junho 03, 2011

A DITADURA DO INDIVIDUALISMO, OU: POR QUE CONSUMIMOS DROGAS


(Bosh - seven sins)


Introdução




Esta é uma longa reflexão sobre o homo sapiens e seu desassossego existencial que leva ao consumo das drogas. Não é fruto de experiência, mas de busca filosófica, de tentativa de explicar o inexplicável, talvez. Mas vale como uma contribuição – estritamente individual – sobre o que representa o consumo de drogas para o homem e por que ele aprecia tanto escapar da realidade através de meios químicos.




O público e o pessoal


Entre o que é essencialmente pessoal e o que é público, há abismos insondáveis. Difíceis de transpor e impossíveis de se conciliarem. Há indivíduos absolutamente lúcidos e inteligentes que propõem, por exemplo, a descriminalização das drogas, porque defendem que o indivíduo tem o direito de se estragar, de fazer de si o que acha melhor, sem que o poder público tenha nada com isso. 

Cada um tem o direito de se entupir, por exemplo, de comidas gordurosas tanto quanto de fumar maconha ou cheirar cocaína até uma overdose fatal. É o direito individual levado ao extremo, como o de se destruir através de todas as loucuras, desde que o fato de se drogar ou de se entupir de colesterol ou de usar uma arma de fogo não ocasione prejuízos a terceiros, no que, então, seria punido pelas leis existentes. 

Abre-se, aí, um universo novo de total liberdade, em que a responsabilidade individual parece ganhar ares de absolutismo, numa fórmula que condiciona a sociedade a existir e insistir no respeito às individualidades, num mundo que ganharia, afinal, os moldes de um idealismo de liberdade total. Liberdade que faria com que o indivíduo percebesse que ele pode tudo até o limite do outro, ou seja, aquele ponto em que suas ações e atitudes ofendam ou coloquem em risco o outro. As leis só existiriam como estatuto de proteção e conciliação ente os interesses individuais e a sociedade, não importando se milhões de zumbis alcoolizados, drogados e obesos andassem pelas ruas, porque, afinal, ninguém teria nada com isso. 

Um novo socialismo utópico se construiria, com uma sociedade não mais voltada para os valores de consumo de massa, mas para o consumo das drogas, como forma de inanição diante dos problemas comezinhos do dia a dia e de fuga da vida burguesa ou capitalista a que somos todos condenados a viver, há muito tempo. Parece lógico para essas pessoas que as doenças advindas do consumo das drogas não deveriam, então, ser tratadas. Se alguém estiver morrendo de overdose, na rua, que morra em paz. Se os obesos consumidores fanáticos de picanha se estrebucham num ataque cardíaco ou num derrame cerebral, que se contorçam sozinhos, sem que o sistema assistencial pago também com o dinheiro dos que se cuidam tenha o dever de interferir e de salvar as suas vidas. Ou, então, que os que se arvoram o direito de se suicidarem lentamente tenham os seus próprios sistemas assistenciais, pagos com seu trabalho e seu suor, seja como for que o façam, sem que venham a onerar o sistema de saúde dos outros, daqueles que não se drogam, não se estragam, não se suicidam lentamente. 

Então, numa sociedade assim, teríamos dois sistemas econômicos, não importando que se viva sob regime capitalista ou socialista. O direito a consumir-se não pode onerar o sistema dos que não defendem tais direitos, porque, afinal, espera-se, se a droga e o direito de estragar-se se tornarem consuetudinários, que se respeitem aqueles que não querem e não desejam estragar-se e consumir-se do mesmo modo. 

Talvez se proponham, até mesmo, dois governos: um para os cidadãos que não se consomem e outro para os que se arvoram o direito de estragar-se. Seria bastante curioso, por algum tempo, perceber como os que se consomem iriam administrar o sistema produtivo, se é que conseguirão constituir algum, que possa sustentar o outro sistema, o de produção e consumo das drogas. 

Também seria necessário que houvesse regras e leis precisas de abdução de um sistema para outro. Alguém que se droga e quer deixar de fazê-lo: de quem seria o ônus pela mudança? Ou vice-versa: alguém que não se droga e resolve apenas experimentar, por haver facilidade de aquisição, como seria o impasse resolvido? Passaria automaticamente para o outro lado ou haveria um tempo de tolerância, para ver se o indivíduo quer isso mesmo? 

Como estamos num mundo extremamente voltado para os valores individuais, é claro que um tempo de tolerância seria o ideal, restando apenas saber a quem caberia o ônus econômico de tal decisão. Não há dúvida de que muitos impasses podem ser resolvidos. Outros, nem tanto. De qualquer modo, o direito individual seria a lei suprema, o norteador de todas as ações sociais e políticas. 


