março 16, 2022

EXPLICANDO O QUASE INEXPLICÁVEL: BOLSONARO

 



Não sendo historiador ou pesquisador de qualquer natureza, mas um mero curioso e, mais do isso, um “poeta pensador” ou um “pensador poeta”, posso levantar hipóteses e citar de memórias possíveis fontes, sem que as comprometa ou me comprometa com a verdade ou com qualquer outro princípio que não seja o meu raciocínio, o meu pensamento.

Dito isso, vou tentar desvendar o “mistério” Bolsonaro.

Por que um indivíduo estúpido, sem cultura, preconceituoso, homofóbico, racista, misógino e, possivelmente, envolvido em crimes, conseguiu atrair milhões de eleitores e ser eleito presidente da república.

Claro que há uma explicação mais imediatista: uma intensa veiculação de notícias falsas pelas mídias sociais e a atração de um eleitorado anestesiado, no qual, durante meses, foi inoculado um ódio absurdo ao Partido dos Trabalhadores, principalmente causado pelas condenações ainda mais absurdas, de seu líder, Luís Ignácio Lula da Silva, aplicadas pelos juízes golpistas da chamada “operação lava jato”, montada especificamente para destruir o PT, financiada pelos Estados Unidos e pela direita hidrófoba brasileira.

Mas, há uma explicação mais profunda e mais complexa, que remonta a alguns conceitos da chamada corrente da “nova história”, desenvolvida desde 1929 pelos historiadores franceses da revista dos Annales, a chamada “escola dos Annales”, principalmente os conceitos da “história das mentalidades”.

Sempre acreditei que o longo período histórico que denominamos “idade média” foi a época em que o cristianismo católico tomou de assalto, de forma avassaladora, as mentes humanas, tornando-se a religião não só predominante no Ocidente, mas a única, espalhando seus tentáculos em todos os aspectos da vida humana, desde os atos mais comezinhos até a interferência nos governos de reis, príncipes e ministros de toda a Europa. Assimilou crenças pagãs antigas, imiscuiu-se nas mentes, comandou exércitos, sagrou reis, fortaleceu o papado e sua hierarquia interna; estabeleceu leis, criou ritos, impôs seus mandamentos e aterrorizou as mentes com seus credos e implantou definitivamente o monoteísmo, o cristianismo e todas as suas crenças e crendices e aprisionou definitivamente os seres humanos numa teia de regras e mandamentos, sob a ameaça de um juízo final e da danação no fogo eterno do inferno das almas que não lhe obedecessem. Sem dúvida, diria um filósofo da atualidade, tornou-se o mais poderoso meme da história da humanidade, não tendo concorrência nem mesmo nas religiões orientais.

O império da Igreja Católica Apostólica Romana, a ICAR, com seus papas e sua hierarquia militar, com suas hordas de anjos, santos e profetas, somente teve seu império abalado pelo cisma de Lutero, Calvino e seus seguidores, no século XVI. Essa reforma, entretanto, não abalou os alicerces do cristianismo. Ao contrário, serviu para fortalecê-lo ainda mais, agora sob novas diretrizes, abrindo caminho para o que hoje chamamos fundamentalismo. As igrejas protestantes divergiram de Roma no tocante a poucos aspectos da doutrina, principalmente os aspectos mercantilistas, continuando, entretanto, a perseverar nos elementos fundamentais do cristianismo. Um cristianismo até mais profundamente deísta, de ligação direta de seus seguidores com um deus ainda furibundo e vingativo, mas agora mais próximo dos crentes e mais disposto a ouvi-los. Os milagres não precisavam mais de intermediários, os santos, mas podiam ser pedidos diretamente a esse deus.

