julho 19, 2014

O EFEITO MANADA






Um pouco de saudosismo: quando o metrô começou a fazer os primeiros testes, e depois iniciou sua operação, com a linha (hoje chamada Azul) Jabaquara - Praça da Sé, o povo que utilizava seus serviços foi orientado a estabelecer alguns protocolos de civilidade: manter os vagões limpos (de pichações e de lixo), dar prioridade a quem sai, estabelecendo um fluxo que deixava livre o lado esquerdo etc. etc. etc. Naquele tempo, o número de passageiros era pequeno e foi, claro, aumentando pouco a pouco e esteve num nível razoável até uns dez anos atrás. A partir daí, estourou: hoje, a quantidade de gente que viaja pela Linha 1 - Azul é assustadora. Com isso, o protocolo de civilidade que estabelecia preferência a quem sai tem passado longe da manada que assalta cada porta que se abre, em cada estação, sem se preocupar com quem está saindo, ocasionando, claro, transtornos, empurrões e cotoveladas que só não se transformam em brigas porque o tempo urge e todos têm pressa e as portas logo se fecham. Permanecer à direita é um procedimento simples, que não exige sacrifício de ninguém, como no trânsito de veículos. No entanto, no meio da manada, o indivíduo age como se fosse bicho, e a atitude de um serve de exemplo para todos e todos se tornam bichos e todos se empurram, se trombam, e ficam mal humorados e vão para seu trabalho ou para sua casa com cara amarrada porque levaram cotovelada, levaram empurrão, levaram trombada no metrô.

Podia dar mil outros exemplos, como o das torcidas organizadas de futebol, compostas, em geral, por gente normal, que trabalha, que é bom filho, bom vizinho, mas quando se junta na manada vira bicho e sai espancando adversários como se fossem inimigos. Gente que, em situação normal,  não mataria uma mosca, assassina impiedosamente o outro porque ele está usando uma camisa diferente da sua, ou melhor, diferente da camisa de sua manada. Como os dos black blocs, fenômeno mais recente, que se misturam à manada pacífica para cometer suas atrocidades e depredações, porque ali são anônimos e estão protegidos pelo grupo, mesmo que o grupo pacífico não concorde com seus atos. Assim é o efeito manada, em qualquer circunstância: o ato de um torna-se coletivo e o coletivo é a força que leva o indivíduo a agir em nome de todos. E a manada tende a proteger o indivíduo, para proteger a si mesma.

Pois, é: assim é o ser humano. Viver em sociedade exige regras de civilidade. Regras claras, objetivas, que têm o contraponto da punição, quando necessário. Já a manada não tem claras as regras de ação e, mesmo quando as têm, são facilmente descumpridas, no calor da pugna ou da ação. Porque, enquanto, na sociedade, as pessoas se comportam porque têm inúmeros compromissos e relacionamentos profundos e duradouros, dentro da manada, esses compromissos e relacionamentos são frouxos e efêmeros, o comportamento de cada um está sujeito às explosões  momentâneas e às conquistas de território ou à confirmação de uma identidade surgidas ao sabor da necessidade imediata da manada ou de seus líderes.

E mais: os atos individuais cometidos dentro da manada ou em seu nome ou pela sua causa - não importa se justa ou injusta - dificilmente são punidos, porque se torna quase impossível individualizá-los perante a lei, e porque a manada, mesmo que, em princípio, não concorde com certos atos, tende a proteger os indivíduos que dela participam, porque desconfia tremendamente da noção de justiça que não venha de sua própria organização, ou seja, desconfia de que, se deixar que um de seus membros seja criminalizado, toda a manada o será. Haja vista a grita geral da manada em favor de alguns de seus membros que foram detidos ou presos pela polícia em manifestações recentes em que houve confronto e vandalismo. Não se conforma a manada com o fato de que esses indivíduos - mesmo que tenham seus crimes reconhecidos e provados, de forma individual - possam ser culpados de qualquer ato cometido com e pela manada.

O homem é um ser social. Isso é consenso. Mas, parece que a sociabilização tem limites. Há um ponto de equilíbrio. E o efeito manada confirma que a civilidade desaparece na mesma proporção que nos tornamos de novo o elemento anônimo dentro de uma massa informe. E mais: não é exatamente o tamanho da massa que determina o efeito manada, mas sim, a ausência de liderança firme e de objetivos reais. Um milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú, há alguns anos, sob a liderança de políticos, artistas e comunicadores, não trouxe nenhum dissabor nem mesmo à polícia da ditadura, de olho nos participantes que, de forma civilizada e firme, protestaram contra o regime militar. No entanto, numa estação de metrô, com quinhentas pessoas, ou numa passeata de duas mil, em que não há objetivos claros de ação cidadã nem lideranças capazes de aglutinar, o efeito manada faz que cidadãos civilizados ou, pelo menos, razoavelmente civilizados, se empurrem, se xinguem, se atropelem, destruam bem público, arremessem pedras em lojas e queimem carros e ônibus que encontrem pela frente.

Não temos antídoto contra o efeito manada, senão a punição rigorosa de elementos que exageram na dose, quando conseguem ser identificados. Mas essa não é a melhor forma para resolver o problema, porque a manada acaba adquirindo a percepção errônea de que a criminalização de atos individuais atinge a própria liberdade de expressão da manada, o que tornaria a punição aparentemente antidemocrática. Fica-se, então, num dilema: punir como exemplo, ou esquecer e deixar tudo continuar como está? Não há resposta, sem que haja uma revisão nos conceitos de cidadania, sem que as pessoas percebam que a convivência pacífica entre as pessoas é possível, desde que se cumpram regras simples e elementares de respeito e de dignificação de si mesmo e do outro, e de que a vida é um bem único e inalienável e, não podendo ser reposta, não deve ser jamais desprezada e colocada em risco.