Incomoda-me o pensamento raso de
pessoas inteligentes e cultas, ao dizer, por exemplo, que "nunca se roubou
tanto neste país", ou, ainda, "votava no PT, mas quando Lula abraçou
o Maluf, eu me desiludi"... Há vários outras afirmativas de mesmo teor por
aí, mas vamos ficar nessas duas.
Corrupção. Não é invenção do PT.
Não é invenção do PSDB. Não é invenção de nenhum partido político atual ou do
passado. Ela existe, sim, desde que o mundo é mundo. Mas, para ficarmos apenas
no nosso País, a corrupção instala-se com grandes negociatas a partir do começo
da modernização, lá na década de quarenta, cinquenta, quando o Estado começa a
investir em grandes obras. Brasília não estaria pronta e inaugurada em três
anos, se houvesse Ministério Público naquela época, e se Juscelino não tivesse
fechado os olhos às falcatruas das empreiteiras. Era uma questão de
sobrevivência do Governo e, por extensão, do próprio Estado. As grandes
empreiteiras nasceram ali, na construção de Brasília e começou assim, de uma
forma singela: chegava o caminhão com material para descarregar e era
registrado na entrada; mas ele não descarregava: saía do canteiro de obras e
voltava a entrar pelo mesmo portão, e isso várias vezes. O candango encarregado
do controle devia receber o seu quinhão para fechar os olhos e fazer os
registros. E assim... o monstro cresceu, Brasília foi inaugurada, Juscelino deu
a volta nos militares que o queriam deposto. A bomba só veio a estourar nas
mãos de Jango. Mas isso é outra história.
O golpe militar colocou no poder a
"moralidade pública" de fachada. Os generais tinham contas a pagar,
pelo financiamento do movimento, contas que industriais e fazendeiros (os dois
pilares da economia, naquela época, e talvez ainda hoje) cobraram com juros e
muita correção monetária e incorreção ética. E os apoiadores do golpe
tornaram-se grupos poderosos, à custa de muita estrada mal acabada, de muita
obra superfaturada, que os militares engrandeceram com o mote
desenvolvimentista. Não eram os ditadores exatamente corruptos (eles mesmos não
enriqueceram devidamente), mas permitiram que os amplos e gordos úberes
governamentais fossem devidamente sugados com muito apetite por quantos os
apoiassem e entrassem no jogo cujas regras eles decidiam, sem Ministério
Público, sem imprensa, sem oposição, sem fiscalização.
Os governos democráticos
subsequentes herdaram a estrutura corrupta montada - e muito bem montada -
durante os governos militares. Era simplesmente impossível ir contra ela.
Podia-se ser mais leniente ou mais rigoroso com as licitações, mas seria
suicídio político ir contra a óbvia cartelização das grandes empreiteiras.
Fizeram-se leis, leis até rigorosas contra isso. Mas - todos sabem - malandro
que é malandro se adapta. Quanto mais rigor de um lado, mais criatividade do
outro, para driblar a lei e continuar mamando. Sempre foi assim. E não é porque foi sempre assim que devemos ser vacas
de presépio e nos conformarmos. Ao contrário: a luta contra a corrupção deve
ser um processo diário e contínuo de todos os cidadãos, a começar pela suas
próprias vidas privadas. E sem moralismos. Porque é uma questão de
sobrevivência e melhoria de condições da sociedade. Sabemos todos que cada
centavo que vai para a corrupção significa menos serviços públicos de
qualidade.
A punição à corrupção sempre
ficou restrita aos entes públicos, isto é, quando - e isso ocorria, sim, mas de
forma bem menos sistemática do que gostaríamos - se descobriam "mal
feitos", o funcionário público era demitido, processado e raramente ia
para a cadeia. Aí incluindo na categoria "funcionário público" os
políticos e governantes de todos os escalões do poder. Só agora, de muito pouco
tempo para cá, é que há uma intensa fiscalização por órgãos bem estruturados e
independentes, como o Ministério Público e a Polícia Federal. Mesmo que esses
órgãos cometam exageros, de vez em quando, e até mesmo errem, sua independência
e competência só são possíveis se houver um governo que banque essa ideia e
realmente permita que eles façam o seu trabalho. Por mais que queiramos, a
influência política nesses órgãos é, sim, intensa. Basta uma palavra, um
despacho do Palácio da Alvorada, para que muitas investigações acabem na gaveta
da CGU (Controladoria Geral da União), como muito bem sabemos, ou fiquem anos e
anos nos meandros da Justiça. Além do que, é o Palácio do Planalto que escolhe
e nomeia - direta ou indiretamente - os
responsáveis pela investigação e julgamento dos corruptos.
