dezembro 27, 2008

A CANOA FURADA DA MÍDIA ISENTA, OU MESMO, HONESTA

Não sei se conseguirei , sobre o tema a que me propus neste artigo, dizer tudo o que eu penso e de forma sucinta que não leve algum pretenso leitor ao tédio e à desistência. O que eu sei, apenas, é que o assunto é complexo, polêmico e árduo. Tentarei, pois, enxugar o pensamento e, para isso, abandono de imediato esta já meio longa introdução, para ir direto àquilo que desejo discutir.

A realidade. Parece estar diante de nossos olhos. Fácil apreendê-la e compreendê-la, portanto.

Ledo engano. Temos, do mundo que nos cerca, somente uma visão parcial e completamente deturpada por nossos olhos, imperfeitos e limitados; por nossa weltanshauung, tão variada e complexa quanto cada cabeça pensante existente no mundo; por nossa herança genética, de resultados imprevisíveis; pelo meio em que vivemos, que tanto influenciamos quanto por ele somos influenciados; por nossa educação, a que se juntam tanto os elementos próximos, como pais, parentes,mestres, amigos e conhecidos, quanto distantes, como toda a rede de conhecimentos que nos chegam através de todos os meios e de todos os nossos sentidos; por todos os elementos que nos cercam e que contribuem para que olhemos o mundo com um viés próprio e absolutamente diferente de todos os demais.

Uma paisagem, por exemplo. Mesmo que duas pessoas conseguissem sobrepor os seus olhos para contemplá-la, ainda assim veria cada uma um aspecto, um detalhe, uma cor que o outro não conseguiria captar, além de obter impressões totalmente diferentes a partir de estados diferentes de consciência, de pensamento, de conhecimento. A mesma paisagem poderia despertar indiferença em mim e saudades em você.

Se conseguíssemos reunir todos os olhares de todos os homens, desde o mais primitivo ser humano que surgiu sobre a terra, teríamos um painel tão absurdo de realidades, que seria tudo, menos a própria realidade.

Portanto, se há apenas uma natureza, uma única realidade, há tantas interpretações quantos são os indivíduos que a contemplam.

Dito isso, é preciso ficar claro: não há isenção. Ou seja, não existe nenhuma possibilidade de que aquilo que eu digo, escrevo ou comunico não esteja contaminado definitivamente por minha visão de mundo, por minha weltanshauung.

Nenhuma mídia (jornal, televisão, revista, internet), nenhuma arte (literatura, escultura, pintura etc.), nenhum ato humano, afinal, são descolados do ponto de vista de quem os emite, porque todo ser humano tem a sua própria e inconfundível visão de mundo, como se fosse uma espécie de registro único, uma impressão digital.

A grande ilusão humana é querer juntar uma grande quantidade de pessoas sob um mesmo guarda-chuva ideológico, como a religião, por exemplo. O cristianismo pode ter alguns bilhões de seguidores, mas certamente cada indivíduo que se confessa cristão professa a sua crença de forma diferente dos demais, embora não o perceba ou não seja capaz de detectar as infinitas nuances de sua fé em relação a todos os outros indivíduos.

E a grande ilusão de aglutinar tudo em grandes blocos de pensamento nasceu e desenvolveu-se a partir da criação do pensamento metafísico, que consiste em criar um mundo paralelo, um mundo além do mundo, uma projeção perfeita de uma realidade que nos parece imperfeita porque não a apreendemos nem a compreendemos em sua totalidade. Assim, existe o mundo que vemos, com todas as suas limitações e deformações promovidas por nossos sentidos, e o mundo mágico, ilimitado, organizado em torno de leis imutáveis. Perfeito. Nele habitam nossas almas, nossos anseios. E nele habita o deus ou os deuses que criamos para nos proteger e a quem entregamos nossos sonhos.

A metafísica, dizem, descobriu-a os gregos. Mas já existia muito antes deles, desde que o primeiro homem teve consciência de que não conseguiria explicar fenômenos que ele não compreendia, como a vida e a morte, ou toda a gama de sentimentos físicos ou provocados por um cérebro que se desenvolvia e que se transformava numa usina de conhecimentos, de criatividade e de consciência da realidade.