Drogas e sociedade


E então, eu pergunto: é esse o caminho do homem, na sua trajetória sobre a face da terra? O que viria de uma sociedade em que as drogas, todas as drogas, fossem livres? Não seria essa uma forma eugênica de escolher os melhores para continuar o processo evolutivo, depois de uma fase de caos absoluto? O destino do homem estaria definitivamente associado e atrelado aos interesses individuais, ou seja, toda a sociedade construída, e muitíssimas vezes muito mal construída, até agora foi apenas um arremedo do verdadeiro destino humano? Estão nas drogas que amortecem o pensamento o futuro e o nascimento de um novo homem que se consumirá até desaparecer, dando lugar a uma outra espécie geneticamente imune ao seu uso? 

São questões que me assolam, quando penso que muitas pessoas defendem a total descriminalização das drogas, como forma de resolver os seus problemas pessoais, a sua inabilidade para tratar as coisas comuns da vida, a sua inadaptação orgânica à própria existência ou as suas crises existenciais e o desconforto perante o mundo que as ameaça com cobranças, com regras e leis às quais não conseguem se conformar. 

O ser humano é, mesmo, o mais complexo elemento da natureza e a convivência com desigualdades tem sido o grande salto de humanização do próprio homem, mas levantamos dúvidas cruéis quando está em jogo o absolutismo do direito individual contra o absolutismo do direito social.

Qualquer julgamento que se faça a esse respeito resvala no moralismo absurdo da defesa de um dos dois extremos. Porque julgo moralista tanto a condenação de um lado quanto a condenação do outro lado. Defender o direito de contrariar a sociedade de forma total e absoluta é assumir uma posição moralista de condenação do outro tipo de vida, da mesma forma que condenar de forma absoluta os que se arvoram o direito de fazer o que quiserem com o próprio corpo e com a própria vida também se constitui numa posição moralista. 

O equilíbrio entre as duas posições torna-se quase impossível. 

Como não há o que se condenar, a visão de quem observa os contendores nessa luta parece indicar que, primeiro, embora sejam muitos os que pregam a liberdade absoluta, não são a maioria; segundo, a sociedade constituída, não importa em que tipo de regime, tem o fôlego de milhares de anos de imposição de valores e não vai abrir mão deles; terceiro, e talvez o mais importante a favor da sociedade, há o fator econômico, aquele que pesa mais do que qualquer ideologia religiosa ou filosófica: as drogas, ao mesmo tempo em que movimentam um lado economicamente ativo da sociedade, enriquecendo a uns tantos, não pode se tornar bem comum, simplesmente porque não interessa a quem aufere esses lucros que eles se coletivizem e, além disso, a própria sociedade economicamente produtiva, que se utiliza das drogas em suas festas e nos seus momentos de revolução individualista, não tem nenhum interesse em se desestabilizar em prol de uma causa de futuro incerto, preferindo manter tudo como está, sem o ônus de permitir o descontrole que pode levar ao caos o sistema produtivo. 

Porque liberar significa democratizar, e democratizar significa a possibilidade de perder o controle sobre a mão de obra que sustenta, com seu trabalho de formigas mal pagas, todo o sistema construído de forma sistemática por gerações e gerações de umas poucas famílias que dominam a economia em cada uma das nações da Terra.

Portanto, continuarão a ganir ao longo dos caminhos os que a sociedade vê como cães desgarrados a defender a liberalização total das drogas como solução que essa mesma sociedade vê, com olhos às vezes condescendentes, às vezes com olhos condenadores, como uma ilusão, como um sonho ou pesadelo que a mão pesada da repressão e da polícia irá, com certeza, no seu devido tempo, coibir. Porque, numa visão extremamente pragmática, aquilo que não tem solução solucionado está.


Por que gostamos de drogas


A posição moral oficial é condenar e criminalizar definitivamente o uso das drogas, ou ainda, numa posição mais radical, demonizar consumidores, traficantes e dependentes. Tal posição torna-se extremamente confortável, porque, a partir dela, todas as objeções caem por terra: não há discussão, não há racionalidade.

Fiquei, então, preocupado: se condeno o uso de drogas, assumo um moralismo com o qual não concordo. 

Um beco sem saída? 

Devo buscar uma razão que não esteja ligada à metafísica, ao moralismo platônico, ou mudo de lado. Apelo para a ciência: se tenho pensamento científico, se a ciência condena o uso de drogas, logo, não devo estar errado ao assumir uma posição também contrária. Mas isso é ir a reboque de informações que me passam e que eu não posso conferir se estão certas ou erradas. 

