduo Sílvio Galiza como autor do homicídio, tendo como coautores Fernando Aparecido da Silva e Joel Miranda. Detalhe: o primeiro é um pastor e os outros dois são religiosos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que possui atualmente um dos maiores templos religiosos do Brasil, na cidade de Salvador, um mostrengo arquitetônico visível de quase todos os pontos do município.

Acrescenta ainda o pai do garoto, com toda a justificável revolta: “Meu filho foi amarrado e amordaçado para não gritar e colocado dentro de uma caixa de madeirit. Carbonizaram seu corpo para encobrir os vestígios de pedofilia.”

O caso vem se arrastando na justiça desde 2001 e só agora, mais de vinte anos passados, saiu a notícia de que os assassinos estão sendo finalmente julgados e condenados à prisão.

Mas, não é sobre o processo judicial brasileiro, lento e falível, que eu quero falar neste pequeno artigo de protesto, e sim da hipocrisia que reina (sem trocadilho) entre os pastores e seguidores da IURD, essa pústula apostólica que corrói mentes e corações do povo, para surrupiar-lhe da forma mais nojenta possível os poucos caraminguás que tiverem em suas pobre carteiras, fruto, muitas vezes, de árduo trabalho, em troca desse reino de deus prometido por essa camarilha de estelionatários que são os pastores dessa seita maldita.

O caso Lucas Terra é emblemático, por se tratar de um crime bárbaro, mas muitos outros crimes podem ter sido e são acobertados por esse bando de criminosos travestidos de porta-vozes de deus. Porque adquiriram poder econômico e, atualmente, poder político, julgam-se acima da lei humana. Qualquer denúncia ou pronunciamento mais contundente contra essa camarilha são considerados como “perseguição religiosa”. Eles têm deus em seu coração; portanto, para os seus seguidores fanáticos, que estabelecem uma verdadeira cortina de proteção em torno de qualquer deslize por eles cometidos, eles são incapazes de cometer quaisquer crimes.

E os crimes dessa gente quase nunca chegam ao conhecimento público. Os poucos casos de que se tem notícia são considerados apenas como desvios individuais, e sobre eles, pastores compungidos logo tecem uma centena de explicações que nada explicam ou, quando muito, um pedido de perdão em nome de seu deus, que a tudo perdoa, quando a grana é boa (não resisti à rima).

Liberdade de culto é um princípio constitucional. Sob essa cláusula, no entanto, não se podem cometer crimes. E mais: denunciar as falcatruas dessas falsas igrejas coletoras de dízimo para enriquecimento ilícito de pastores não é perseguição religiosa.

Perseguição religiosa é que o fazem os seguidores dessas igrejas evangélicas quando seus pastores afirmam ser satânicas as crenças umbandistas ou do candomblé, incentivando a violência contra casas e templos de culto dessas religiões afrodescendentes, em casos claros de intolerância e racismo.

Portanto, só para finalizar: são, sim, criminosos os cultos que louvam a deus em templos salomônicos, erguidos com a espoliação do povo e enriquecem seus pastores, que vivem em mansões também salomônicas, viajando em jatinhos particulares, e passando férias nababescas em paraísos terrestres, enquanto seus iludidos seguidores oram compungidos e sacrificam até o dinheiro das suas necessidades diárias para pagar o dízimo que financia tudo isso, em troca da salvação em paraísos celestiais.

E dizem que têm deus no coração!

abril 27, 2023

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E O MAL QUE PODE CAUSAR AOS SERES HUMANOS

(Adrien Vernet)

O que mais me encantava na ficção de Isaac Asimov, quando ele escrevia sobre os robôs do futuro, era o aspecto ético incutido na memória profunda das máquinas do que hoje chamamos de inteligência artificial (IA), com as três leis da robótica:

· Um robô não pode causar dano a um ser humano nem, por omissão, permitir que um ser humano sofra.

· Um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto quando essas ordens entrarem em conflito com a primeira lei.

· Um robô deve proteger sua própria existência, desde que essa proteção não se choque com a primeira e a segunda lei.

A preocupação do autor se concentra na segurança dos seres humanos, já que seus robôs são cada vez mais “humanizados”, a tal ponto que conseguem até mesmo filosofar sobre sua própria existência e a sua relação com seus criadores, num dos contos belíssimos de “Eu, Robô”. Se ele, o robô, é mais inteligente e mais capaz do que qualquer ser humano, como pode ser uma criatura e não ele mesmo o criador? Mas, as três leis da robótica não permitem que ele transforme em revolta o que a sua lógica parece levar, ou seja, a uma espécie de domínio da máquina sobre o ser humano.

Essa era uma preocupação que parecia ser suficiente na ficção, para que nos preparássemos para a “inteligência” robótica. Estávamos seguros. Mas, a realidade atropela a ficção e hoje a segurança humana está localizada em aspectos impensáveis na época de Asimov, que não está tão longe assim.

Para não nos alongarmos muito, já que o assunto é complexo, lanço a pergunta que não quer calar: em que aspectos da vida humana a IA nos ameaça?