Voltando à mídia e à comunicação humana que são, na verdade, o objetivo de discussão desse emaranhado de idéias a que tento ordenar, talvez meio canhestramente: se eu escrevo, aqui, essas linhas, está claro que o que eu penso está contaminado por aquilo que eu sou e, quando me comunico, ou tento me comunicar, o meu objetivo, por mais que eu queira ser isento, será sempre trazer o meu receptor (ouvinte , leitor etc.) para dentro de minha visão de mundo, ou seja, eu quero influenciá-lo. Este o objetivo da comunicação entre os homens: tentar influenciar uns aos outros.

Quando, por exemplo, um jornal, se diz isento, ele está mentindo. Está sendo desonesto, na sua comunicação, porque está vendendo como verdade a mentira da isenção. É humanamente impossível uma comunicação, por mais simples que seja, não ter a finalidade de influenciar o outro. Porque em tudo que comunicamos trazemos indelével e definitivamente a marca de tudo aquilo que somos, de tudo aquilo que nos formou como indivíduos.

Vamos a um caso simples: os Estúdios Disney, que todos conhecem. Tudo o que a Disney faz, desde o primeiro desenho de seu fundador, tem por características, primeiro, a busca da excelência do produto, em termos formais; em segundo, tudo, absolutamente tudo, está contaminado por um ideal (que credito também ao pensamento do fundador): a transmissão e a fixação dos valores e princípios que norteiam a sociedade estadunidense, que podemos, de acordo com nosso ponto de vista, achar que são válidos para o mundo todo (como acham os que trabalham nos, para e com os Estúdios Disney) ou achar que são um veneno para as demais seres humanos.

No Brasil, os grandes conglomerados midiáticos têm, todos, absolutamente todos, a sua ideologia, que se reflete em cada linha ou em cada evento que eles patrocinem, publiquem ou divulguem. Não há como escapar.

Você pode eleger, de acordo com critérios pessoais (e também aí está presente a sua weltanshauung), a mídia mais honesta, ou aquele jornal ou revista ou canal de televisão que menos tenta manipular seu pensamento, embora saiba que todos eles o fazem. Mesmo aquela mídia que parece cometer certas incoerências, que costuma vender camufladamente com o nome de isenção o dar a palavra ao contraditório, no fundo, o que faz, sempre, e em todos os momentos, é tentar fazer você engolir o peixe deles, ou seja, a sua ideologia.

Exemplifico: a poderosa Rede Globo, entre outros princípios, tem e transmite sempre uma ideologia católica romana. No entanto, em nome do entretenimento (que é o seu guarda-chuva maior, no ramo, tanto que até os seus jornais são leves e agradáveis, mesmo quando transmitem a mais negra tragédia), permite-se levar a seus telespectadores um filme como “O Código da Vinci”, uma bobagem, uma brincadeira, mas uma grande bobagem anticristã, anticatólica, condenada veemente pelo Vaticano. Isso é isenção? Claro que não. É apenas manipulação da mente, ao dizer: olhe como nós somos isentos, permitimos que você assista a esse filme. Na verdade, de forma sutil, quer dizer: é uma grande brincadeira ficcional, senão não o estaríamos veiculando, ou seja, reafirma os valores cristãos através da exposição do contrário

Assim, para concluir esse já longo arrazoado, que não sei bem se tem a clareza necessária para a compreensão de todos, o que eu quero, mesmo, é influenciar um ou outro possível ou provável leitor para a minha ideologia. E se esse leitor tiver um pouquinho, só um pouquinho de paciência,para atentar para as minhas palavras, perceberá muito bem qual é o pensamento que norteia o que eu disse e qual, enfim, é a minha weltanshauung. Porque é assim que devemos ver a mídia que nos massacra em todos os momentos de nossa vida: com cuidado e com visão crítica, embora embarquemos a todo instante em canoas furadas que eles nos vendem, como a isenção ou, mesmo, a honestidade de seus propósitos.

dezembro 22, 2008

AFINAL, QUE MUNDO É ESTE?

Vou falar principalmente da geração que viveu os anos 60 e 70. Intensamente. Uma geração pós-guerra que mudou, para sempre, as relações entre os homens e entre os sexos. Uma geração que encontrou um mundo cheio de preconceitos e ainda bastante arcaico e, a duras penas, conseguiu deixar um legado. Talvez discutível. E nem sempre foi o melhor dos mundos o que essa geração construiu, mas foi o mundo possível, dentro das circunstâncias.