É preciso notar que essa “pureza doutrinária” marcou durante quatro séculos as igrejas dissidentes de Roma e abriu caminho para a aceitação de princípios renegados pela ICAR, como a usura, o capitalismo, a crença na luta por uma vida melhor aqui na terra, mas uma vida de ascetismo espiritual, algo meio paradoxal, já que os seus seguidores são obrigados a sacrifícios e à quase pobreza, no limite da dignidade provida por deus, em prol de uma pequena mas aguerrida “elite” formada por pastores, aqueles que têm a responsabilidade de levar “a palavra do senhor”. Somente no final do século XX, esses “pastores” perderam totalmente a vergonha e passaram a usar de seu poder de convencimento para amealhar fortunas à custa da escravização mental de seus seguidores. Voltaremos a esse assunto mais adiante.

Quando dissemos que o cristianismo se tornou o mais poderoso meme do planeta, ressaltamos sua origem na idade média, para afirmar, com convicção, que esse período da história, com suas crenças e crendices, não terminou: todo o desenvolvimento social, tecnológico e político que ocorreu a partir do século XVI até nossos dias não apagou da mente dos humanos nem o deísmo arraigado nem as crenças, ritos e rituais dele decorrente. Somos medievais modernos. Somos medievais tecnológicos. Mas somos ainda seres humanos da idade média.

A maioria avassaladora da humanidade acredita em deus, esse ser criador absurdamente onipotente e onipresente. Muitos dos que hoje duvidam dessa crença, dizem-se “agnósticos”, que é o mesmo que dizer: não acredito nem deixo de acreditar. Nós, os ateus convictos, aqueles que afirmamos sem pestanejar que deus não existe, somos poucos, muito poucos. E mesmo nós, os ateus convictos, se nos distraímos, somos surpreendidos por nós mesmos, diante de algum acontecimento extraordinário, dizendo ou pensando algo como “graças a deus, ninguém morreu”, ou algo semelhante. É a força do meme. E esse é um mínimo exemplo da força do deísmo medieval e de suas crenças e ritos em nossa vida: poderíamos encher páginas e páginas de aspectos de nossa vida, de nossa visão de mundo, de nossa maneira de encarar a realidade, de nosso dia a dia com exemplos de atos, atitudes, pensamentos e ideologias tipicamente medievais, ou nascidas, desenvolvidas e praticadas na idade média.

Quando, no século XVI, o jovem rei de Portugal, Dom Sebastião I, numa excursão militar à África, desapareceu na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, surgiu, na terra lusitana mergulhada na crise que a levou ao domínio espanhol, a crença de que o rei não morrera e que ele voltaria à pátria numa manhã de nevoeiro, para salvar Portugal e torná-lo de novo a nação poderosa das grandes navegações. Surgia o mito do “sebastianismo”, a crença num ser que seria a salvação de um povo, de uma nação; um ser que não subiu aos céus, como Cristo, mas nascido e desenvolvido entre os humanos, portanto mais palpável do que o profeta. E esse “sebastianismo”, essa crença salvacionista, que tem no rei de Portugal o seu epígono, espalhou-se como erva daninha entre os cristãos, nascendo e renascendo em vários lugares, até mesmo no Nordeste brasileiro, entre os seguidores do Padre Cícero ou entre cangaceiros e místicos que proliferaram naquela região castigada pela seca, até a primeira metade do século XX, na crença de que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, ou seja, os sertanejos esperam o milagre de um ser salvador que os tire da seca, da miséria, da fome.