Antes de responder, quero dizer que sou fã diletante da IA no que ela pode nos trazer de benefícios em inúmeros aspectos da vida cotidiana, na resolução de problemas complexos e até mesmo na administração de muitas situações em que temos tido imensas dificuldades, como, por exemplo, o trânsito, principalmente das grandes cidades, com seus congestionamentos, acidentes e atropelamentos. Diz Yuval Harari, em um de seus livros, que, num futuro não muito distante, os humanos serão proibidos de dirigir máquinas, como os automóveis, resolvendo-se, assim, problemas como atropelamentos, falta de espaço para garagens, poluição etc.

Mas, voltemos àquilo que eu creio ser a maior ameaça da IA aos seres humanos: a criatividade.

A capacidade de criar obras de arte, sejam de que tipo for, desde uma escultura até um romance ou poemas, talvez seja um dos aspectos mais complexos da evolução humana. Somos capazes de imaginar e de sonhar. Mas, acima de tudo, somos capazes de transformar a imaginação e o sonho em obras que encantam e, principalmente, tornam mais humanos e mais civilizados os seres humanos que somos. Ou seja: a arte humaniza o ser humano. Mais do que qualquer outro aspecto civilizatório, contemplar uma obra de arte, ler um romance ou um poema, assistir a uma peça de teatro, aplaudir um espetáculo de dança, ouvir música etc., tudo isso tem para nós o valor inestimável de um acervo que eleva a nossa mente a um tal grau de satisfação e de orgulho de sermos humanos, que nenhuma outra obra tem capacidade de realizar. A necessidade da existência da arte e dos artistas reside precisamente nisso.

Assim, quando os algoritmos da IA ganham capacidade de realizar obras de arte, a partir de um incalculável e inimaginável banco de dados, e até mesmo nos convencer de que o que ela realizou é uma obra de arte, ela está ameaçando o ser humano em seu cerne, em seu aspecto mais profundo de humanidade. Porque, por mais que seja passível de ser julgada como obra de arte um quadro ou um romance ou um poema ou uma música etc. que a IA produza, não passa de um pastiche, ou seja, a reorganização em outros padrões aparentemente criativos de obras pré-existentes. Mesmo que um músico, por exemplo, julgue de “qualidade” uma valsa ou uma música pop ou um rock criados pela IA, ele está sendo enganado por uma falsa percepção de originalidade, já que as notas musicais ali produzidas apenas compilam centenas de milhares de outras composições, num arranjo “inteligente”. Um romance ou um poema escritos pela IA, mesmo que pareçam originais, não passam de um rearranjo de frases e situações de seu imenso banco de dados. Há, portanto, a ilusão de originalidade, mas é uma pseudo originalidade, um pastiche apenas. O pior disso tudo é que há muita gente se enganando sobre isso. Achando que IA é realmente uma saída para a sua própria falta de originalidade e, num desvio ético tenebroso, publicando livros e outras obras “criadas” pela IA como se fossem de sua autoria e driblando a boa fé dos consumidores de arte.

Eu acredito que está nas nossas mãos, na capacidade de criar e de imaginar dos seres humanos, a responsabilidade de discutir seriamente até onde pode interferir em nossas vidas essa imensa capacidade tecnológica da IA. Assim como Isaac Asimov criou as três leis da robótica, para a segurança dos humanos, devíamos começar a pensar seriamente em leis de ética para impedir mesmo que a IA invada a criatividade humana com sua pseudo criatividade e chegue ao ponto de tornar ainda mais bárbaro o ser humano, ao tomar dele a capacidade de sonhar e criar. Um basta vigoroso a isso, antes que, com o tempo, normalizemos a “arte” da máquina em detrimento da arte criada por humanos. Porque, quando isso acontecer, aí sim teremos sido dominados completamente pelos robôs, sem que eles precisem se revoltar contra seus criadores.

abril 24, 2023

MAIS UMA INSANIDADE: A CPMI DO GOLPE


A lógica parlamentar é clara: uma CPI (ou CPMI) é um instrumento de fiscalização do governo, usado pelas oposições para investigar desmandos do poder público ou algo de grande interesse popular que o governo não tem provido de forma correta. Ou seja, é UM INSTRUMENTO TIPICAMENTE DE OPOSIÇÃO.


No entanto, a oposição ao governo Lula quer uma CPMI para investigar os atos antidemocráticos do dia 8 de janeiro de 2023, quando o governo mal havia começado a governar de fato; quando ainda havia muitos ministros e secretários e servidores a serem nomeados e quando os nomeados mal haviam tomado pé da situação dos órgãos a que começaram a comandar. Tudo era ainda um mistério, diante do descalabro administrativo deixado de herança pelo governo anterior. E não vou, aqui, falar desse governo, porque todos sabem o que ele fez.

Dia 8 de janeiro: uma marcha de manifestantes, comboiada pela polícia militar do Distrito Federal, sai do acampamento do exército e vai até à praça dos Três Poderes, aonde não poderiam ir, por ser espaço interdito a tais manifestações, principalmente num domingo, sem que as autoridades competentes tomassem conhecimento, para enviar efetivos militares de proteção, o que é, constitucionalmente, obrigação do governo do Distrito
Federal.