A Grande Guerra mudou a relação de trabalho, nos países envolvidos. O esforço de guerra tirou as mulheres dos lares para as fábricas e fixou a idéia de que as diferenças entre os sexos eram fruto de mais de dois milênios de crenças e crendices. E os homens e mulheres que nasceram logo após souberam tirar proveito disso, encontrando nesse cadinho confuso de idéias o mote para a chamada revolução sexual.

O mundo bárbaro das guerras, dos conflitos, dos jogos de interesse, no entanto, ainda está aí, a nos atormentar, nas lideranças de homens que jogam o tempo todo com noções de poder e com a manipulação de conceitos arcaicos. No entanto, um novo conflito mundial ou o surgimento de doutrinas nazi-fascistas e assemelhadas, hoje, encontram e encontrarão dificuldade de prosperar, diante do poder de comunicação alcançado pelo homem, capaz de interferir diretamente, com suas opiniões e seus protestos, em quase todos os pontos do globo.

Globalizamos o mundo, que já era globalizado desde as grandes navegações, de um modo diferente. Não resolve todos os problemas, mas leva a que as nações e os seus líderes manipulem com menos facilidade as mentes e as opiniões.

A Europa uniu-se, meio a trancos e barrancos. Um avanço importante, tão importante quanto alguns recuos, como a volta de certa xenofobia. O Oriente nos ameaçou e nos ameaça com o terrorismo de alguns poucos em nome da grande maioria. Cristo e Maomé, mais do que nunca, parecem inimigos. Mas, temos, hoje, mais instrumentos para lidar com essas diferenças do que tínhamos na época das cruzadas. Só os idiotas, como Bush e Bin Laden, não sabem disso.

A África aguarda o seu resgate. Uma dívida que todos os homens temos para com o continente de onde, provavelmente, todos viemos. A China já é a potência que há quarenta anos vislumbrávamos com temor ou orgulho. Enquanto países como Rússia, Brasil e Índia tentam elevar-se à categoria de potências. De emergentes, viraram interferentes na imensa onda global. Não há mais papéis secundários no jogo da política internacional: são todos protagonistas.

As diferenças sociais e econômicas ainda são imensas. Mas, também nesse campo, temos condições de melhorar e crescer e fazer com que o mundo não chore mais por surtos de fome, de doenças, de grandes catástrofes, como até agora tem chorado. Falta vontade, apenas, vontade política. Aliás, retiro o apenas, porque a vontade política do homem para a melhoria do mundo em que vive passa, obrigatoriamente, por um longo período de esforço de convencimento de líderes ainda empedernidos. Chegaremos a convencê-los? Só a democracia e o esforço de todos poderão fazê-lo. Não importa quanto tempo demore.

A questão climática, a meu ver, pode ser a oportunidade única para que o homem consiga salvar-se de si mesmo. Sua discussão mal começou, mas, quando todos se conscientizarem de que é preciso recuperar o planeta, senão o homem desaparecerá de sua face, talvez esteja aí a grande motivação para que se superem as divergências e se busquem novos caminhos de paz e de respeito entre os povos e entre as pessoas.

No varejo, muita coisa mudou. Será inútil listar os detalhes. Preconceitos caíram. Muitos outros ficaram. A democracia avançou. E democracia, no seu sentido mais amplo, de oportunidade para todos. De superação das diferenças. Tanto no campo social quanto sexual. Ou, pelo menos, construímos teorias e avançamos cientificamente no sentido de superar conceitos e crendices que nos impediam de propor novos desafios no campo do conhecimento.

Ainda em termos de avanço social e político, demos passos importantes, como a recente eleição de Obama nos Estados Unidos e, antes, a de um presidente operário no Brasil. Coisas impensáveis naquele mundinho herdado por essa geração, com a sociedade devidamente dividida em compartimentos estanques e reacionários. São fatos de que devemos nos orgulhar, e não execrar, como muitos ainda o fazem, imbuídos, talvez, das velhas idéias que demoram a morrer. E não há, aí, qualquer viés político-partidário. Não se precisa gostar de algo, para reconhecer-lhe a importância.

