O assunto é complexo. Não pode ser levado para o lado da
política partidária. Tem que ser discutido como política pública. Tem que ser
discutido em bases de ética e sociedade. Sem vieses religiosos ou político-partidários.
Somos uma sociedade que mata. Mata-se por qualquer motivo ou
por nenhum motivo. Jovens matam. E morrem. Bandidos matam e morrem. Policiais
matam muito e morrem muitos também. A barbárie parece não ter fim.
Por que damos tão pouco valor à vida humana?
Eu tenho as minhas explicações - que podem não ser as
verdadeiras. E cada um pode encontrar mil outras, para defender mil pontos de
vista diferentes. Faz parte da discussão, faz parte do processo democrático e
civilizatório.
Mas há um ponto para o qual todos convergem: é preciso deter
a matança. De alguma forma. E, nesse caso, não sejamos hipócritas: por mais que
isso arrepie as mentes mais "evoluídas" e prestigie o mais rançoso
conservadorismo, não podemos negar que os fins podem, sim, justificar os meios.
Nossas leis são pusilânimes e nosso sistema penal parece
dizer que o crime compensa. Ou melhor, o crime de morte compensa, já que, às
vezes, penalizamos com rigor pequenos delitos, numa desproporção entre o ato
cometido e a pena imposta, e somos complacentes com o crime de morte, mesmo
quando as penas são duras, através de mecanismos que levam à soltura do
assassino depois de cumprir parte da pena e não a pena toda, como se o total
apenado fosse injusto, o que leva a uma sensação de impunidade, esvaziando o
sentido do próprio julgamento. Mas tudo isso é questão para ser resolvida por
nossos legisladores, e implica muita discussão. O que importa é que precisamos
tirar dessa discussão o imediatismo. Porque, quando acontece um crime hediondo,
logo milhares de pessoas literalmente berram por punições mais enérgicas, o que
parece não estarmos preocupados com o crime, mas com o criminoso. A função da
lei é estabelecer com o máximo de justiça a quantidade de punição em função do tamanho
do delito, conforme seja consenso da sociedade. A individualização do criminoso
só ganha importância no ato do julgamento, para efeito de caracterização de
elementos atenuantes ou agravantes da pena. Não se pode elaborar leis com o
pensamento num determinado criminoso ou num determinado ato criminoso.
Há um outro aspecto perverso em nossa sociedade, o que
aprofunda outra perversidade: o criminoso, para a sociedade conservadora e
atemorizada por quaisquer crimes mais hediondos ou de maior repercussão, passa
a ser visto como "monstro", contra o qual todas as misérias e
sofrimentos humanos devem se abater. Então, não cuidamos de nossas prisões,
pois achamos que elas devem ser uma espécie de "inferno", ou, no
máximo, um "purgatório": lugar de sofrimento. Desumanizamos a imagem
do detento, entregue aos "demônios" (carcereiros), que ganham o
direito de dispor até da vida dessas pessoas, mantendo-as sob condições totalmente
degradantes. As condições prisionais são a punição, e não a privação da
liberdade. E isso é um absurdo que está no inconsciente coletivo de nosso povo
(e de muitos outros povos), que veem o encarceramento como vingança e não como
punição, esquecendo-se de que o objetivo do encarceramento é afastar por um tempo
ou definitivamente do convívio da sociedade os indivíduos que não podem com ela
conviver, por terem delinquido ou por serem um perigo para as demais pessoas. A
pena é a reclusão, não as condições carcerárias. O fato de um indivíduo ser um
criminoso - não importando seu crime - não nos dá o direito de torturá-lo, de
tratá-lo de forma desumana, de querer que ele morra à míngua ou viva em
condições degradantes dentro de uma prisão.
Assim como sou totalmente contrário à pena de morte, porque
depois de executada não há como revertê-la, em caso de erro de julgamento, e
porque não é função do Estado matar ou vingar-se, além de outros argumentos
mais profundos e de conteúdo ético e humanitário, sou também totalmente
contrário a que mantenhamos nossos detentos em condições degradantes, em
prisões onde o indivíduo seja tratado como "coisa" descartável, ou
lixo que não se recicla. Condição carcerária degradante é, na minha opinião, um
crime tão hediondo quanto a tortura.
