dezembro 15, 2022

NÓS SABEMOS O QUE “ELES” FIZERAM NESSES QUATRO ANOS. MAS “ELES” TAMBÉM SABEM

 


(Edvard Munch - o grito)


Foram quatro anos de pesadelo. Está chegando ao fim. O pesadelo, não suas consequências. O fim de um ciclo de trevas não significa necessariamente o início de outro, luminoso e promissor.

O governo, ou melhor, o desgoverno que se encerra dia 31 de dezembro deixa não exatamente uma “herança maldita”, mas um descalabro total, em termos não só ideológicos, mas de administração pública. Nunca se viu, desde a instalação da república, em 1889, um tal desprezo pela prática administrativa. Todos, absolutamente todos os setores da administração pública estão um caos.

Enxertaram na máquina pública milhares de militares – que não servem para nada – e milhares de evangélicos, que servem menos ainda: são incompetentes e limitados a uma visão de mundo apequenada e voltada para interesses mesquinhos. Resultado: destruíram mecanismos tradicionais de administração, de controle, de compliance. A máquina pública está simplesmente emperrada.

À parte isso, ideologizaram programas de governo, admitindo práticas absurdas ou fechando os olhos para o assalto ao bem público de verdadeiras quadrilhas que fizeram e desfizeram como bem entenderam dentro de seus setores, sem qualquer controle, sem se envergonharem do que faziam, por que o faziam de caso pensado e com o beneplácito e até mesmo o incentivo daquele que se dizia presidente.

Isso aconteceu, por exemplo – e é só um único exemplo –, nos órgãos ambientais. Primeiro, nomeou-se um ministro comprometido com qualquer negócio escuso para ganhar dinheiro, menos com o meio ambiente. Depois, afrouxaram todos os mecanismos de fiscalização. Ibama e ICMbio foram usados e abusados não para cuidar de questões ambientais, mas para abrir as portas para madeireiros, garimpeiros, agronegócio irresponsável etc. E a “boiada passou”, deixando um passivo de destruição que levaremos anos e anos para identificar e mitigar. O mesmo ocorreu na educação, na saúde, nas relações exteriores, na área social, na economia, enfim, não há um só ministro do qual se possa dizer que tenha feito um trabalho pelo menos razoável.

Serão necessários muitos meses e, em alguns casos, alguns anos para que a administração federal retome boas práticas e volte a funcionar a pleno vapor. Por isso, eu sugeri no início deste texto, que os tempos de trevas ainda podem permanecer, mesmo após a posse do novo governo.

O pior: nós sabemos o que esse desgoverno fez, mas ele também sabe. E sabe muito bem. Porque não foi apenas por incompetência – uma tremenda incompetência, sem dúvida – : foi de caso pensado, era uma espécie de programa de governo a destruição sistemática do Estado, com fins inconfessáveis para nós, que assistimos a tudo sem nada poder fazer, mas certamente “eles” sabiam o que pretendiam. E o que pretendiam, podemos ter certeza, não era e não é nada democrático ou voltado para qualquer interesse do povo brasileiro.

dezembro 11, 2022

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE FUTEBOL

 

(Autoria não identificada)


Eu vejo futebol há séculos. Aprendi que é o esporte coletivo mais belo e refinado que há, porque depende de uma série de fatores enormes, em campo e fora dele, inclusive o imponderável. Uma bola chutada no gol que faz uma curva improvável e engana o goleiro. Os cobradores de pênalti que temem o goleiro adversário, porque viram que já fizera grandes defesas e erram o pênalti. Um drible desconcertante, que desmonta toda uma defesa. Um time que joga 90 minutos da defesa e faz um gol no último minuto, em contra-ataque. Jogador que entra em campo para fazer a diferença e é expulso na primeira jogada, por entrada violenta no adversário. Gols de beleza plástica e gols bisonhos, de canela, de bunda, até de mão. Erros absurdos de juízes, que decidem uma partida. Juiz apitando o fim do jogo, quando a bola estava viajando da cobrança de escanteio para a área. Defesas mirabolantes de goleiros atrevidos. Frangos acachapantes de grandes goleiros e defesas impressionantes de goleiros medíocres. Vitórias por goleadas e vitórias sofridas. Enfim, o improvável pode acontecer até no último segundo. Equipes bem mais fracas vencendo equipes poderosas. Goleadas improváveis, assim como derrotas absurdas. Todo o drama humano se passa durante os 90 minutos ou mais de uma partida de futebol. Por isso, é tão apaixonante. Mas, o apito final encerra tudo. Quem perdeu que chore e se lamente, quem ganhou que comemore. E nós, torcedores, só temos a agradecer aos atletas, quando ganharam e entender nosso time, quando perde, já que nada mais há a fazer. E aguardar o próximo jogo, o próximo campeonato. Só. Mais nada. Que os analistas escrevam e falem o quanto quiserem, que é para isso que ganham: para fazerem belas análises, que aplaudimos, ou para falarem um monte de merda, que lamentamos. Se nosso esquadrão poderoso (na nossa opinião) foi derrotado ou foi vitorioso, que o choro ou a alegria não ultrapassem o tempo de algumas poucas horas de luto ou euforia e sigamos a vida. Consolemo-nos com o fato de termos sido testemunhas de um belo espetáculo, que se renova a cada partida, seja de uma seleção de um país ou de um time de várzea. Futebol é isto: a vida entre quatro linhas, com seus dramas e alegrias. Assim como um belo concerto de música ou um filme emocionante ou uma peça de Shakespeare. Arte, enfim. Não sofrimento.

outubro 03, 2022

O CONGRESSO-PESADELO QUE SAIU DAS URNAS

 




O Congresso Nacional – Câmara e Senado – adquiriu, nessas eleições, um perfil extremamente conservador, com a bancada do ódio, os eleitos na esteira do bolsonarismo e fiéis ao atual presidente. Há, é claro, o chamado centrão, mas esse é o fisiológico de sempre: alinha-se aos vencedores, em busca de vantagens. Já a bancada do ódio é ideológica. Se o atual presidente conseguir se reeleger, teremos um governo com domínio total do Congresso, podendo fazer passar todos os projetos que quiser. Conhecendo esse governo, sabemos o quão totalitário ele se tornará, pois conseguirá, através de leis e mudanças na Constituição, por exemplo:


1. modificar a composição do Supremo Tribunal Federal, conseguindo colocar mais ministros conservadores alinhados com o governo;

2. passar uma emenda que permita a reeleição sem limites;

3. proibir o aborto em todas as situações;

4. permitir a mineração na Amazônia, principalmente em terras indígenas;

5. aliviar as multas por desmatamento, para beneficiar o agronegócio, em nome da criação de empregos no campo e de aumentar a produção e a exportação de alimentos;

6. retirar direitos dos trabalhadores, como fundo de garantia e décimo terceiro salário, em nome da criação de empregos (sempre essa desculpa) e de aliviar a folha salarial das empresas;

7. retirar direitos das minorias, como proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo; como eliminar as cotas raciais e sociais; como modificar as leis que permitam demarcar terras indígenas e de quilombolas, etc. etc.

