Um pouco de saudosismo: quando o
metrô começou a fazer os primeiros testes, e depois iniciou sua operação, com a
linha (hoje chamada Azul) Jabaquara - Praça da Sé, o povo que utilizava seus
serviços foi orientado a estabelecer alguns protocolos de civilidade: manter os
vagões limpos (de pichações e de lixo), dar prioridade a quem sai,
estabelecendo um fluxo que deixava livre o lado esquerdo etc. etc. etc. Naquele
tempo, o número de passageiros era pequeno e foi, claro, aumentando pouco a
pouco e esteve num nível razoável até uns dez anos atrás. A partir daí,
estourou: hoje, a quantidade de gente que viaja pela Linha 1 - Azul é
assustadora. Com isso, o protocolo de civilidade que estabelecia preferência a
quem sai tem passado longe da manada que assalta cada porta que se abre, em
cada estação, sem se preocupar com quem está saindo, ocasionando, claro,
transtornos, empurrões e cotoveladas que só não se transformam em brigas porque
o tempo urge e todos têm pressa e as portas logo se fecham. Permanecer à
direita é um procedimento simples, que não exige sacrifício de ninguém, como no
trânsito de veículos. No entanto, no meio da manada, o indivíduo age como se
fosse bicho, e a atitude de um serve de exemplo para todos e todos se tornam
bichos e todos se empurram, se trombam, e ficam mal humorados e vão para seu
trabalho ou para sua casa com cara amarrada porque levaram cotovelada, levaram
empurrão, levaram trombada no metrô.
Podia dar mil outros exemplos,
como o das torcidas organizadas de futebol, compostas, em geral, por gente
normal, que trabalha, que é bom filho, bom vizinho, mas quando se junta na
manada vira bicho e sai espancando adversários como se fossem inimigos. Gente
que, em situação normal, não mataria uma
mosca, assassina impiedosamente o outro porque ele está usando uma camisa
diferente da sua, ou melhor, diferente da camisa de sua manada. Como os dos
black blocs, fenômeno mais recente, que se misturam à manada pacífica para
cometer suas atrocidades e depredações, porque ali são anônimos e estão
protegidos pelo grupo, mesmo que o grupo pacífico não concorde com seus atos.
Assim é o efeito manada, em qualquer circunstância: o ato de um torna-se
coletivo e o coletivo é a força que leva o indivíduo a agir em nome de todos. E
a manada tende a proteger o indivíduo, para proteger a si mesma.
Pois, é: assim é o ser humano.
Viver em sociedade exige regras de civilidade. Regras claras, objetivas, que
têm o contraponto da punição, quando necessário. Já a manada não tem claras as
regras de ação e, mesmo quando as têm, são facilmente descumpridas, no calor da
pugna ou da ação. Porque, enquanto, na sociedade, as pessoas se comportam
porque têm inúmeros compromissos e relacionamentos profundos e duradouros,
dentro da manada, esses compromissos e relacionamentos são frouxos e efêmeros,
o comportamento de cada um está sujeito às explosões momentâneas e às conquistas de território ou
à confirmação de uma identidade surgidas ao sabor da necessidade imediata da
manada ou de seus líderes.
E mais: os atos individuais
cometidos dentro da manada ou em seu nome ou pela sua causa - não importa se
justa ou injusta - dificilmente são punidos, porque se torna quase impossível
individualizá-los perante a lei, e porque a manada, mesmo que, em princípio,
não concorde com certos atos, tende a proteger os indivíduos que dela
participam, porque desconfia tremendamente da noção de justiça que não venha de
sua própria organização, ou seja, desconfia de que, se deixar que um de seus
membros seja criminalizado, toda a manada o será. Haja vista a grita geral da
manada em favor de alguns de seus membros que foram detidos ou presos pela
polícia em manifestações recentes em que houve confronto e vandalismo. Não se
conforma a manada com o fato de que esses indivíduos - mesmo que tenham seus
crimes reconhecidos e provados, de forma individual - possam ser culpados de
qualquer ato cometido com e pela manada.
O homem é um ser social. Isso é
consenso. Mas, parece que a sociabilização tem limites. Há um ponto de
equilíbrio. E o efeito manada confirma que a civilidade desaparece na mesma
proporção que nos tornamos de novo o elemento anônimo dentro de uma massa
informe. E mais: não é exatamente o tamanho da massa que determina o efeito
manada, mas sim, a ausência de liderança firme e de objetivos reais. Um milhão
de pessoas no Vale do Anhangabaú, há alguns anos, sob a liderança de políticos,
artistas e comunicadores, não trouxe nenhum dissabor nem mesmo à polícia da ditadura,
de olho nos participantes que, de forma civilizada e firme, protestaram contra
o regime militar. No entanto, numa estação de metrô, com quinhentas pessoas, ou
numa passeata de duas mil, em que não há objetivos claros de ação cidadã nem
lideranças capazes de aglutinar, o efeito manada faz que cidadãos civilizados
ou, pelo menos, razoavelmente civilizados, se empurrem, se xinguem, se
atropelem, destruam bem público, arremessem pedras em lojas e queimem carros e
ônibus que encontrem pela frente.
Não temos antídoto contra o
efeito manada, senão a punição rigorosa de elementos que exageram na dose,
quando conseguem ser identificados. Mas essa não é a melhor forma para resolver
o problema, porque a manada acaba adquirindo a percepção errônea de que a criminalização
de atos individuais atinge a própria liberdade de expressão da manada, o que
tornaria a punição aparentemente antidemocrática. Fica-se, então, num dilema:
punir como exemplo, ou esquecer e deixar tudo continuar como está? Não há
resposta, sem que haja uma revisão nos conceitos de cidadania, sem que as
pessoas percebam que a convivência pacífica entre as pessoas é possível, desde
que se cumpram regras simples e elementares de respeito e de dignificação de si
mesmo e do outro, e de que a vida é um bem único e inalienável e, não podendo
ser reposta, não deve ser jamais desprezada e colocada em risco.