Isso está muito claro na posição da sociedade, em relação ao
famoso "massacre do Carandiru", quando a polícia militar de São Paulo
invadiu o presídio, rebelado por disputas entre gangues internas, e matou a
sangue frio 111 presos, numa das mais horrendas ações de que se tem notícia na
história policial do País. Principalmente quando se sabe que os detentos não
estavam armados, pelo menos não com armas de fogo, e que a maioria foi morta no
próprio ato de rendição. Enquanto a mídia nacional e internacional e os
humanistas todos praticamente condenaram unanimemente a ação da PM de São Paulo,
a população manteve um olhar de até certa simpatia ao fuzilamento dos presos,
como se isso fosse um favor à sociedade, ao livrá-la desse "lixo".
Também é sintomática dessas ideias "higienistas"
de uma grande parcela da população a notícia - falsa, muito falsa - que corre
nas redes sociais de que os presos ganham dinheiro do governo, enquanto estão
presos, numa espécie de "bolsa-detenção", o que leva muitas pessoas a
expressar sentimentos de revolta não só contra isso, mas contra a população
carcerária em geral.
É preciso que a sociedade entenda - e isso é um processo
civilizatório - que os criminosos que ela gera, os marginais e os marginalizados,
os pobres e os miseráveis são todos seres humanos como qualquer outra pessoa e
são fruto das condições dessa mesma sociedade, o que a torna tão responsável por
eles quanto é responsável por todos os cidadãos, não tendo o direito, portanto,
de condená-los à degradação quando alguns desses indivíduos cometem delitos. Se
a sociedade produz seres inadequados à convivência com outros indivíduos, é
sua, sim, responsabilidade de cuidar deles da mesma forma como cuida de todos
os demais, mesmo quando condenados por sejam lá quais crimes. O assassino não
perde sua condição de ser humano, ao matar.
Então, temos aí dois problemas: uma visão distorcida do
problema da delinquência, com leis inadequadas e complacentes, e uma visão
revanchista, de vingança, de ódio, à população carcerária.
Cadeia tem duas funções: punir e recuperar. Nosso sistema carcerário
só pune. E o faz da maneira mais desumana possível. Claro, há os indivíduos
irrecuperáveis, mas esses são exceção e mesmo eles não podem ser tratados
desumanamente, porque, como disse e reafirmo, eles continuam sendo cidadãos e, principalmente,
seres humanos, e o Estado ou quem o representa não são vingadores, não têm e
não podem ter o direito de torturar ou tratar a quem quer que seja de forma
degradante, contra todos os princípios humanitários.
Talvez por isso, o Estatuto do Menor e do Adolescente tenha
uma visão extremamente protecionista, até em relação ao menor infrator. A
desconfiança absoluta no sistema penal produziu a proteção absoluta ao
inimputável. Então, a discussão que se abre a cada crime hediondo cometido por
menor ganha foro de revolta popular contra uma lei que é justa nas intenções,
mas falha na sua aplicação. E a discussão que toma o público não se calca em
argumentos racionais, diante de fatos que comovem, como um assassínio frio de
um jovem por outro, este menor e, portanto, provavelmente não passível de
punição mais rigorosa: quer-se, simplesmente, diminuir a maioridade penal, para
tratar adolescentes como adultos e aplicar-lhes as mesmas penas que ao
criminoso comum, como se isso fosse resolver o problema da delinquência de
menores.
Não sou e não poderia ser a favor de tal insanidade, porque
diminuímos hoje a maioridade para 16 anos e, daqui a alguns anos, para 14 e não
sabemos nunca onde isso vai parar. Daqui a pouco, estaremos pedindo a prisão de
recém-nascidos, por terem provocado, com seu nascimento, a morte da mãe.