8. impor às escolas fundamentais, principalmente, cartilhas de doutrinação ideológica, como o amor exacerbado a símbolos nacionais (obrigar os alunos a cantar uma vez por semana o hino nacional durante o ato de hasteamento da bandeira) e o temor ao comunismo, assim como fez Getúlio Vargas na década de 30 do século passado;

9. impor às administrações escolares a presença de militares, com a desculpa de melhorar a segurança;

10. anular todas as leis de incentivo à cultura e impor modelos autoritários nessa área;

11. flexibilizar a compra e uso de armamentos para toda a população e não apenas para os caçadores, atiradores e colecionadores;

12. privatizar empresas estatais, inclusive a Petrobrás;

13. flexibilizar as leis e regulamentos ambientais para a construção de rodovias, ferrovias, represas etc., concedendo a prefeitos e governadores o direito de legislar sobre o meio ambiente;

14. fixar em lei o aumento do salário-mínimo somente pelo índice de inflação;

15. privatizar o Sistema Único de Saúde (SUS) ou, pelo menos, aumentar a participação de entidades do setor privado na administração e prestação de serviços da saúde pública;

16. reformar a Previdência Social, retirando ou diminuindo direitos de aposentadoria, com a desculpa de sanear as contas públicas;

17. eliminar o sistema de teto de gastos, para permitir ao governo dispor do orçamento sem quaisquer amarras;

18. manter o orçamento secreto dos parlamentares, com o intuito de melhor controle do legislativo;

Essas são apenas algumas das possibilidades que o amplo “saco de maldades” do governo atual perseguirá, se for reeleito. E isso sem falar no projeto político de continuísmo, através da reeleição do atual mandatário ou da eleição de um de seus filhos, no futuro. Ou seja, o Brasil estará sob o manto negro do mais negro totalitarismo já registrado na história, sem situação muito pior do que o Estado Novo de Getúlio Vargas e, em termos de retrocesso político, social e econômico, pior ainda do que no tempo da ditadura militar, já que tudo isso será feito sob a égide da permissão popular, através do voto que escolheu o Congresso mais ideologicamente de ultradireita de todos os tempos. Apenas não sei se essa escolha por partidos e representantes desse neonazifascismo à brasileira se deveu a uma ignorância crônica ou pontual de nosso povo, ou esse povo brasileiro é mesmo assim, um povo que se sujeita à canga e à perda de direitos e da liberdade em troca, talvez, de uma maior e ilusória segurança.

junho 13, 2022

CRIMES INSOLÚVEIS?

 

(James Ensor - The Assassination)


Não há crime perfeito, há crimes mal investigados.

A má investigação de um crime pode ocorrer por diversos motivos, sendo os principais:

1. incompetência dos investigadores na preservação e na análise minuciosa e precisa do local do crime, no interrogatório das testemunhas, no trato das provas etc. etc. etc.

2. falta de metodologia na investigação, como a existência de protocolos rígidos e devidamente comprovados, para levantamento de provas e outras providências;

3. falta de recursos e de tecnologia apropriada, como exames laboratoriais sofisticados, equipamentos de vídeo e de detecção de sinais imperceptíveis de presença etc. etc. etc.

4. falta de interesse dos investigadores, como forma de proteção de suspeitos, ou por motivos corporativistas ou por ordem de autoridades, o que implica, às vezes, até mesmo a ocultação e destruição de provas.

Se tomarmos como exemplo, a série de crimes cometidos por Jack, o estripador, em Londres, em 1888, podemos observar que vários dos motivos acima podem ser arrolados, como incompetência dos investigadores, principalmente por não haver ainda uma metodologia comprovada de boa investigação criminal: o local de cada crime nem sempre foi preservado e analisado, a convocação e interrogatório de testemunhas foram falhos; os corpos das vítimas não tiveram uma necropsia bem feita (dizem que o “corpo fala”); faltavam recursos tecnológicos, bastante precários na época; enfim, toda a investigação foi cercada de muito amadorismo pela polícia londrina, não acostumada com a ideia de um assassino em série.

Hoje, no entanto, são poucos, pouquíssimos, os casos de crime de morte que não sejam desvendados, mesmo passados alguns anos: temos metodologia de investigação e muita tecnologia à disposição dos investigadores, desde substâncias que detectam sangue oculto em veículos, em vestes, em locais suspeitos, até sofisticados exames de laboratório, incluindo o exame de DNA, que tem condenado muitos assassinos e libertado muitos inocentes. Basta que haja interesse e, às vezes, investimento financeiro e humano para que o criminoso seja descoberto. Há alguma complicação quando o crime é encomendado, isto é, descobrem-se os executores, mas é preciso identificar o mandante. Mesmo que os executores tenham sido mortos, em troca de tiros com a polícia ou por queima de arquivo, ou presos, se recusam a confessar a autoria intelectual do crime, os investigadores têm recursos para seguir a trilha pregressa dos executores e chegar ao mandante. Quando isso não acontece, é porque caímos na quarta causa da má investigação criminal: a descoberta do mandante contraria interesses poderosos.

É o que acontece, na minha opinião, com um crime hediondo e de grande repercussão nacional e internacional, ocorrido há mais de quatro anos, no Rio de Janeiro: o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes.

Os executores do crime estão presos, mas há uma pergunta sem resposta até hoje: Quem mandou matar Marielle?

Eu acredito que um núcleo “duro” de investigadores sabe exatamente quem foram os mandantes. No entanto, não o podem revelar, porque, possivelmente essa revelação abalaria alguns pilares da república (o que já é um bom motivo para o silêncio) ou esses investigadores poderiam sofrer represálias terríveis, com ameaça de morte, não apenas dos implicados, mas principalmente de seus familiares (e esse é um argumento terrível, para qualquer ser humano: colocar em risco elementos de sua família, pais, irmãos, irmãs etc., por motivo profissional).

Por isso, meus caros (e parcos) leitores, é possível que nós, da nossa geração, jamais tenhamos a solução completa desse crime.

Talvez daqui a cem anos?

Agora, mais um crime terrível está no ar: o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, nas matas da Amazônia, cujos corpos acabam de ser encontrados. Que tenha havido um crime não se duvida. Que se prendam os executores, também é muito provável e quase certo.