Penso, então, no indivíduo, apenas no indivíduo. Por que razão alguém há de se drogar? Que prazer é esse? 

Como nunca me droguei, também aí o terreno é movediço, pois não tenho nem experiência nem conhecimento suficiente para dizer em que estado fica o indivíduo que se droga. 

Tudo é, portanto, muito nebuloso para mim. Passar pela experiência de uma viagem para a qual não estou preparado, isto é, experimentar alguma droga para ver como é, isso, definitivamente está fora de meus propósitos. Portanto, tudo o que vou escrever a partir de agora situa-se no terreno da especulação, do ouvir dizer, do haver lido e pesquisado, enfim, da experiência tomada emprestada.

Posso passar longe da verdade, ao tentar explicar o que eu penso do uso de drogas e, até mesmo, passar por moralista sem causa. Um risco menor do que ficar no lusco-fusco das idéias mal resolvidas e não tomar uma posição clara a respeito. 

Volto ao indivíduo.

Nele pode estar o motivo de minha recusa às drogas e por ele começo a investigar a minha própria ojeriza ao ato de drogar-se. 

Ao nascer, trazemos em nossos corpos imperfeitos uma grande carga genética de que não sabemos a origem, ou sabemos muito, muitíssimo pouco. Há em nossas células, a conformar nossa índole, milhares de influências de inúmeras gerações, desde que o homem se descobriu a pensar ou até mesmo antes, quando ainda rastejávamos nos pântanos como organismos primitivos. Nesses milhões de atos evolucionistas que nos transformaram em seres pensantes e comunicativos, nossos antepassados caminharam por sendas inimagináveis, na luta pela vida e pela sobrevivência em ambientes hostis. Experimentaram de tudo. Comeram de tudo. Mataram e morreram milhares e milhares de vezes, para chegarem a um organismo que hoje atende por homem e mulher, num cadinho misterioso de influências, de heranças das quais ainda não temos a mínima idéia. E mais: nessa trajetória intrincada, cada organismo humano é único, apesar da quase total semelhança. Impossível quantificar o quanto somos iguais e o quanto somos diferentes. Talvez, numa tentativa de aproximação, sejamos muito semelhantes numa percentagem que se aproxima em muitas casas decimais dos cem. Mas, a milésima da milionésima parte de diferença que temos de uns para com os outros já nos torna únicos e completamente diferentes. E todos, desde que nascemos até a nossa morte, lutamos para nos adaptar. Ou seja, viver é tentar adaptar-se ao mundo. De milhões de formas diferentes, procuramos nos adaptar ao meio em que vivemos. Isolados ou gregários. Em pequenas ou grandes comunidades, felizes ou infelizes, loucos ou sadios, todos temos um só objetivo: adaptarmo-nos. 

Então, as dificuldades começam aí: na luta para nos tornarmos coerentes com o mundo que nos cerca, para não sermos levados pela maré, para não sermos surpreendidos na contramão da vida. Uns mais, outros menos, todos buscam viver o máximo possível. E como temos consciência de que vivemos e morremos, e como temos consciência de que o corpo em que habitamos é nossa única ligação com o mundo, com a vida, podemos, em função das milhares e milhares de heranças genéticas que carregamos, não obter um nível desejável de adaptação, não só ao meio em que vivemos, mas também ao corpo que nos dá vida. 

Por menor que seja essa inadaptação, há sofrimento. Em graus tão variados, que não nos permitimos quantificá-lo. Sofrimento que gera tanto os gênios quanto os idiotas. Se, na natureza, o animal que não se adapta é morto pelos seus ou é abandonado para morrer, entre os homens não há essa possibilidade, porque o nosso grau de consciência de nossa humanidade não nos permite que assassinemos friamente um filho que nasça com algum tipo de inadaptação, embora haja registros históricos de povos que o fizeram (ou ainda o fazem?). 

Além disso, não há apenas as inadaptações físicas: muitas dessas inadaptações são fruto de nossa química cerebral, que nos faz pensar diferente do comum dos mortais, que nos faz ver o mundo de forma enviesada em relação aos outros, ou que nos faz agir de forma diferente, configurando desvios de comportamento mais ou menos inaceitáveis pela sociedade. Dentre os milhões de seres humanos com algum tipo de desvio do que se chama normalidade, uma categoria arbitrária, muitos e muitos só vislumbram saída em algum tipo de fuga através de fármacos que lhes entorpeçam o pensamento diferenciado ou lhes permitam agarrar-se a algum tipo de lucidez possível na luta pela adaptação à sociedade, ao mundo e, principalmente, a si mesmos. 