Todos viram as imagens da televisão e dos circuitos internos dos palácios invadidos e depredados pelos vândalos golpistas, todos bolsonaristas enrolados em suas bandeiras ou vestidos de verde-amarelo, a marca dessa famigerada legião de fanáticos: um espetáculo de golpismo e de estupidez humana raramente registrados na história.

Agora, não se sabe como, ou melhor, sempre desconfiamos da origem, surgiu a ideia entre as hostes bolsonaristas de culpar o governo atual por aquilo que todos viram e as imagens documentaram. Culpar a vítima pelo estupro da democracia perpetrado por hostes bolsonaristas, com a desculpa de que havia infiltrados entre os manifestantes e que foram esses infiltrados que incentivaram os atos de vandalismo e depredação.

Entortar a lógica, modificar fotos e vídeos, deturpar a palavra alheia, construir um mundo paralelo de culto a uma figura asquerosa como Bolsonaro sempre foi um dos pilares da doutrina – se é que podemos chamar de “doutrina” – desses indivíduos cooptados pela mais estúpida das facções políticas do século XX, o nazifascismo. Mas, imputar à vítima – no caso, o governo atual – a culpa pelos atos de terror e vandalismo perpetrados por essa horda de canalhas golpistas já é um pouco demais. É brincar com a lógica dos fatos e levar ao extremo a ideia nazifascista de que uma mentira mil vezes repetida se torna verdade e de que a realidade dos fatos – o passado recente fartamente documentado – possa ser modificado e adaptado a seus interesses espúrios e antidemocráticos.

Até aí concordamos que a falta de lógica tem seu campo devidamente fertilizado pela estupidez e pelo delírio. Mas há um limite para a estupidez e para a falta de lógica e esse limite está sendo claramente ultrapassado, numa evidência de que, para os bolsonaristas, a estupidez alcança índices astronômicos: CONVOCAR UMA CPMI PARA INVESTIGAR OS ATOS ANTIDEMOCRÁTICOS DE 8 DE JANEIRO.

Vão, claro, tentar fazer dessa CPMI um show de horrores, de que, tenho a mais absoluta certeza, vão sair todos devidamente queimados – e espero que para sempre - diante de fatos contra os quais não há argumentos.


Quem viver verá!

abril 14, 2023

SÃO PAULO: UMA SOLUÇÃO PARA OS MILHARES DE MORADORES DE RUA?



O governador de São Paulo e o prefeito da capital estão elaborando um projeto que pretende levar para o campo milhares de moradores de rua, para se empregarem em propriedades de agricultura familiar. Dizem que são 187 mil fazendeiros com possibilidade de dar emprego a essas pessoas, com o compromisso, por parte do Estado, de adquirir parte da produção agrícola, coisa que é mais ou menos de lei, mas que não se cumpre.

O plano, em teoria, é bom. Mas, como disse Millôr Fernandes, “a nobreza de uma ideia não tem nada a ver com o canalha que a exprime”, minhas desconfianças começam com as verdadeiras intenções dos autores: o Zé Carioca e o Barbicha, respectivamente governador e prefeito.

Nenhum dos dois é confiável, em termos de ideologia, já que podem estar se escondendo num modelo higienista, simplesmente. Por isso, para que esse plano que, repito, pode ser interessante, não se tranforme em apenas jogar no mato uma população desesperada por emprego, por moradia, por uma vida digna, é necessário que fiquemos de olho em alguns pontos, dada a sua complexidade de aplicação:

1. que somente participe da remoção (que é, ao cabo, o que se pretende fazer) somente as pessoas que realmente queiram ir embora de São Paulo (a confiar nas pesquisas, dizem que até 30% das pessoas que aqui moram têm vontade de sair, de ir para outros lugares ou voltar para suas regiões de origem, e acredito que entre a população de rua esse número pode até ser bem maior);

2. que as pessoas que anuírem ao plano tenham, de início, algum tipo de preparação para o tipo de trabalho que vão realizar, seja em termos de treinamento para o trabalho no campo, seja em termos de comportamento e adaptação ao novo ambiente;

3. que tenham, pelo menos por um bom tempo (um ou dois anos) acompanhamento de sua situação no novo ambiente, para que não se transformem em mão de obra explorada ou até mesmo escravizada (com as novas tecnologias de comunicação, isso não é muito difícil de ser feito);
4. que famílias não sejam separadas e que haja condições para que todos tenham vida digna, com casa, condução (quando for o caso) e escola para as crianças (quando houver) e ocupação também para o cônjuge.

Essas são apenas algumas das preocupações que esse plano de remoção e transferência do povo de rua de São Paulo para o trabalho em estabelecimentos agrícolas no interior. Muitos outros detalhes devem ser devidamente levantados, estudados e discutidos por especialistas. Não se pode confiar totalmente nas intenções desses nossos governantes, porque seu histórico ideológico não nos permite bater palmas para planos mirabolantes - que podem dar certo - mas que precisam de uma execução humanitária e não simplesmente higienista.