Mas... será que, mais uma vez, morrerá na nossa garganta o mesmo grito de sempre: QUEM MANDOU MATAR?


março 16, 2022

EXPLICANDO O QUASE INEXPLICÁVEL: BOLSONARO

 



Não sendo historiador ou pesquisador de qualquer natureza, mas um mero curioso e, mais do isso, um “poeta pensador” ou um “pensador poeta”, posso levantar hipóteses e citar de memórias possíveis fontes, sem que as comprometa ou me comprometa com a verdade ou com qualquer outro princípio que não seja o meu raciocínio, o meu pensamento.

Dito isso, vou tentar desvendar o “mistério” Bolsonaro.

Por que um indivíduo estúpido, sem cultura, preconceituoso, homofóbico, racista, misógino e, possivelmente, envolvido em crimes, conseguiu atrair milhões de eleitores e ser eleito presidente da república.

Claro que há uma explicação mais imediatista: uma intensa veiculação de notícias falsas pelas mídias sociais e a atração de um eleitorado anestesiado, no qual, durante meses, foi inoculado um ódio absurdo ao Partido dos Trabalhadores, principalmente causado pelas condenações ainda mais absurdas, de seu líder, Luís Ignácio Lula da Silva, aplicadas pelos juízes golpistas da chamada “operação lava jato”, montada especificamente para destruir o PT, financiada pelos Estados Unidos e pela direita hidrófoba brasileira.

Mas, há uma explicação mais profunda e mais complexa, que remonta a alguns conceitos da chamada corrente da “nova história”, desenvolvida desde 1929 pelos historiadores franceses da revista dos Annales, a chamada “escola dos Annales”, principalmente os conceitos da “história das mentalidades”.

Sempre acreditei que o longo período histórico que denominamos “idade média” foi a época em que o cristianismo católico tomou de assalto, de forma avassaladora, as mentes humanas, tornando-se a religião não só predominante no Ocidente, mas a única, espalhando seus tentáculos em todos os aspectos da vida humana, desde os atos mais comezinhos até a interferência nos governos de reis, príncipes e ministros de toda a Europa. Assimilou crenças pagãs antigas, imiscuiu-se nas mentes, comandou exércitos, sagrou reis, fortaleceu o papado e sua hierarquia interna; estabeleceu leis, criou ritos, impôs seus mandamentos e aterrorizou as mentes com seus credos e implantou definitivamente o monoteísmo, o cristianismo e todas as suas crenças e crendices e aprisionou definitivamente os seres humanos numa teia de regras e mandamentos, sob a ameaça de um juízo final e da danação no fogo eterno do inferno das almas que não lhe obedecessem. Sem dúvida, diria um filósofo da atualidade, tornou-se o mais poderoso meme da história da humanidade, não tendo concorrência nem mesmo nas religiões orientais.

O império da Igreja Católica Apostólica Romana, a ICAR, com seus papas e sua hierarquia militar, com suas hordas de anjos, santos e profetas, somente teve seu império abalado pelo cisma de Lutero, Calvino e seus seguidores, no século XVI. Essa reforma, entretanto, não abalou os alicerces do cristianismo. Ao contrário, serviu para fortalecê-lo ainda mais, agora sob novas diretrizes, abrindo caminho para o que hoje chamamos fundamentalismo. As igrejas protestantes divergiram de Roma no tocante a poucos aspectos da doutrina, principalmente os aspectos mercantilistas, continuando, entretanto, a perseverar nos elementos fundamentais do cristianismo. Um cristianismo até mais profundamente deísta, de ligação direta de seus seguidores com um deus ainda furibundo e vingativo, mas agora mais próximo dos crentes e mais disposto a ouvi-los. Os milagres não precisavam mais de intermediários, os santos, mas podiam ser pedidos diretamente a esse deus.

É preciso notar que essa “pureza doutrinária” marcou durante quatro séculos as igrejas dissidentes de Roma e abriu caminho para a aceitação de princípios renegados pela ICAR, como a usura, o capitalismo, a crença na luta por uma vida melhor aqui na terra, mas uma vida de ascetismo espiritual, algo meio paradoxal, já que os seus seguidores são obrigados a sacrifícios e à quase pobreza, no limite da dignidade provida por deus, em prol de uma pequena mas aguerrida “elite” formada por pastores, aqueles que têm a responsabilidade de levar “a palavra do senhor”. Somente no final do século XX, esses “pastores” perderam totalmente a vergonha e passaram a usar de seu poder de convencimento para amealhar fortunas à custa da escravização mental de seus seguidores. Voltaremos a esse assunto mais adiante.

Quando dissemos que o cristianismo se tornou o mais poderoso meme do planeta, ressaltamos sua origem na idade média, para afirmar, com convicção, que esse período da história, com suas crenças e crendices, não terminou: todo o desenvolvimento social, tecnológico e político que ocorreu a partir do século XVI até nossos dias não apagou da mente dos humanos nem o deísmo arraigado nem as crenças, ritos e rituais dele decorrente. Somos medievais modernos. Somos medievais tecnológicos. Mas somos ainda seres humanos da idade média.

A maioria avassaladora da humanidade acredita em deus, esse ser criador absurdamente onipotente e onipresente. Muitos dos que hoje duvidam dessa crença, dizem-se “agnósticos”, que é o mesmo que dizer: não acredito nem deixo de acreditar. Nós, os ateus convictos, aqueles que afirmamos sem pestanejar que deus não existe, somos poucos, muito poucos. E mesmo nós, os ateus convictos, se nos distraímos, somos surpreendidos por nós mesmos, diante de algum acontecimento extraordinário, dizendo ou pensando algo como “graças a deus, ninguém morreu”, ou algo semelhante. É a força do meme. E esse é um mínimo exemplo da força do deísmo medieval e de suas crenças e ritos em nossa vida: poderíamos encher páginas e páginas de aspectos de nossa vida, de nossa visão de mundo, de nossa maneira de encarar a realidade, de nosso dia a dia com exemplos de atos, atitudes, pensamentos e ideologias tipicamente medievais, ou nascidas, desenvolvidas e praticadas na idade média.

Quando, no século XVI, o jovem rei de Portugal, Dom Sebastião I, numa excursão militar à África, desapareceu na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, surgiu, na terra lusitana mergulhada na crise que a levou ao domínio espanhol, a crença de que o rei não morrera e que ele voltaria à pátria numa manhã de nevoeiro, para salvar Portugal e torná-lo de novo a nação poderosa das grandes navegações. Surgia o mito do “sebastianismo”, a crença num ser que seria a salvação de um povo, de uma nação; um ser que não subiu aos céus, como Cristo, mas nascido e desenvolvido entre os humanos, portanto mais palpável do que o profeta. E esse “sebastianismo”, essa crença salvacionista, que tem no rei de Portugal o seu epígono, espalhou-se como erva daninha entre os cristãos, nascendo e renascendo em vários lugares, até mesmo no Nordeste brasileiro, entre os seguidores do Padre Cícero ou entre cangaceiros e místicos que proliferaram naquela região castigada pela seca, até a primeira metade do século XX, na crença de que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, ou seja, os sertanejos esperam o milagre de um ser salvador que os tire da seca, da miséria, da fome.

