abril 17, 2013

UMA SOCIEDADE QUE MATA, UMA SOCIEDADE QUE NÃO PUNE




(Daniel Carranza - viagem ao amanhecer)




O assunto é complexo. Não pode ser levado para o lado da política partidária. Tem que ser discutido como política pública. Tem que ser discutido em bases de ética e sociedade. Sem vieses religiosos ou político-partidários.


Somos uma sociedade que mata. Mata-se por qualquer motivo ou por nenhum motivo. Jovens matam. E morrem. Bandidos matam e morrem. Policiais matam muito e morrem muitos também. A barbárie parece não ter fim.


Por que damos tão pouco valor à vida humana?


Eu tenho as minhas explicações - que podem não ser as verdadeiras. E cada um pode encontrar mil outras, para defender mil pontos de vista diferentes. Faz parte da discussão, faz parte do processo democrático e civilizatório.


Mas há um ponto para o qual todos convergem: é preciso deter a matança. De alguma forma. E, nesse caso, não sejamos hipócritas: por mais que isso arrepie as mentes mais "evoluídas" e prestigie o mais rançoso conservadorismo, não podemos negar que os fins podem, sim, justificar os meios.
Nossas leis são pusilânimes e nosso sistema penal parece dizer que o crime compensa. Ou melhor, o crime de morte compensa, já que, às vezes, penalizamos com rigor pequenos delitos, numa desproporção entre o ato cometido e a pena imposta, e somos complacentes com o crime de morte, mesmo quando as penas são duras, através de mecanismos que levam à soltura do assassino depois de cumprir parte da pena e não a pena toda, como se o total apenado fosse injusto, o que leva a uma sensação de impunidade, esvaziando o sentido do próprio julgamento. Mas tudo isso é questão para ser resolvida por nossos legisladores, e implica muita discussão. O que importa é que precisamos tirar dessa discussão o imediatismo. Porque, quando acontece um crime hediondo, logo milhares de pessoas literalmente berram por punições mais enérgicas, o que parece não estarmos preocupados com o crime, mas com o criminoso. A função da lei é estabelecer com o máximo de justiça a quantidade de punição em função do tamanho do delito, conforme seja consenso da sociedade. A individualização do criminoso só ganha importância no ato do julgamento, para efeito de caracterização de elementos atenuantes ou agravantes da pena. Não se pode elaborar leis com o pensamento num determinado criminoso ou num determinado ato criminoso.


Há um outro aspecto perverso em nossa sociedade, o que aprofunda outra perversidade: o criminoso, para a sociedade conservadora e atemorizada por quaisquer crimes mais hediondos ou de maior repercussão, passa a ser visto como "monstro", contra o qual todas as misérias e sofrimentos humanos devem se abater. Então, não cuidamos de nossas prisões, pois achamos que elas devem ser uma espécie de "inferno", ou, no máximo, um "purgatório": lugar de sofrimento. Desumanizamos a imagem do detento, entregue aos "demônios" (carcereiros), que ganham o direito de dispor até da vida dessas pessoas, mantendo-as sob condições totalmente degradantes. As condições prisionais são a punição, e não a privação da liberdade. E isso é um absurdo que está no inconsciente coletivo de nosso povo (e de muitos outros povos), que veem o encarceramento como vingança e não como punição, esquecendo-se de que o objetivo do encarceramento é afastar por um tempo ou definitivamente do convívio da sociedade os indivíduos que não podem com ela conviver, por terem delinquido ou por serem um perigo para as demais pessoas. A pena é a reclusão, não as condições carcerárias. O fato de um indivíduo ser um criminoso - não importando seu crime - não nos dá o direito de torturá-lo, de tratá-lo de forma desumana, de querer que ele morra à míngua ou viva em condições degradantes dentro de uma prisão.


