abril 09, 2011

O DIA EM QUE PERDEMOS A INOCÊNCIA





“D., nesta fotografia
reviajo vinte e cinco anos:
regresso a tua mãe menina
em Barcelona, aos dois anos.

Reviajo à mesma pessoa
que nasceu pra dizer não,
que embora tenha vivido
pra ser desafirmação,
reencontrou na filha um sim
a que condicionou a vida
(não o Sim convencional:
o possível Sim da vida):
que ela não é o sistema
mas coisa de sim e não vestida,
e vejo como te veste,
no limpo em que estás vestida.”


O poemeto acima é de João Cabral de Melo Neto. Escreveu-o o poeta diante de uma fotografia da neta. Saiu no jornal O Estado de São Paulo de 8 de abril de 2011, no mesmo dia em que o massacre das crianças de uma escola de Realengo, bairro do Rio de Janeiro, tomava as manchetes de todos os órgãos de comunicação e estarrecia todos os brasileiros.

Um jovem de 23 anos, Wellingotn Menezes de Oliveira, inscreve seu nome no pavoroso painel dos assassinos em massa e insere o Brasil no circuito dos assassinatos de jovens escolares inocentes por loucos que têm nas mãos armas de fogo e na mente palavras da bíblia ou de outro livro dito sagrado.

Treze crianças, dois meninos e dez meninas, com idades ente 12 e 15 anos perderam a vida estupidamente.

Não dá mais para esconder fatos que saltam à lógica mais comezinha. Mas, vamos com calma, para analisar possíveis causas e consequências de ato tão monstruoso, mais ou menos recorrente em outros países, como os Estados Unidos.

O homem não é o anjo decaído que o deísmo apregoa, já o disse várias vezes. Temos em nossos genes, misturados no cadinho da experiência natural de milhares de anos, vestígios da evolução lenta e penosa que nos trouxe ao estágio atual de evolução. Temos ainda na boca o sangue das caçadas e das lutas pela sobrevivência, agravado esse sangue por heranças de desvios ocultos e ainda não devidamente estudados da sanidade. Trazemos todos o traço indelével de nossos antepassados, remotos e recentes.

O jovem atirador, diz-se, teve uma mãe esquizofrênica. E psicótica é sua mente, a deduzir-se de toda a sua trajetória de vida. Filho adotivo, sempre calado e introvertido, deve, com certeza, ter sido alvo de chacotas – e isso é mais do que comum, infelizmente – na escola em que estudou, a mesma que ele escolheu para vingar-se.

Porque seu ato é, no fundo, um ato de vingança.

Mas, continuemos. Adolescente, viu na televisão os aviões de Bin Laden derrubarem as torres gêmeas, nos Estados Unidos, outro ato de vingança. E acumulou em sua mente já doentia a vontade de também praticar algo semelhante. Faltava a motivação, ou melhor, o fogo que o levasse a agir.

E esse combustível, esse fogo, nasceu, cresceu e alimentou a mente esquizofrênica do jovem através da religiosidade exacerbada a com leitura e interpretação literal de histórias bárbaras contadas pelos antigos profetas da bíblia dos cristãos.

Não nos enganemos mais: está tudo lá, nos livros sagrados de todas as religiões, a condenação tácita dos ímpios, dos impuros, dos que não seguem a palavra do deus furibundo que passa a habitar o coração dos crentes. E esse deus exige vingança. Mesmo que essa vingança tenha por motivação apenas fatos comezinhos como o deboche de colegas de escola, a morte prematura ou não dos pais adotivos, a extrema timidez diante da vida, o horror aos prazeres sexuais – sempre condenados pelo deus furibundo de todas as religiões –, a ideia da necessidade de se manter puro para ganhar o beneplácito da vida eterna, a condenação implícita da mulher como origem da tentação carnal dos homens e da condenação da humanidade...

A mente esquizofrênica parte o mundo em duas metades, e essas duas metades são conformadas pelo combustível que encontrar: para a interiorização e o sofrimento íntimos ou para formular teorias malucas de perseguição ou de ódio a todos os que são diferentes. E a religião, com seus conceitos excludentes, traz a desculpa ou o grande mote para dividir o mundo entre bons e maus, entre aqueles que seguem as leis – de um deus, claro – e os que a ignoram e se tornam impuros.

Estão lá, na carta do atirador, as palavras que definem bem sua personalidade psicótica alimentada pelo desejo de vingança e de purificação de conteúdo e origem religiosa: “... os impuros não poderão me tocar sem usar luvas, somente os castos ou os que perderam suas castidades após o casamento e não se envolveram em adultério poderão me tocar sem usar luvas, ou seja, nenhum fornicador ou adúltero poderá ter contato direto comigo (...) preciso da visita de um fiel seguidor de Deus em minha sepultura pelo menos uma vez, preciso que ele ore diante de minha sepultura pedindo o perdão de Deus pelo o que eu fiz rogando para que na sua vinda Jesus me desperte do sono da morte para a vida eterna”.