Mas, por outro lado, não podemos deixar a sociedade sob
risco, ao não punirmos adequadamente e não recuperarmos de forma convincente os
menores que cometem crimes considerados hediondos. Assim como colocamos de
castigo nossos filhos pequenos, quando "saem da linha", ou seja,
quando não se comportam, e procuramos ser o mais justos possível, sem que
lancemos mão de métodos físicos, absolutamente contrários a qualquer
metodologia educacional, também a sociedade precisa ter regulamentos mais
severos - e justos - para punição de menores que não sejam apenas
"infratores", mas que cometeram crimes mais graves.
Sem dúvida, liberdade com "ficha limpa" aos 21
anos, como se nada houvesse acontecido, parece-me um tanto absurdo e até mesmo
não condizente com a realidade tanto social quanto psicológica desses menores.
Não estamos fazendo nenhum bem nem à sociedade nem a eles mesmos, porque fica
claro que a ideia de que a punição também deve servir de exemplo desmancha-se
por completo, sinalizando aos demais menores - e aos adultos que os induzem ao
crime ou que comandam suas ações - que a vida humana realmente não tem nenhum
valor. Portanto, um sistema mais duro de punição precisa ser imposto, sem que
se altere a atual maioridade penal. E também deve ser agravante, e bem
agravante, a indução de menores ao crime por adultos.
Qual seria esse sistema? Muitas são as possibilidades e é
direito da sociedade e seus representantes discutir a melhor forma. E a hora é
agora. Adiar tal discussão é irresponsabilidade, diante do clamor popular por
medidas mais drásticas e de alcance duvidoso ou que provoquem danos
irreparáveis que podem ser tomadas no calor de fatos de grande comoção social.
Quaisquer que sejam as medidas que provoquem aumento de
penas para menos que cometem crimes hediondos - e não para menores
"infratores" - há que se resolver um problema sério: melhorar as
condições de recolhimento desses menores. Separá-los por delitos não seria má
ideia. Mas, principalmente, não jogá-los em minipenitenciárias onde cabem
centenas de jovens e, geralmente, com superpopulação, em que as condições de
vida são degradantes, sob as vistas de "monitores" que só têm como
única forma de manutenção da ordem a imposição de disciplina férrea, muitas
vezes com o uso de força física. Isso não educa ninguém. Isso não recupera
ninguém. Há que se pensar em pequenas unidades, para um número razoável de
jovens, sempre poucos e nunca muitos, com supervisão de educadores, psicólogos,
médicos, ou seja, lugares que recuperem a identidade e autoestima desses
jovens, e não sejam escolas de revolta e de crime. Isso eu já disse em artigo
anterior e volto a reforçar, aqui. E ainda mais: dizer que não há dinheiro para
isso é estupidez. Porque dinheiro há, sim, e, se não houver, arruma-se. Basta
vontade política. Dos governantes e da sociedade. Porque é muito mais barato
investir na recuperação e educação dos jovens "infratores" do que em
complexas medidas de segurança.
E mais, ainda: eles não são tantos assim, que possam custar
tanto dinheiro. Consultem-se as estatísticas. O número dos que matam não é
exatamente aquele que nos faz crer a repercussão de seus crimes. São poucos.
Muito poucos. E eles mais morrem do que matam. Matam-se eles mesmos, em lutas
de gangue. Matam-nos os chefes de tráfico, por dívidas e outros delitos contra
a lei do tráfico. Matam-nos carniceiros e justiceiros contratados por
comunidades ou pequenos comerciantes cansados de furtos em suas lojas. Mata-os
a polícia, por qualquer motivo e por nenhum motivo. Mas, matam-nos
principalmente a miséria, a injustiça social, a falta de perspectiva de vida, o
olhar de nojo e de medo de todos nós, trancados em nossos automóveis, em nossas
casas gradeadas, em nossos apartamentos com segurança eletrônica e guardas
armados.
Enfim, precisamos quebrar o paradigma de uma sociedade que
mata e de uma sociedade que não pune. E só uma discussão séria, sem os arroubos
de retórica e de demagogia, sem ranços de visão de mundo revanchista ou
complacente, sem preconceito, é que poderá nos tirar desse impasse.