O historiador francês Marc Bloch chama de “reis taumaturgos” os imperadores do século XVI e XVII que tinham “o poder de curar as escrófulas de quem eles tocassem”, uma crendice que se espalhou por toda a Europa. Dizia Bloch que “mais do que um milagre, as pessoas precisavam acreditar que um milagre tinha de acontecer”, ou seja, a crendice ultrapassava a própria crença no milagre, o que fazia que os doentes insistissem em ser tocados, mesmo sabendo que não seriam curados. Um processo mental e psicológico de total entrega a uma esperança que perpassa, desde os primórdios do cristianismo, a mente dos seguidores da doutrina codificada por Paulo de Tarso, como outro poderoso meme salvacionista. E isso chegou a nossos dias: o santuário de Fátima, em Portugal, a fé em nossa senhora Aparecida, no Brasil, o aparecimento pontual e seguido de taumaturgos e profetas milagreiros em vários lugares do mundo e, claro, também do Brasil atestam a permanência desse meme, dessa necessidade dos humanos de acreditar num milagre, num salvador, numa água milagrosa, numa palavra de um “santo”, num “passe espiritual”, enfim, em alguém ou algo que os livre de uma doença, que os tire da vida miserável ou que os abençoe para uma pretensa caminhada rumo ao céu. O “salvacionismo sebastianista” está em plena vigência até hoje, mais fortalecido ainda pelas igrejas pentecostais cujos pastores erguem templos modestos ou faraônicos com o dízimo de seus seguidores, na pregação mais descarada de que deus proverá todas as suas necessidades na medida de sua contribuição para com os cofres da igreja, para o bolso do pastor.

Esses pastores desenvolveram técnicas de comunicação de massa para iludir, com seus discursos e falsos milagres, o populacho sedento de uma palavra salvadora, de um milagre. Com isso, amealham fortunas, compram canais de televisão e conseguem atingir milhões e milhões de seguidores, apresentando, na maior desfaçatez, sua riqueza e seu poder como exemplo do poder da crença na “palavra”. Deus vira mercadoria de troca: se você lhe der parte de seu salário ou seu salário todo, ele vai recompensá-lo com fortunas incalculáveis. E o povo acredita muito mais na necessidade de que um milagre precisa acontecer, do que, às vezes, no próprio milagre. Fundamentalistas em termos doutrinários (pelo menos, para uso diante dos fiéis) e poderosos economicamente, tornaram-se sedentos do poder político. Mas, não podem eles mesmos, os líderes máximos, se lançarem à sanha de uma campanha política, que exponha, no calor das discussões e debates, suas fraquezas e suas fortunas reais. Pelo mecanismo de não pagarem impostos, as igrejas que eles comandam possibilita que escondam em paraísos fiscais ou em nome de “laranjas” os ganhos reais das coletas em nome de deus. Então, precisam “terceirizar” a conquista do poder político, através de bancadas de deputados e senadores e até mesmo juízes do Supremo “terrivelmente evangélicos”, isto é, fiéis a suas demandas.

Então, chegamos ao ponto crucial de nosso raciocínio: misture o meme cristão do salvacionismo sebastianista com a crença em taumaturgos milagreiros; acrescente a fúria pregacionista e reacionária dos pastores evangélicos a brandir suas bíblias e suas diatribes contra o perigo do diabo e do comunismo, sedentos não só dinheiro mas também de poder político que lhes traga segurança e ainda mais dinheiro; junte a isso o surgimento de um político medíocre, inescrupuloso, mas “profundamente evangélico” (pelo menos, na aparência) e teremos, no cadinho político de desânimo e de perseguição das forças progressistas alojadas no PT, pela chamada operação lava jato, que abriu fogo cerrado contra uma pretensa escandalosa onda, um tsunami, de corrupção, teremos no meio disso tudo o “taumaturgo”, o “incorruptível”, o “dom sebastião” devidamente forjado em mentiras e tornado “mito” – Jair Messias Bolsonaro.

Claro que o anticomunismo exacerbado do “estado novo” getulista, ainda hoje arraigado no povo brasileiro, desde a década de 30 e 40, teve seu quinhão na pregação dos pastores e no espectro de cores nazi-fascistas assumidas pelo político, coisa de que, possivelmente, nem o próprio candidato tem noção muito clara, já que sua capacidade mental é limitada. Também contribuíram, como já ressaltei, a “onda de fake news” desencadeada nas redes sociais pelos seguidores de Bolsonaro. Com um ingrediente de altíssima voltagem midiática: a facada que ele levou em plena campanha, o que o impossibilitou de participar de debates com os demais candidatos, blindando, assim, a falta de argumentação e a estupidez de suas ideias absurdas, do eleitor que não queria o PT de volta, o que gerou um fenômeno no segundo turno das eleições: um candidato que se elege com uma quantidade inferior ao de votos brancos, nulos e dados a seu oponente. A tal da facada pode ter sido falsa, como eu e muitas pessoas acreditamos, mas o seu poder midiático e de blindagem do candidato foi bem real.

Bolsonaro, do alto de sua estupidez, está destruindo todas as conquistas sociais, políticas, econômicas que as forças progressistas haviam logrado obter. E não se pode dizer que ele escamoteou dos eleitores suas intenções, já que seus seguidores – aqueles 20 a 25% do eleitorado que ainda o apoiam – estavam conscientes do que desejavam: acabar com tudo que tivesse um leve perfume de “esquerdismo”, de comunismo, mesmo que fossem territórios indígenas, direitos das mulheres, gays, transexuais etc., mesmo que se relacionassem à defesa do meio ambiente, à política externa, à economia e mais uma série imensa de etcéteras. E pior: mesmo que tivesse “cara” de fascismo, “jeito” de fascismo, “cheiro” de fascismo, eles apoiariam jurando que não é fascismo. No entanto, abriram as portas para todos os extremismos de direita, que jaziam em suas tocas, e agora, vitaminados pela tecnologia das redes sociais, ousam colocar suas garras de fora, aproveitando-se da ingenuidade ou, mais provavelmente, da necessidade de não descartar apoios da “comunidade anticomunista” dos bolsonaristas, num balaio de gatos pardos, dos quais, no entanto, cada grupo sabe muito bem a cor real de cada um, mas finge não saber.