Enfim, um mundo complexo foi o que essa geração pós-guerra está deixando para os jovens de mais de trinta anos que começam a tomar a direção das coisas. Um mundo de certezas e de dúvidas, mas um mundo um pouco melhor do que aquele que emergiu dos grandes conflitos do século vinte. Há ainda muita barbárie no homem, mas já demos um passo, um passo pequeno como o do primeiro passo do homem na Lua, mas um grande salto, se olharmos com olhos críticos a história do homem.

dezembro 18, 2008

BENTO, BENTINHO, QUE TE QUERO CASMURRO

O Bruxo de Cosme Velho deve estar quase feliz. Seu nome corre por todas as mídias. Comemora-se bem a sua caturrice. Um sorriso, o máximo que se pode conseguir dele, já velho e casmurro, viúvo inconsolável, assoma em seus lábios encarquilhados, enquanto perambula pelo velho casarão. Abre e lê os jornais. Vê a televisão. Compra revistas bem editadas. A tudo aprova, batendo na beira da cadeira de balanço com seu velho pincenês, enquanto se diverte por dentro com tantas e tantas análises feitas de sua obra.

Pois é, podemos imaginar a cena. Afinal, tudo é possível, em se tratando de Machado de Assis. Só não é possível deixar de reconhecer sua importância, sua grandeza, sua genialidade.

O maior escritor brasileiro, talvez um dos maiores do mundo – sou obrigado a curvar-me, mesmo admirando um Rosa ou um Graciliano, tão grandiosos quanto ele – tem, no seu centenário um momento raro de reconhecimento desse povo que lê tão pouco e que precisaria realmente reencontrar seus grandes autores.

Machado já tem aquela aura que o tempo dá aos que são eternos. Além de ter nascido no século XIX, um dos mais prolíficos séculos das letras de toda a história da humanidade e ter vivido aquele momento transformador que formou nossa consciência, nossa cultura.

Mas, do que eu quero falar, mesmo, nesse breve e despretensioso artigo, é de Don Casmurro, o romance-enigma, a obra mais comentada de Machado, tendo já direito a filmes, a mini-séries na televisão, a centenas talvez milhares de artigos a falar, quase todos de... Capitu.

A mulher de olhos de ressaca tomou corações e mentes. Lê-se romance para entender Capitu, para falar de Capitu, para buscar razões de Capitu, para decifrar o mistério de Capitu. Quando, na verdade, pelo menos em minha opinião, o grande mistério, a grande personagem não é Capitu, mas Bentinho.

Não há dúvida de que Capitu é uma grande personagem, mas é criação de Bentinho, vista e observada por ele, o narrador que vive a vida através do espelho Capitu, para mostrar a si mesmo, para se criar como personagem. A que assistimos, então, ao acompanhar a saga de Capitu, vista pelos olhos de Bento? A transformação lenta de um menino em homem e desse homem em um ser amargo, casmurro, ensimesmado e duro.

Dom Casmurro é um romance alquímico: Machado coloca no cadinho da dúvida de Bentinho toda a sua arte de escritor, desvelando pouco a pouco aquilo que a vida faz de um ser humano ao longo de sua trajetória em busca do conhecimento, do autoconhecimento. E não deixa pedra sobre pedra, nessa construção amarga. O pessimismo do autor destila em cada linha, em cada palavra, a mensagem cruel de que é preciso duvidar, de tudo e de todos, para encontrar a sabedoria, mesmo que nos arrisquemos a nos tornar tão amargos, que os amigos nos alcunhem de Casmurro, tendo o dom sido acrescentado pela ironia da situação.

Dom Casmurro, e não Capitu, na verdade, é a grande personagem de Machado, a despeito de tudo o que já se escreveu sobre ela. Que me desculpem as mulheres e aqueles que adoram ficar na duvidazinha meio besta da traição ou não de Capitu.

dezembro 10, 2008

SOMOS TODOS MUITO COMPLACENTES

Vou meter minha colher num assunto complicado. Complicado e polêmico. Que não deverá agradar a muita gente, diria, até, que não agradará à maioria quase absoluta dos seres humanos. Mas, vamos lá. Verité oblige.

A crença deísta baseia-se e se desenvolveu na mais estúpida forma de filosofia criada pelo ser humano, a metafísica. Acreditar na simples possibilidade de que há um mundo etéreo, além do real, fez-nos reféns de crenças absurdas, que cultivamos desde tempos imemoriais. Crenças que destroem no homem qualquer possibilidade de uma melhor compreensão de si mesmo e dos fenômenos naturais.