Portanto, pensar um pouco fora da
curva, neste momento, em relação à corrupção, é não entrar no jogo da mídia,
que nos quer fazer crer que "nunca se roubou tanto neste País",
quando, na verdade, a afirmação correta é: "nunca se puniram tantos
corruptos neste País"! Porque há independência e competência dos órgãos
investigativos, mesmo que algumas denúncias possam estar viciadas por jogos de
interesse, e certos "vazamentos" se tornem, muitas vezes, seletivos.
É o preço que se paga. E parece que há disposição da atual - e próxima -
governante de continuar a pagar esse preço, mesmo que tenha de cortar em sua
própria carne, o que vem acontecendo.
Jogo político. A redemocratização
trouxe a necessidade de uma nova Constituição. E a "Constituição
cidadã", nos dizeres de Ulysses Guimarães, sacramentou princípios éticos muito
salutares para a sociedade que estamos construindo. Mas seu bojo - extenso e
contemporizador - apresenta distorções que, pouco a pouco, comprometeram e
estão comprometendo o desenvolvimento político do País. Se nos deu segurança
jurídica e permitiu um novo modelo de sociedade menos injusta, o seu lado
político - construído por políticos - deixa muito a desejar. Se a ditadura
restringiu os partidos políticos a apenas dois, ARENA e MDB, faces ambos da
mesma moeda, por mais que o segundo tentasse ser oposição (era uma oposição
consentida, acuada, devidamente controlada por mecanismos de perseguição e
cassação de direitos), a atual Constituição tomou o caminho oposto e permitiu a
criação de uma quantidade tão grande de partidos políticos, que nenhum ser humano consegue imaginar tantas
ideologias a justificar cada um deles. São, portanto, partidos
"fisiológicos", legendas de aluguel, que vivem e sobrevivem de uns
poucos "puxadores de votos" que não têm nenhum tipo de escrúpulo,
quanto mais algum tipo de pensamento ou de ideologia política, muito menos
projeto político para a sociedade, apenas o projeto pessoal de chegar ao poder
ou dele se aproveitar, não importando qual partido esteja governando.
No meio desse imbróglio, três
grandes agremiações: PT e PSDB que, por injunções eleitorais e ideológicas, têm
polarizado as atenções e têm-se revezado no poder, sem, no entanto, alcançar a
maioria, e, entre eles, talvez o maior partido de todos, o PMDB que, também por
injunções mais eleitorais e menos ideológicas, é grande e forte, mas não tem
obtido sucesso na ascensão ao poder. Tornou-se, por isso, o fiel da balança. Em
geral, apoia o vencedor, que não pode prescindir de seus votos em qualquer casa
legisladora, desde o Senado até a menor câmara de vereadores de qualquer
município. Tem, no entanto, o PMDB um defeito de origem: como era uma
"frente ampla", um "movimento" contra a ditadura, abrigando
descontentes de todos os naipes ideológicos, desde a direita insatisfeita com
os militares até o mais radical comunista, continua abrigando em suas fileiras
uma razoável quantidade de facções que não tiveram força para formar outro
partido (como os petistas e peessedebistas, dos quais muitos vieram do PMDB) ou
não lhes interessa sair do partido, pela força da sigla ou por outros
interesses, muitas vezes regionais. Exemplifico com o PMDB do falecido Orestes
Quércia, em São Paulo, que sempre divergiu da direção nacional, mas nunca
partiu para a independência. Assim, há dentro do PMDB facções que são de
direita e apoiam a direita, e há facções que são de esquerda e apoiam a
esquerda, além dos "fisiologistas" de sempre.
Assim, nem PT nem PSDB, quando
chegam ao governo - qualquer governo - conseguem governar sem o apoio do PMDB.
Que tem sempre uma facção disposta a apoiar, e outra que se diz
"independente" ou, às vezes, até fazendo o papel de oposição ao
próprio governo que o partido apoia. Uma miscelânea, como podemos imaginar.