Os “pastores” que levaram seus “rebanhos” – melhor, talvez, se disséssemos “seu gado” – para formar as hordas bolsonaristas souberam muito bem explorar o vácuo deixado há mais de 50 anos pela ICAR. A igreja e seus papas, depois de Pio XII, principalmente a partir de João XXIII, modernizou seu discurso tradicional, abrandou seus ritos conservadores, deixou que muitos de seus bispos e padres desenvolvessem um discurso socializante e de defesa dos mais desprotegidos, e tem abandonado pouco a pouco algumas de suas práticas medievais. Isso assustou e afastou seguidores mais tradicionalistas, os mais “medievais”, em cuja mentalidade não cabiam essas “modernidades”. Órfãos, acabaram nos braços fundamentalistas, ou falsamente fundamentalistas, da pregação “evangélica” que, se não tinha o conservadorismo dos ritos, tinha o “ouro dos tolos” da ligação direta do cristão com seu deus, embora passando essa mediação direta pela bolsa escancarada e faminta dos pastores. A esse discurso salvacionista e fundamentalista, acrescente o conservadorismo, o medo do “inferno comunista”, a promessa tácita e indiscutível de que deus está, não exatamente no céu, mas ao lado de cada um deles, conduzindo suas vidas e prometendo melhores condições sociais, desde que acolham a “palavra”, nada mais do que a “palavra”, com as mãos erguidas para doar a deus o seu rico dinheirinho em troca de emprego, de casa, de carro, de mais dinheiro, temos uma multidão que chamamos de “gado”, porque segue de olhos fechados o chefe da manada e faz o que eles, os pastores, querem, inclusive votar no Bolsonaro e apoiar seu governo. Ou seja, o governo de Bolsonaro, o “taumaturgo” estúpido e destruidor, significa o povo de deus no poder. E mesmo que eles não acreditem nos milagres do taumaturgo, precisam, no entanto, devidamente guiados por seus pastores, acreditar que um milagre precisa acontecer.

Creio ter retratado de alguma forma – e o mais realisticamente possível – essa figura quase enigmática e quase inexplicável que é o atual presidente da república do Brasil. Não é o único no mundo atual. Passamos por um momento de crise de lideranças e em muitos países outros seres fora da curva têm obtido sucesso eleitoral e estão conduzindo seus países e seus povos para destinos que só podemos considerar como trágicos. As forças progressistas têm procurado reagir, o que nos dá alguma esperança.

No entanto, creio não ser necessário, para concluir, alertar o quanto de perigo há no bolsonarismo e na continuidade de seu desgoverno. E no quanto as forças progressistas terão que investir em termos de persuasão e de luta para que esse indivíduo seja vencido nas próximas eleições, para que a destruição do país chegue a um ponto de total irreversibilidade.

“There is still time, brothers”!!!

março 09, 2022

OS ABSURDOS DE UMA GUERRA ABSURDA

 

(Al Margen)



Acusam o presidente da Ucrânia de fascista. Não creio que ele seja exatamente um fascista, mas faz o jogo dos fascistas, manipulado, como um títere (sem ironia) por forças muito poderosas, ligadas a interesses estadunidenses.

Essa é uma guerra suja, em que só há bandidos:

1. Putin, que não quer mais mísseis apontados para a Rússia, pela OTAN (essa milícia que vende proteção à Europa, por obra e graça dos EE.UU.);

2. Biden e os presidentes europeus, que nada fizeram para impedir a guerra (uma "diplomacia" de mentirinha, só para "inglês ver")

3. e, finalmente, o idiota que preside a Ucrãnia (sabe que não tem chance de vencer um exército dez vezes mais poderoso do que o dele e ainda assim pede aos ucranianos que resistam com coquetéis molotov - isso, sim, um crime a mais nessa guerra criminosa).

Em vez de mandar o povo para o inútil sacrifício, que buscasse armistício com a Rússia, concordasse com seus termos, evitasse a destruição do seu país e a consequente matança e fuga de seus cidadãos. A história nos tempos atuais é líquida: como saber o que vai acontecer daqui a dois, três anos? A situação mundial pode mudar. A situação interna na Rússia pode mudar. Salvar a Ucrânia, salvar vidas, mesmo à custa de uma aparente humilhação, deveria ser o fim e o escopo de um governo que se diga realmente preocupado com seu povo e não preocupado em posar de super-herói para agradar uma plateia - a Europa e os Estados Unidos - que só esperam uma brecha para assaltar seu país e tornar seu povo "escravo feliz" do mercado predador.

Nessa guerra de equívocos, Zelenski erra e mente. Também mentem os líderes europeus e o presidente dos Estados Unidos. E Putin, do alto de sua arrogância e insensibilidade, mente tanto quanto todos os outros.

A desinformação, principalmente a desinformação histórica; a arrogância de todos em achar que cada um tem razão, quando ninguém a tem; a falta de visão humanitária, que joga no fogo do sacrifício toda uma nação, todo um povo; uma diplomacia cega, surda e que apenas grita desaforos e ameaças contra os “inimigos”, quando sabemos que, para a verdadeira diplomacia, não existem inimigos, mas adversários, com quem se busca o entendimento e não a discórdia; a falta de apetite de todas demais nações do mundo em tentar mediar para valer um conflito que evitasse derramamento de sangue; tudo isso me faz pensar que não há mais líderes confiáveis no mundo, que não há mais na cabeça de nossos políticos algo que é simples e necessário: bom senso.

E o bom senso falta principalmente quando os países da Europa se curvam à chantagem dos Estados Unidos, ao manter esse obsoleto, absurdo, desnecessário e totalmente escandaloso tratado chamado de OTAN / NATO, que não passa de um bando de milicianos com tropas acantonadas em pontos estratégicos, vendendo à Europa uma pseudoproteção contra um inimigo que não existe mais: a União Soviética comunista que, não se sabe bem por quê, foi marcada como destinada a ser o inimigo eterno do “capitalismo”, numa guerra ideológica que só não levou o mundo à terceira guerra porque as forças atômicas de ataque e defesa se mantiveram num equilíbrio de destruição mútua.

Pergunto-me: por que o capitalismo teme as ideias socialistas e comunistas, a ponto de se armar até os dentes para uma guerra que não terá vencedores? E eu respondo: não é exatamente o “capitalismo”, essa entidade abstrata e predadora, que teme o “comunismo”: são os interesses de imensas companhias e oligopólios que não desejam perder o domínio do “mercado” ou dos “mercados”, ou seja, da exploração de bilhões de seres humanos que lhes proporcionam lucros tão estratosféricos, que lhes permitem dominar mentes e corações não só de consumidores emburrecidos pelo consumismo, mas também a mente e os corações de governantes regiamente pagos para defender seus interesses, ou inocentemente a serviço de políticas expansionistas imperialistas dos Estados Unidos da América, esse, sim, o país inimigo de todos os demais, na sua sanha de manter sob controle todos os governos da terra. E, quando não obtêm esse controle de forma pacífica ou convencional, lança mão de todos os artifícios para obter seus intentos, desde as revoluções internas de desestabilização dos governos (as chamadas “revoluções coloridas” incentivadas pelas mídias devidamente azeitadas com milhões de dólares e financiadas por organizações não governamentais a soldo de seus intentos), até a invasão e destruição do país, como já o fizeram diversas vezes (desde 1890 até os dias de hoje, sendo o Iraque a mais recente “obra” de destruição total).