Assim como sou totalmente contrário à pena de morte, porque depois de executada não há como revertê-la, em caso de erro de julgamento, e porque não é função do Estado matar ou vingar-se, além de outros argumentos mais profundos e de conteúdo ético e humanitário, sou também totalmente contrário a que mantenhamos nossos detentos em condições degradantes, em prisões onde o indivíduo seja tratado como "coisa" descartável, ou lixo que não se recicla. Condição carcerária degradante é, na minha opinião, um crime tão hediondo quanto a tortura.


Isso está muito claro na posição da sociedade, em relação ao famoso "massacre do Carandiru", quando a polícia militar de São Paulo invadiu o presídio, rebelado por disputas entre gangues internas, e matou a sangue frio 111 presos, numa das mais horrendas ações de que se tem notícia na história policial do País. Principalmente quando se sabe que os detentos não estavam armados, pelo menos não com armas de fogo, e que a maioria foi morta no próprio ato de rendição. Enquanto a mídia nacional e internacional e os humanistas todos praticamente condenaram unanimemente a ação da PM de São Paulo, a população manteve um olhar de até certa simpatia ao fuzilamento dos presos, como se isso fosse um favor à sociedade, ao livrá-la desse "lixo".


Também é sintomática dessas ideias "higienistas" de uma grande parcela da população a notícia - falsa, muito falsa - que corre nas redes sociais de que os presos ganham dinheiro do governo, enquanto estão presos, numa espécie de "bolsa-detenção", o que leva muitas pessoas a expressar sentimentos de revolta não só contra isso, mas contra a população carcerária em geral.


É preciso que a sociedade entenda - e isso é um processo civilizatório - que os criminosos que ela gera, os marginais e os marginalizados, os pobres e os miseráveis são todos seres humanos como qualquer outra pessoa e são fruto das condições dessa mesma sociedade, o que a torna tão responsável por eles quanto é responsável por todos os cidadãos, não tendo o direito, portanto, de condená-los à degradação quando alguns desses indivíduos cometem delitos. Se a sociedade produz seres inadequados à convivência com outros indivíduos, é sua, sim, responsabilidade de cuidar deles da mesma forma como cuida de todos os demais, mesmo quando condenados por sejam lá quais crimes. O assassino não perde sua condição de ser humano, ao matar.


Então, temos aí dois problemas: uma visão distorcida do problema da delinquência, com leis inadequadas e complacentes, e uma visão revanchista, de vingança, de ódio, à população carcerária.


Cadeia tem duas funções: punir e recuperar. Nosso sistema carcerário só pune. E o faz da maneira mais desumana possível. Claro, há os indivíduos irrecuperáveis, mas esses são exceção e mesmo eles não podem ser tratados desumanamente, porque, como disse e reafirmo, eles continuam sendo cidadãos e, principalmente, seres humanos, e o Estado ou quem o representa não são vingadores, não têm e não podem ter o direito de torturar ou tratar a quem quer que seja de forma degradante, contra todos os princípios humanitários.


Talvez por isso, o Estatuto do Menor e do Adolescente tenha uma visão extremamente protecionista, até em relação ao menor infrator. A desconfiança absoluta no sistema penal produziu a proteção absoluta ao inimputável. Então, a discussão que se abre a cada crime hediondo cometido por menor ganha foro de revolta popular contra uma lei que é justa nas intenções, mas falha na sua aplicação. E a discussão que toma o público não se calca em argumentos racionais, diante de fatos que comovem, como um assassínio frio de um jovem por outro, este menor e, portanto, provavelmente não passível de punição mais rigorosa: quer-se, simplesmente, diminuir a maioridade penal, para tratar adolescentes como adultos e aplicar-lhes as mesmas penas que ao criminoso comum, como se isso fosse resolver o problema da delinquência de menores.


Não sou e não poderia ser a favor de tal insanidade, porque diminuímos hoje a maioridade para 16 anos e, daqui a alguns anos, para 14 e não sabemos nunca onde isso vai parar. Daqui a pouco, estaremos pedindo a prisão de recém-nascidos, por terem provocado, com seu nascimento, a morte da mãe.