As drogas, não importa quais sejam, agem na química cerebral e modificam as sinapses mentais, alterando a percepção que as pessoas têm do mundo, enquanto estão agindo. Não há nenhuma porta metafísica de percepção de outras realidades, mas apenas a exacerbação de uma visão que já existe no cérebro e que a droga, ao estabelecer ligações esquecidas ou obliteradas pela realidade, ativa ou reativa como fuga dessa mesma realidade. Como são elementos químicos, viciam e, ao viciarem, a droga faz de seu usuário um escravo de estados alterados da consciência como forma de adaptação a um mundo que, agora, não é mais o real, mas o mundo criado e transfigurado pela capacidade inaudita do cérebro de inventar e imaginar, a partir da realidade, outras realidades mais agradáveis ao indivíduo. 

Alguns mitos se formam a partir daí, mitos que a ciência nunca comprovou. Por exemplo, um indivíduo criativo não tem essa qualidade exacerbada pela droga e, às vezes, pelo contrário, tem-na diminuída, mas o cérebro engana o pensamento lógico e faz que ele acredite estar tendo visões fantásticas e ideias ainda mais incríveis do que em estado normal. O vício químico obriga, por outro lado, a que o indivíduo tome doses cada vez maiores ou que as tome sempre, ligando-o definitivamente a um estado de imaginação a que os drogados chamam de viagem. 

Não há viagem, há apenas estados enganosos de falsa felicidade ou de falso bem estar do cérebro, para exigir que o indivíduo se drogue. Portanto, a droga não faz do indivíduo um ser mais adaptado do que outro, apenas leva-o a acreditar que o mundo a seu redor tornou-se menos agressivo para ele, ou que o seu corpo deixou de ser motivo de sofrimento ou, ainda, que as barreiras morais impostas pela sociedade desapareceram e o indivíduo pode tudo, inclusive matar ou matar-se. Assim, a tendência é buscar sempre o estado de distanciamento da realidade provocado pela droga, como forma de driblar as angústias da inadaptação. 

O artificialismo da situação leva-me, portanto, a concluir que a tal fuga pelas drogas é uma rota sem saída, porque o individuo perde aquilo que é um dos bens mais preciosos da vida, além da própria vida: o domínio de seu pensamento, o domínio de si mesmo, a sua capacidade de sonhar os seus próprios sonhos, de imaginar os seus próprios caminhos e viver a sua própria vida. Perde o direito de decidir sobre si mesmo. O efeito das drogas deve ser, guardadas todas as devidas proporções, como contemplar um pôr do sol tirado por uma foto ou visto na tela do cinema e o verdadeiro ocaso. Por mais belo que seja o do filme, não terá comparação com a realidade, por mais simples que ela seja. Perder a consciência, perder a lucidez da visão do mundo, por mais dolorida que seja essa visão, por mais difícil que seja a realidade a ser enfrentada, não vale o prazer ou até mesmo o desprazer de enfrentar o mundo como ele é. Essa visão é uma experiência milhares de vezes mais rica do que fugir através de um estado alterado de consciência provocado seja por que droga for. 

Por isso, a minha ojeriza em relação às drogas: funcionam tanto como entorpecimento e desfiguramento da realidade, quanto qualquer fuga dessa mesma realidade através da metafísica ou da religião. Pode-se explicar, portanto, o uso e abuso de drogas, mas não se pode justificar.

Há, sob a minha condenação, uma visão estritamente humana, muito humana. A depuração de todos esses desvios (que constituem uma trajetória necessária), segundo a minha concepção, se dará de forma lenta e gradual, para a formação de uma humanidade livre da necessidade de usar muletas para enfrentar a realidade e com ela conviver de forma lúcida e racional. 


Conclusão


O homo sapiens – ou melhor, muitos de sua espécie – ainda vai levar muitas gerações para se livrar da necessidade do consumo de drogas, sejam elas químicas ou metafísicas. Enquanto isso, precisamos aprender a controlar tal vício (entendendo-se como vício toda necessidade de fuga da realidade, por inadaptação ao mundo em que vivemos). Se a repressão total não funciona e se a liberalização total poderá ser um caminho sem volta para a destruição do organismo social através da corrosão dos valores individuais e sua imposição à sociedade, teremos que buscar, com toda a nossa capacidade de imaginar e de criar (principalmente através da ciência) um caminho que seja menos doloroso e menos desastroso para o indivíduo e para a humanidade. Qual será esse caminho? Não sei. Só sei que ele precisa ser – e será – encontrado.