De tão imbuído da leitura dos textos ditos sagrados está o vingador, que até seu estilo, seu jeito de escrever, repete canhestramente o estilo dos escrevinhadores da bíblia. E mais: a certeza de que, diante do exorcismo da prece, o ato de matar jovens inocentes será devidamente perdoado, já que, de acordo com as doutrinas deístas em voga nas grandes religiões, os fins justificam plenamente os meios. Vale tudo para alcançar o reino eterno, desde perseguir os ímpios em cruzadas, em guerras santas ou em instituições inquisitoriais que julgem, condenem e queimem os diferentes, até simplesmente matar os impuros, seja a bala ou explodindo bombas no próprio corpo ou jogando aviões em edifícios. Vale tudo para obter a graça do deus e viver a vida eterna ou para fornicar, depois, no céu, com não sei quantas mil virgens prometidas aos que matam e morrem pela fé.

Os deuses antigos eram humanos ou humanizados, porque eram muitos e lutavam entre si pela preferência de culto. O deus único das religiões modernas perdeu a humanidade e ganhou foros de ser absoluto, dono da verdade e exigente em seus mandamentos. Também se masculinizou e desenvolveu na mente do macho o ódio à fêmea, que passou a carregar o estigma do pecado, como se, para o sexo, não fossem necessários dois seres. Do ódio à fêmea – culpada ou pelo pecado original ou pelas tentações do macho – passou esse deus único e excludentes (na verdade, deuses, porque cada uma das grandes religiões modernas tem, na verdade, um único deus exclusivo e excludente), a odiar o próprio sexo como fonte de prazer. Em que momento as religiões passaram a odiar o sexo não se sabe exatamente, nem mesmo exatamente por quê. Pode-se especular, apenas, mas o certo é que a perseguição à bruxa, ou seja, à mulher, passou a fazer parte do imaginário machista, o que justifica todos os atos de covardia contra o sexo feminino, desde o estupro até o assassínio pelos mais absurdos motivos.

Por isso, o jovem louco do ataque às crianças da Escola Municipal Tasso da Silveira perseguiu e matou principalmente garotas, meninas que se tornariam mulheres e, portanto, motivo de desejo e de pecado da mente criminosa imbuída de conceitos misóginos provenientes da pregação religiosa.

Não, não é a religião o mal absoluto. Porque o mal absoluto implica a existência de um bem absoluto. E bem e mal são categorias absurdas da metafísica, origem de todas as besteiras teológicas que se espalham por aí. Não existem nem o bem nem o mal absolutos, portanto. Existem pessoas, seres humanos, que praticam atos condenáveis, atos contra a humanidade e contra a vida. E o fazem imbuídos da crença no perdão divino e na estúpida certeza de que esta vida tem continução numa possível vida além-túmulo. Assim, cultivam mais a morte do que a própria vida. Assim, não dão o valor devido à vida, que é unica e insubstituível, o mais precioso bem do homem.

Não, não é a religião a culpada absoluta da existência de bestas-feras como Wellington e tantos outros vingadores da fé. Mas, não nos deixemos contaminar pelo discurso inocentador dos que minimizam os efeitos da pregação de padres, pastores, rabinos, aiatolás e tantos outros imbecis que, imbuídos das falsas verdades de seus livros sagrados, vociferam doutrinas estúpidas de seus púlpitos e incendeiam com suas interpretações absurdas de discursos antigos as mentes pertubadas de gente como Wellington. Poucos chegam à loucura que ele chegou, mas esses poucos são suficientes para causar a matança e o sofrimento que ele protagonizou e outros têm protagonizado mundo afora. E a existência de um, apenas um, assassino desse tipo já é suficiente para condenar não exatamente os princípios equivocados das religiões, mas principalmente os seus intérpretes insanos que lucram, e lucram muito, com a venda requentada e mal interpretada desses princípios.

Quando um conceito cultural como o das religiões passa a ser explorado por mentes interesseiras – como o são todos os que constituem a hierarquia dos profissionais da fé – e passa a ser motivo de crimes históricos, é porque, de há muito, muito tempo, deixou de ser cultura e elemento civilizacional para se tornar pretexto para a barbárie humana. E quando isso acontece, não se pode deixar de, hipocritamente, condenar toda a estupidez metafísica e deísta que dá origem a atos bárbaros, existente nos conceitos da fé religiosa.

Enquanto nos comovemos pela beleza do canto à vida emanado dos versos de João Cabral de Melo Neto à neta ainda menina, lamentamos e nos desesperamos com o ato covarde de uma mente esquizofrência e assassina, alimentada pelos conceitos exatamente contrários ao “possível Sim da vida”, dos versos do poeta, este sim, um humanista, não os pregadores do eterno que ponteiam as inúmeras seitas deístas que proliferam por aí a vender a eternidade por trinta dinheiros, ou menos.

Há muito que perdemos a inocência para com as religiões e seus asseclas. Só não nos tínhamos dado conta disso. Porque a barbárie por ela provocada só nos chegava de longe, vinda do Norte, vinda de outros povos e outras culturas. Achávamos que nós, brasileiros, conservaríamos nossa estúpida inocência, apesar de todo o lixo religioso despejado diariamente sobre nós. Wellington Menezes de Oliveira tirou a vida de 13 jovens e, definitivamente, a nossa inocência.



(Ilustração: Stargträger, de Felix Nussbaum)