Mas, por outro lado, não podemos deixar a sociedade sob risco, ao não punirmos adequadamente e  não recuperarmos de forma convincente os menores que cometem crimes considerados hediondos. Assim como colocamos de castigo nossos filhos pequenos, quando "saem da linha", ou seja, quando não se comportam, e procuramos ser o mais justos possível, sem que lancemos mão de métodos físicos, absolutamente contrários a qualquer metodologia educacional, também a sociedade precisa ter regulamentos mais severos - e justos - para punição de menores que não sejam apenas "infratores", mas que cometeram crimes mais graves.


Sem dúvida, liberdade com "ficha limpa" aos 21 anos, como se nada houvesse acontecido, parece-me um tanto absurdo e até mesmo não condizente com a realidade tanto social quanto psicológica desses menores. Não estamos fazendo nenhum bem nem à sociedade nem a eles mesmos, porque fica claro que a ideia de que a punição também deve servir de exemplo desmancha-se por completo, sinalizando aos demais menores - e aos adultos que os induzem ao crime ou que comandam suas ações - que a vida humana realmente não tem nenhum valor. Portanto, um sistema mais duro de punição precisa ser imposto, sem que se altere a atual maioridade penal. E também deve ser agravante, e bem agravante, a indução de menores ao crime por adultos.


Qual seria esse sistema? Muitas são as possibilidades e é direito da sociedade e seus representantes discutir a melhor forma. E a hora é agora. Adiar tal discussão é irresponsabilidade, diante do clamor popular por medidas mais drásticas e de alcance duvidoso ou que provoquem danos irreparáveis que podem ser tomadas no calor de fatos de grande comoção social.


Quaisquer que sejam as medidas que provoquem aumento de penas para menos que cometem crimes hediondos - e não para menores "infratores" - há que se resolver um problema sério: melhorar as condições de recolhimento desses menores. Separá-los por delitos não seria má ideia. Mas, principalmente, não jogá-los em minipenitenciárias onde cabem centenas de jovens e, geralmente, com superpopulação, em que as condições de vida são degradantes, sob as vistas de "monitores" que só têm como única forma de manutenção da ordem a imposição de disciplina férrea, muitas vezes com o uso de força física. Isso não educa ninguém. Isso não recupera ninguém. Há que se pensar em pequenas unidades, para um número razoável de jovens, sempre poucos e nunca muitos, com supervisão de educadores, psicólogos, médicos, ou seja, lugares que recuperem a identidade e autoestima desses jovens, e não sejam escolas de revolta e de crime. Isso eu já disse em artigo anterior e volto a reforçar, aqui. E ainda mais: dizer que não há dinheiro para isso é estupidez. Porque dinheiro há, sim, e, se não houver, arruma-se. Basta vontade política. Dos governantes e da sociedade. Porque é muito mais barato investir na recuperação e educação dos jovens "infratores" do que em complexas medidas de segurança.


E mais, ainda: eles não são tantos assim, que possam custar tanto dinheiro. Consultem-se as estatísticas. O número dos que matam não é exatamente aquele que nos faz crer a repercussão de seus crimes. São poucos. Muito poucos. E eles mais morrem do que matam. Matam-se eles mesmos, em lutas de gangue. Matam-nos os chefes de tráfico, por dívidas e outros delitos contra a lei do tráfico. Matam-nos carniceiros e justiceiros contratados por comunidades ou pequenos comerciantes cansados de furtos em suas lojas. Mata-os a polícia, por qualquer motivo e por nenhum motivo. Mas, matam-nos principalmente a miséria, a injustiça social, a falta de perspectiva de vida, o olhar de nojo e de medo de todos nós, trancados em nossos automóveis, em nossas casas gradeadas, em nossos apartamentos com segurança eletrônica e guardas armados.


Enfim, precisamos quebrar o paradigma de uma sociedade que mata e de uma sociedade que não pune. E só uma discussão séria, sem os arroubos de retórica e de demagogia, sem ranços de visão de mundo revanchista ou complacente, sem preconceito, é que poderá nos tirar desse impasse.



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