A Ucrânia era a “bola da vez” da sanha estadunidense, com um presidente fraco e devidamente azeitado pela máquina propagandística do capitalismo selvagem, pronto para deitar suas garras em mais um povo e torná-lo “escravo feliz” do consumismo. O passo decisivo seria fazer desse país mais um membro do “privilegiadíssimo” clube da OTAN/NATO, o guarda-chuva protetor de todos os interesses do mercado consumidor na Europa, para onde seriam enviados mais alguns mísseis e tropas de “proteção” contra a “inimiga” Rússia, que deveria se calar ao “determinismo” e à “vontade” do povo ucraniano, devidamente manipulado pela propaganda sutilmente (e, às vezes, escancaradamente) veiculada pela mídia mais uma vez azeitada pelos dólares de um oligarca (ironicamente) russo, a soldo dos interesses estadunidenses. Zelensky, o agora proclamado “super-herói”, é só um “detalhe” emblemático dessa máquina de fazer malucos, para tornar todos os malucos da terra simples robôs consumistas das grandes empresas que detêm quase todo o poder econômico do mundo capitalista.

E por que a Rússia concordaria com mais esse passo engendrado pela criatividade do mundo capitalista? Porque, simplesmente, pensaram os estrategistas, a Rússia também é capitalista e seus interesses econômicos estão devidamente entranhados com os interesses capitalistas do mundo ocidental. No entanto, falharam ao bater de frente com Putin, que não “engoliu” a possibilidade real de que mais um país desentranhado da antiga União Soviética passasse de mão beijada para o “outro lado”, ou seja, se associasse à OTAN/NATO, com a possibilidade de ter bem “sob suas barbas” mais uma bateria de mísseis apontados para seu país, tratado ao mesmo tempo, paradoxalmente, como amigo e inimigo.

Em nenhum momento, os países Europeus cogitaram colocar na mesa de negociações com a Rússia, para evitar a guerra, a dissolução desse tratado absurdo, obsoleto, desnecessário e totalmente escandaloso chamado de OTAN / NATO, que devia ter sido extinto logo que a União Soviética se desmanchou e a Rússia se tornou tão capitalista quanto todos os demais países capitalistas. A Europa continua, portanto, de joelhos, sendo chantageada pelos Estados Unidos, com seus milicianos armados de mísseis e sua propaganda massiva de que existe um “inimigo” a ser combatido, a Rússia.

Conclusão: Putin invade a Ucrânia e desencadeia uma guerra tão absurda, desnecessária e escandalosa quanto a própria OTAN/NATO, que não pode fazer nada, porque esse país ainda não está ligado ao compromisso de “todos por um e um por todos” (na verdade, é todos pelos Estados Unidos). Uma guerra em que, se a primeira vítima é a verdade, como dizem os historiadores, a maior vítima é o povo ucraniano, levado ao matadouro por falsas promessas de uma resistência impossível, com meros coquetéis molotov, diante dos tanques de um dos mais poderosos exércitos da terra.

Pobre povo ucraniano, pobre povo de todos os demais países iludidos pela sanha muito mais destruidora e expansionista dos Estados Unidos, do que dizem que sonha o frio, calculista e insensível Putin, atrás de seus exércitos invasores!


março 01, 2022

NÃO CHOREMOS PELA UCRÂNIA, CHOREMOS PELOS UCRANIANOS





Se você está imbuído do fervor patriótico do povo ucraniano e pelas palavras de incentivo de quase todo o mundo a esse fervor patriótico, por favor, não leia este artigo. Você não vai encontrar, aqui, nenhum louvor a qualquer tipo de patriotismo, a primeira trincheira dos estúpidos e dos adoradores do genocídio.

Então, vamos lá.

Primeiro, quando Putin ameaçou a Ucrânia, nenhum país, nenhum governo, absolutamente ninguém ouviu suas razões. A reação foi sempre de contra ameaça. Se fizer isso, faremos aquilo. Se continuar assim, vai se arrepender. E por aí a fora. Talvez Putin tivesse razão. Talvez Putin não tivesse. Isso não importa. Importava ouvir, conversar, dialogar, buscar soluções, extrapolar a ideia de que se evita uma guerra fazendo guerra, que é a segunda trincheira dos estúpidos, principalmente dos adoradores do genocídio.

Ao contrário de qualquer lógica, os governos e a mídia jogavam, a cada palavra, a cada pronunciamento, mais lenha na fogueira, mais gasolina no incêndio. Talvez um único governo, o da França, tenha tentado ouvir, mas foi a voz solitária. Acho até que todos os demais governos, instigados pelos Estados Unidos, sob o manto da famigerada e belicosa OTAN / NATO, escarneceram de suas tentativas. Se Putin também escarneceu do presidente francês, foi porque percebeu que era realmente a voz que pregava no deserto, para usar a batida metáfora bíblica. Estavam todos imbuídos de seus pressupostos, agarrados à arrogância da ameaça, do falar e gritar mais alto, de que somos os mais fortes, e essa é a terceira trincheira dos estúpidos e dos adoradores do genocídio.

Iniciada a invasão, o que fazem a mídia, os governos europeus e estadunidense e o próprio governo da Ucrânia? Apoiam a resistência entusiasticamente. A mídia, com a repercussão e a cobertura espetaculosa da guerra, como vampiros sedentos de sangue. Os governos europeus e estadunidense com sanções e ameaças contra a Rússia. E mais: com o envio de armas de defesa para a Ucrânia. E mais, ainda: com o incentivo absolutamente insensato do governo ucraniano de que cidadãos comuns, sem preparo militar, resistissem com armas caseiras (e mesmo se fosse com armas sofisticadas, quem saberia usá-las corretamente?) e com coquetéis molotovs a um dos mais poderosos exércitos do mundo. E todos, absolutamente todos, de pessoas comuns a governantes poderosos, de estudantes a pensadores e historiadores famosos, todos a incensar, a encorajar, a enaltecer a resistência do povo ucraniano e a levá-lo ao paroxismo do amor à terra, à pátria. E aqui voltamos à primeira trincheira dos estúpidos adoradores do genocídio que é, como você deve se lembrar, meu caro leitor, o patriotismo.