Logo, quem está no poder precisa contar com alguma parte do PMDB, sem dúvida,
mas quase sempre isso não é suficiente. E aí entram os "nanicos", as
siglas "de aluguel", com seus parcos, poucos e importantes
representantes legislativos. E negociar com eles é um jogo de paciência e de
acomodação de interesses conflitantes.
Pergunta-se: por que negociar com
eles? Porque existe a tal "governabilidade". Se o chefe do executivo
- desde o prefeito até a presidência da República - não tiver votos no
legislativo, para aprovar suas medidas, seu governo, suas contas, ele simplesmente
não consegue governar.
Então, quando Lula é abraçado por
Maluf, muito mais do que o abraça, ele não estava acolhendo o político e
corrupto Paulo Maluf, filhote e sobrevivente da ditadura, mas abraçando e
acolhendo o seu partido, porque, naquele momento, sem o partido do Maluf, Lula
não conseguiria maioria suficiente de votos para governar. Dizem que o poder
corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. A frase é forte, mas não a
interpretemos apenas como corrupção financeira e ética, mas também como a corrupção
decorrente da própria necessidade do poder, que é governar. E o ato de
governar, em quase todas as democracias constitucionais, não importa o tipo de
regime, recai nas mãos do mandatário principal, presidente, primeiro ministro
ou que outro nome tenha. Esse, sim, tem que ser ético o suficiente para saber
que, ao chegar ao "inferno", ao poder, tem que abraçar o capeta, em
nome de seus próprios princípios. Se esses princípios são legítimos, ou visam
ao bem público, esse "pecado" é o que os católicos chamam de
"venial", de pouca monta, sem importância. Se esses princípios não
"rezam" (para continuar com as metáforas "cristãs") pela
melhor ética, então, sim, o ato de "abraçar o capeta" pode se
traduzir na transformação da vida do cidadão em um verdadeiro
"inferno". No caso de Lula, pelo que vimos de seu governo - que teve
erros e acertos, mas muito mais acertos do que erros - o "inferno"
ficou longe, muito longe, da vida do cidadão comum. Porque foi o presidente que
iniciou uma verdadeira revolução neste País, ao conseguir iniciar o movimento
de inclusão de milhões de brasileiros no mercado de trabalho, tirando-os da
pobreza absoluta. Note que disse "iniciar", porque o caminho é longo,
como todos sabemos, depois de mais de quatrocentos e cinquenta anos de governos
preocupados apenas com a elite e com os mais ricos.
Então, pensar fora da curva, no
caso da política (que exemplificamos com o abraço entre Lula e Maluf - o ético
e o corrupto), não é imaginar que Lula passou a apoiar o Maluf ou a ser igual a
ele, como nos quis e nos quer fazer pensar a mídia de um olho só, mas dar a ele
o crédito de sua história pessoal, política e do estadista que ele foi. E achar
que, assim como há tantos políticos desonestos e safados, há outros tantos
honestos e bem intencionados. Desistir da política por causa dos primeiros é
fazer o jogo dos que querem continuar a apoiar aqueles mesmos de sempre,
aqueles que fizeram desse País um dos campeões de desigualdade e de pobreza no
mundo, apesar de sua riqueza territorial zelosamente explorada por poucos. Se
esses que corrompem, que roubam, que querem a manutenção do status quo de
pobreza de nosso povo continuam a ter votos - como o próprio Maluf e muitos
outros - é graças ao pensamento dentro da curva que nos impõem os meios de
comunicação que estão nas mãos
exatamente dos que pensam como os que sempre governaram esse País.
Sei que é difícil, muito difícil,
pensar fora da curva. Mas não temos outra saída. E se você pensou que pensar
fora da curva é apoiar o PT (como eu, até agora, apoio), você está saindo de
uma curva para outra. Pensar fora da curva é ter a liberdade de apoiar qualquer
partido ( e é essa a liberdade que eu exerço), mas não ficar no discursinho
padrão da direita, e dizer coisas como as que colocamos nos dois exemplos
acima. Apoie você o PT, o PSDB, o PMDB ou qualquer outro partido, mas não entre
no jogo sujo e manipulador de pensar só o que eles querem que você pense: saia
do quadrado, entre também no redondo, no triângulo, no tetraedro...