Somos fruto de um longo e aleatório processo evolutivo, natural, harmônico às vezes, cruel, na maioria das vezes, por envolver a luta de forças poderosas e antagônicas. Da batalha evolutiva de bilhões de anos, aqui estamos, um estágio da célula primeva, mas um estágio. De onde viemos exatamente e para onde vamos, como seres vivos, não sabemos e talvez não venhamos a saber nunca. Isso, porém, absolutamente, não importa. Porque, dentro da linha evolutiva, uma geração de humanos é um nada, um milésimo de milímetro em bilhões de quilômetros percorridos e a percorrer. O tempo, o nosso tempo, é tão finito e vago como o piscar de um vaga-lume na escuridão da noite.

Criar a possibilidade absurda da permanência, através de uma alma imortal, determinou um tipo de pensamento mágico que persegue o homem desde os primórdios de suas mais primitivas estruturas mentais. A metafísica contida nessa magia destruiu sua capacidade de pensar logicamente em suas origens e destino. Deuses e rituais mágicos são, apenas, conseqüência de uma necessidade absurda de imortalidade, como se, criado por criatura surgida dessa necessidade, ele tivesse que sobreviver para comprovar a si mesmo que é o produto máximo dessa pretensa criação. É, portanto, a demonstração mais acabada de nossa arrogância, mais até que fruto da ignorância.

A civilização dos homens fundou-se, então, em princípios deístas, metafísicos, de crença em deuses, profetas, vida além da morte e todos os demais ritos e pensamentos ilógicos daí provenientes. Um manto perverso de miséria e cegueira cobriu, talvez para sempre, a capacidade do homem de se ver como um produto da evolução, como um animal evoluído, e não, como pregam as metafísicas deístas, um anjo decaído, uma criatura formada à imagem e semelhança de um criador que tem todas as qualidades que o ser humano, individualmente, gostaria de ter, para se imortalizar.

As conseqüências disso estão aí: todas as religiões, todas as seitas, todas as filosofias deístas condenam a vida e exaltam a morte. São crenças de adoração a deuses mortos que ressuscitam, a deuses que prometem benesses celestiais, a deuses que condenam o pretenso materialismo dos seres humanos e enaltecem o espírito, seja lá o que queiram dizer com esse tal de espírito. Tão forte a idéia, que o termo se tornou absolutamente banal, e sinônimo de todas as boas qualidades do homem. Um absurdo completo!

Cultuar a morte é dar pouco valor à vida. Afinal, a vida só começa, mesmo, com a salvação prometida pelo deus. No céu, no paraíso, no tal outro lado da vida. E não adianta dizer que, nesses milhares e milhares de anos de civilização e de documentação, não há uma só prova, uma única, de que alguém tenha voltado de além-túmulo, ou sobrevivido à morte. Os deístas apresentam como provas milhões de falsos testemunhos, de meros desejos ou, mesmo, de inúmeros casos da mais clara prestidigitação, para encher os ouvidos e as mentes dos crentes no poder de deuses que nunca, em tempo algum, alguém viu ou com eles alguém teve contato que se provasse cientificamente.

Então, morrer é o que de menos pior pode acontecer ao ser humano. Mesmo que a morte de um ser querido nos atormente e nos faça sofrer. Resignamo-nos, porque, primeiro, é vontade do deus; segundo, porque deverá estar, o ente querido, no paraíso ou ao lado desse deus; terceiro, porque iremos todos nos reencontrar um dia, seja quando morrermos, seja num pretenso juízo final.

Então, matar também não faz muita diferença, embora condenemos o assassínio. Condenamo-lo, em termos. Porque lhe perdoamos. Afinal, a vontade de um deus cumpriu-se pelas mãos de um mortal, também filho desse deus. Choramos muito os assassinados, os que morrem pelas mãos de outro ser humano, mas, no fundo, nos consolamos. E queremos, mais que a justiça dos homens, a justiça divina.