Porque é de genocídio que estamos falando. Genocídio de um povo, o ucraniano, por um exército poderoso, cujas razões ou não razões para fazer o que está fazendo extrapolam todo e qualquer possibilidade de lógica, porque desencadeada a violência, não há como detê-la, não há como saber como vai terminar, ou melhor, sabemos sim: em hecatombe, em mais uma das inumeráveis carnificinas que os seres humanos cometem contra seres humanos ao longo dessa nossa triste história de guerras, de arrogância estúpida em acreditar que o militarismo possa ser solução de algum problema humano. E essa crença no militarismo, no poder das armas, na entrega de nossas vidas a seres treinados para matar, é talvez a última trincheira da estupidez humana.

Encerrarei minhas diatribes com a seguinte provocação (e que cada um a receba do jeito que quiser):

Se eu fosse o presidente da Ucrânia, não moveria um dedo sequer contra o exército russo, não deixaria que nem cidadãos nem os soldados disparassem um só tiro. Aguardaria os tanques em meu gabinete. E assim que meu país estivesse ocupado, procuraria o Putin e lhe diria: “Senhor Putin, agora que senhor já conseguiu o que queria, vamos conversar. O que o senhor quer para não matar nossos cidadãos e nos deixar em paz?”

Covarde! Poderiam gritar todos os estúpidos adoradores do genocídio. Mas, pelo menos eu teria poupado a vida de meu povo. Porque nenhuma vida vale mais do que qualquer bem material, vale mais do que um pedaço de chão, vale mais do que um país!

fevereiro 22, 2022

CATÁSTROFE ANUNCIADA

 

(Petrópolis - antes e depois)


Os meios de comunicação chamam de “tragédia”. Maculam o significado nobre da palavra, termo grego que nos remete às origens do teatro, de cujo âmbito não devia ser retirado para as catástrofes provocadas por forças da natureza e não pela ação do homem contra o homem, nos palcos imemoriais da arte teatral.

Por isso, prefiro a palavra catástrofe ou outras similares, como calamidade, desastre, hecatombe etc. Mas não é o polêmico uso do léxico que eu quero tratar neste texto. Que cada um chame como quiser.

Falemos de Petrópolis, a cidade imperial; a cidade que é tão imperial, que até hoje paga aos descendentes do seu ramo da “família real”, este sim, um polêmico imposto de transação imobiliária, chamado “laudêmio”. E devem estar coçando os dedos os descendentes de Dom Pedro, ao imaginarem que, depois da tempestade que destruiu a cidade, haverá uma quantidade muito grande de petropolitanos decididos a vender seus imóveis, o que deverá aumentar muito os ganhos da “família imperial”.

Feita essa devida provocação, vamos à catástrofe anunciada.

Sabe-se, desde o século XIX, que a bela cidade construída nos altos Serra dos Órgãos está sujeita a chuvas intensas e que seu território acidentado tem centenas de áreas de risco de deslizamento e desabamento. Portanto, o crescimento inevitável do município teria de ser monitorado e controlado de forma rigorosa pelo poder público, em conformidade com as condições do terreno. No entanto, nesses cento e tantos anos, nada se fez para que a urbanização seguisse critérios minimamente lógicos e seguros. Como, aliás, na maioria das cidades brasileiras. Nossos governantes odeiam o futuro; por isso, odeiam planejamento.

Podemos imaginar a seguinte provável história (que deve ter-se repetido em milhares de outros municípios): alguém resolve demarcar uma área, desmatá-la, loteá-la e vendê-la para os desesperados e incautos necessitados de moradia. Naturalmente, um processo “simples” de grilagem, devidamente apoiado ou incentivado por alguma “autoridade” – um prefeito, um vereador, um “coronel’, um juiz de direito, um oficial graduado ou político poderoso. Como o desmatador e loteador vai ganhar seu dinheirinho para enganar os trouxas ao afirmar e jurar e “provar” que o local é seguro e devidamente “regularizado”, também as “autoridades’ competentes ganharão – e bem! – para fechar os olhos e “deixar rolar” as irregularidades, em conluio claro com os devidos órgãos de fiscalização.

Meus amigos e caros leitores, ninguém constrói seu barraco, sua casinha, seu “quarto e cozinha” em área de risco porque “encontrou” aquele lugar para isso: os pobres diabos são levados a comprar o terreno (“baratinho, baratinho”) pelos espertalhões de plantão. Os “doutores” sabichões lucram na venda não só do terreno devidamente demarcado e “limpo”, mas também com o material de construção, com mão de obra, tudo muito “baratinho”, em “suaves” prestações mensais, e tudo, tudo “regularizado” com promessas de escrituras ou com escrituras falsas. E isso é uma bola de neve: de meia dúzia de barracos, logo haverá vinte e trinta e centenas. Uma verdadeira cidade se ergue em poucos anos, com toda a “infraestrutura” possível. E ali há centenas de eleitores, para os quais é preciso acenar, com promessas verdadeiras ou falsas de melhorias, que vão chegando, sim, aos poucos, e a “comunidade” está constituída, é forte, elege e reelege os políticos. E quando há alguma calamidade, lá estão eles, os políticos, prontos a “ajudar, a “prestar solidariedade”, a dizer que a natureza é assim mesmo, que logo vão fazer obras de contenção e obras disso e daquilo. E às vezes fazem, mesmo, obras que dão prestígio, e dão poder e os enriquecem, com os superfaturamentos de sempre. E quase sempre obras poucas e muitas vezes inúteis.

Os anos passam, os eventos climáticos, que antes eram eventuais, se tornam não apenas constantes, mas principalmente mais violentos (os meteorologistas não se cansam de avisar para o tal “aquecimento global”, que a maioria das autoridades prefere ignorar ou desdenhar), até que, um dia, a coisa desanda: uma grande tempestade tropical ou subtropical (seja lá o nome que se lhe dê) provoca uma catástrofe com centenas de mortos. Exatamente como se havia previsto há anos, em documentos arquivados no fundo das secretarias de obras, ignorados e desdenhados por inúmeros gestores.

Então, todos choram e lamentam. Autoridades dão entrevistas. A mídia estende por horas e horas a cobertura do evento, conta os mortos, individualiza os sofrimentos, narra histórias, filma e mostra para o mundo todo a catástrofe, a destruição, as consequências; mobiliza a sociedade para a ajuda aos desabrigados; discute causas e obtém promessas de ajuda das autoridades de plantão. Mas... nem a mídia nem as “autoridades responsáveis” nunca vão atrás dos verdadeiros culpados: os famigerados “grileiros” e toda a corja de canalhas escondidos sob o manto da - muita! - grana que ganharam com a desgraça daqueles milhares de seres humanos, que choram a perda de seus bens, de seus familiares, de sua vida.

E mais: passado o choque do momento, a vida volta ao “normal”, as pessoas tentam reconstruir dos monturos e do fundo da lama e do sofrimento as suas vidas, a mídia esquece, todo mundo esquece. Não os que foram diretamente atingidos até mesmo em sua dignidade pela catástrofe anunciada. Mas, esses, ora, que se virem, que vão chorar na cama, que é lugar quente. Ninguém mais se preocupa com eles, mesmo que continuem brigando por anos a fio com o poder público, mesmo que continuem correndo atrás de seus direitos, de sua dignidade, de sua vida. Que aguardem, depois da reconstrução – se e quando houver –, uma nova catástrofe devidamente anunciada! E novamente chamada de “tragédia”. A tragédia humana que não está nos eventos meteorológicos e naturais, mas na cara de pau de nossos governantes.


janeiro 03, 2022

ENTENDA OS VÍRUS

 


Nestes tempos de pandemia, quando a humanidade sofre mais um ataque mortífero de vírus, dentre muitos em sua história, a desinformação parece ser o apanágio dos ignorantes, dos fundamentalistas religiosos, dos estúpidos por vocação, que negam a ciência e falam e reproduzem absurdos através das redes sociais. Sei que há muita gente despreparada não porque optaram por isso, mas porque não tiveram oportunidade de estudar, numa sociedade extremamente injusta como a nossa. No entanto, vejo e ouço e leio pessoas que têm curso superior, uma boa base de conhecimento, a divulgar informações erradas, ou por ignorância (ninguém pode saber tudo) ou por professar ideologias obscurantistas ou ainda por pura estupidez misturada com preconceitos arraigados, que não nenhum diploma universitário consegue mitigar.

Portanto, não só para os estúpidos negacionistas, mas também para todos os que não têm formação científica, mas que, bem intencionados, pretendem se informar melhor sobre ciência, publico hoje este texto (autoria e fonte ao final):



“Os vírus são um enigma que existe no limiar da vida. Eles não são apenas bactérias pequenas. Bactérias são seres unicelulares, completamente vivas. Cada uma tem um metabolismo, exige alimento, produz dejetos e se reproduz por divisão.

Os vírus não se alimentam nem queimam oxigênio para obter energia. Não participam de nenhum processo que poderia ser considerado metabólico. Não produzem dejetos. Não criam produtos colaterais por acidente ou de propósito. Não fazem sexo nem se reproduzem de forma independente. São menos do que um organismo vivo funcional, mas são mais do que apenas uma coleção inerte de substâncias químicas.

Existem diversas teorias a respeito da origem dos vírus e essas teorias não são mutuamente excludentes. Existem evidências para apoiar cada uma, e é possível que vírus diferentes tenham se desenvolvido de formas diferentes.

Uma visão minoritária sugere que eles se originaram de forma independente como as mais primitivas moléculas capazes de se reproduzir. Se isso fosse verdade, formas mais avançadas de vida poderiam ter evoluído a partir deles.

A maior parte dos virologistas pensa o contrário. Eles creem que os vírus começaram como células vivas mais complexas e evoluíram — ou talvez seja mais preciso dizer involuíram — para organismos mais simples, tais como a família “rickettsia” de patógenos. A rickettsia costumava ser considerada como vírus, mas atualmente já é observada como algo no meio do caminho entre as bactérias e os vírus. Os pesquisadores acreditam que esses organismos chegaram a ter, mas perderam as atividades necessárias para uma vida independente. O bacilo da lepra também parece ter se afastado da complexidade — a capacidade de fazer muitas coisas — rumo à simplicidade, hoje fazendo menos do que antes. Uma terceira teoria defende que os vírus eram antes parte de uma célula, uma organela, mas que se afastaram e começaram a evoluir de forma independente.

Seja qual for a origem, todo vírus tem apenas uma função: se replicar. Mas diferentemente de outras formas de vida (se considerarmos o vírus uma forma de vida), ele não faz isso sozinho. Ele invade células carregadas de energia e então, como um mestre de marionetes alienígena, as subverte, assume o controle e as obriga a produzir milhares, e em alguns casos centenas de milhares, de novos vírus. Esse poder reside em sua genética.

Na maior parte das formas de vida, os genes estão espalhados pelo comprimento de uma molécula de DNA (ácido desoxirribonucleico) em formato de um filamento. Mas muitos vírus — inclusive o influenza, o HIV e o coronavirus que provoca SARS (síndrome respiratória aguda severa) — codificam seus genes no RNA (ácido ribonucleico), uma molécula mais simples, mas menos estável.

Os genes lembram a estrutura de um software. Do mesmo modo que uma sequência de bits em um código diz ao computador o que fazer — processar um editor de texto, um jogo de computador ou fazer uma busca na internet — os genes dizem para as células o que fazer.

O código de computador é uma linguagem binária, de duas letras. Já o genético emprega uma linguagem com quatro letras, cada uma representando as substâncias químicas adenina, guanina, citosina e timidina (às vezes a uracila entra no lugar da timidina).

O DNA e o RNA são sequências dessas substâncias, bem longas. Às vezes, essas letras não formam palavras nem frases que façam algum sentido: 97% do DNA humano não contêm genes. É chamado de DNA “sem sentido” ou “lixo”, cujas funções ainda são desconhecidas.

Quando as letras compõem palavras e frases que fazem sentido, no entanto, por definição essa sequência é um gene.

Quando um gene em uma célula é ativado, ele ordena que a célula produza determinadas proteínas que, por sua vez, podem ser utilizadas como tijolos na construção de tecidos. (As proteínas que consumimos via alimentos de um modo geral têm essa função.) Mas as proteínas também desempenham um papel crucial na maior parte das reações químicas dentro do corpo, além de transportar mensagens para iniciar ou interromper diferentes processos. A adrenalina, por exemplo, é um hormônio, mas também é uma proteína. Ela acelera o ritmo cardíaco para criar o que chamamos de reação de luta ou fuga.

Quando um vírus consegue invadir uma célula, ele insere seus próprios genes na sequência humana e a carga genética viral passa a assumir o controle dos genes celulares. O mecanismo interno da célula começa a produzir aquilo que os genes virais exigem em vez daquilo que ela precisaria para si mesma.

Desse modo, a célula passa a produzir centenas de milhares de proteínas virais que, unindo-se a cópias do genoma viral, formam novos vírus. Uma vez prontos, eles são liberados. Nesse processo, quase sempre a célula hospedeira morre, em geral quando novas partículas virais irrompem a superfície celular para invadir outras células.

Embora os vírus executem apenas uma tarefa, eles não são simples. Nem primitivos. Altamente evoluídos, elegantes em seu foco, mais eficientes no que fazem do que qualquer ser inteiramente vivo, eles se tornaram organismos infecciosos quase perfeitos. E o vírus influenza está entre os mais perfeitos desses organismos perfeitos.”



JOHN M. BARRY, in A GRANDE GRIPE,
 
A HISTÓRIA DA GRIPE ESPANHOLA, 

A PANDEMIA MAIS MORTAL DE TODOS OS TEMPOS.