Por isso, quando vejo o desespero nos rostos de pais, mães, irmãos, familiares e amigos de pessoas assassinadas inutilmente em nossas ruas, em nossas cidades, em qualquer lugar, seja por balas perdidas, seja por bandidos e assaltantes, seja por terroristas ou soldados em campos de batalha, não consigo deixar de pensar em como somos todos tão complacentes com esses assassinos. Em como pedimos inutilmente justiça aos homens, quando, na verdade, só confiamos, como idiotas ancestrais, na tal justiça divina que alimenta todos esses assassinatos.

dezembro 08, 2008

SABER PENSAR, SABER ESCREVER

Até parece enchente. Todo ano é a mesma coisa: a imprensa publica, o Jô Soares tripudia, educadores comentam, todo mundo dá palpite. São as famosas respostas de alunos do curso médio em provas internas ou em avaliações oficiais. São as famosas bobagens que eles escrevem.

Já toquei nesse assunto algures, alhures ou nenhures, quem sabe? Mas, não custa acrescentar um veneninho na discussão, de novo, se for o caso.

O que geralmente mais chama a atenção nas provas de língua e linguagem são os erros de grafia. Abundam. Incomodam. Provocam deboche. De vez em quando, alguém chama a atenção também para a falta de lógica dos textos de nossos pobres aluninhos espezinhados em praça pública.

Esse ano, acrescentaram mais um deboche (e esse, até que merecido): professores que comentam, por escrito, as tais provas, cometendo os seus errinhos de português.

Então, vamos ao que interessa.

Primeiro, ortografia é o de menos. Basta atenção. Basta um dicionário. Basta um corretor de texto do computador. Quando se erra, é fácil corrigir. Exercícios, leitura, cópias, o professor tem um arsenal a seu dispor para levar o aluno a escrever corretamente as palavras da nossa língua, cuja ortografia não é das mais fáceis, mas também não é das mais difíceis. E, afinal, ortografia é convenção. Agora, mesmo, vai entrar em vigor, por lei, decreto, sei lá, novas regras de acentuação e grafia. Nada muito profundo, nada muito emocionante.

Segundo, o que realmente importa são as frases desconexas, o pensamento confuso, sem lógica, indicando, aí, não apenas um problema lingüístico (esse trema vai desaparecer, e já vai tarde!), mas um problema mais profundo, de falta de compreensão da realidade, através da linguagem. E isso não é problema só do professor de português, não.

É problema de todos. Da escola que tem professores mal pagos e, conseqüentemente, mal preparados, formando um círculo vicioso que precisa urgentemente ser quebrado.

É problema de sistemas ditos avançados de ensino, que promovem alunos sem qualificação, para esconder suas deficiências.

É problema dos currículos, que não incluem matérias , como filosofia (ou até mesmo latim, que havia antigamente), que ensinem a pensar.

É problema dos métodos de ensino ensacados em apostilas previamente preparadas em pílulas, como se o conhecimento pudesse ser transmitido através de conceitos rasos e simplificados. Metodologias sem criatividade (aliás, os professores deviam ter aulas de criatividade, para motivar os alunos e sair da mesmice de aulas expositivas).
É problema do sistema de avaliação, que não exige que o aluno pense, analise, faça correlações, crie.

É problema da sociedade de consumo, onde tudo se massifica, onde os meios de comunicação não atingem os jovens, não os atraem para o que realmente importa, aí incluída, principalmente, a televisão, com seus milhares de horas de programação infantil que mais imbeciliza do que educa.

É problema dos pais, que não conseguem impor aos filhos valores de respeito à cultura, à escola, aos mestres.

É problema das secretarias de educação de estados e municípios, mas principalmente de municípios, cuja responsabilidade deveria ser prover as escolas de bibliotecas, de bons professores, de boa merenda (que estômago vazio perturba o cérebro), de ambiente agradável para a prática do saber e do desenvolvimento integral do ser humano, com atividades culturais e esportivas, e não construir verdadeiros depósitos de crianças.

Enfim, há todo um trabalho imenso a ser feito, para que todo ano, como enchente de dezembro, não tenhamos de ouvir sempre as mesmas críticas às nossas pequenas vítimas dessa série imensa de incompetências.

Quando o círculo vicioso será quebrado? Quando?

Ah, e mais uma coisinha só, fundamental: aluno erra e é corrigido ou deveria ser corrigido, afinal está aprendendo... mas professor! ? Esse não tem direito de errar, não. E principalmente, não tem direito de tirar sarro, quando devia era sentar e chorar. Por eles mesmos, muito mais pobres e sacrificados, que seus pobres e sacrificados alunos.