O historiador francês Marc Bloch chama de “reis taumaturgos” os imperadores do século XVI e XVII que tinham “o poder de curar as escrófulas de quem eles tocassem”, uma crendice que se espalhou por toda a Europa. Dizia Bloch que “mais do que um milagre, as pessoas precisavam acreditar que um milagre tinha de acontecer”, ou seja, a crendice ultrapassava a própria crença no milagre, o que fazia que os doentes insistissem em ser tocados, mesmo sabendo que não seriam curados. Um processo mental e psicológico de total entrega a uma esperança que perpassa, desde os primórdios do cristianismo, a mente dos seguidores da doutrina codificada por Paulo de Tarso, como outro poderoso meme salvacionista. E isso chegou a nossos dias: o santuário de Fátima, em Portugal, a fé em nossa senhora Aparecida, no Brasil, o aparecimento pontual e seguido de taumaturgos e profetas milagreiros em vários lugares do mundo e, claro, também do Brasil atestam a permanência desse meme, dessa necessidade dos humanos de acreditar num milagre, num salvador, numa água milagrosa, numa palavra de um “santo”, num “passe espiritual”, enfim, em alguém ou algo que os livre de uma doença, que os tire da vida miserável ou que os abençoe para uma pretensa caminhada rumo ao céu. O “salvacionismo sebastianista” está em plena vigência até hoje, mais fortalecido ainda pelas igrejas pentecostais cujos pastores erguem templos modestos ou faraônicos com o dízimo de seus seguidores, na pregação mais descarada de que deus proverá todas as suas necessidades na medida de sua contribuição para com os cofres da igreja, para o bolso do pastor.

Esses pastores desenvolveram técnicas de comunicação de massa para iludir, com seus discursos e falsos milagres, o populacho sedento de uma palavra salvadora, de um milagre. Com isso, amealham fortunas, compram canais de televisão e conseguem atingir milhões e milhões de seguidores, apresentando, na maior desfaçatez, sua riqueza e seu poder como exemplo do poder da crença na “palavra”. Deus vira mercadoria de troca: se você lhe der parte de seu salário ou seu salário todo, ele vai recompensá-lo com fortunas incalculáveis. E o povo acredita muito mais na necessidade de que um milagre precisa acontecer, do que, às vezes, no próprio milagre. Fundamentalistas em termos doutrinários (pelo menos, para uso diante dos fiéis) e poderosos economicamente, tornaram-se sedentos do poder político. Mas, não podem eles mesmos, os líderes máximos, se lançarem à sanha de uma campanha política, que exponha, no calor das discussões e debates, suas fraquezas e suas fortunas reais. Pelo mecanismo de não pagarem impostos, as igrejas que eles comandam possibilita que escondam em paraísos fiscais ou em nome de “laranjas” os ganhos reais das coletas em nome de deus. Então, precisam “terceirizar” a conquista do poder político, através de bancadas de deputados e senadores e até mesmo juízes do Supremo “terrivelmente evangélicos”, isto é, fiéis a suas demandas.

Então, chegamos ao ponto crucial de nosso raciocínio: misture o meme cristão do salvacionismo sebastianista com a crença em taumaturgos milagreiros; acrescente a fúria pregacionista e reacionária dos pastores evangélicos a brandir suas bíblias e suas diatribes contra o perigo do diabo e do comunismo, sedentos não só dinheiro mas também de poder político que lhes traga segurança e ainda mais dinheiro; junte a isso o surgimento de um político medíocre, inescrupuloso, mas “profundamente evangélico” (pelo menos, na aparência) e teremos, no cadinho político de desânimo e de perseguição das forças progressistas alojadas no PT, pela chamada operação lava jato, que abriu fogo cerrado contra uma pretensa escandalosa onda, um tsunami, de corrupção, teremos no meio disso tudo o “taumaturgo”, o “incorruptível”, o “dom sebastião” devidamente forjado em mentiras e tornado “mito” – Jair Messias Bolsonaro.

Claro que o anticomunismo exacerbado do “estado novo” getulista, ainda hoje arraigado no povo brasileiro, desde a década de 30 e 40, teve seu quinhão na pregação dos pastores e no espectro de cores nazi-fascistas assumidas pelo político, coisa de que, possivelmente, nem o próprio candidato tem noção muito clara, já que sua capacidade mental é limitada. Também contribuíram, como já ressaltei, a “onda de fake news” desencadeada nas redes sociais pelos seguidores de Bolsonaro. Com um ingrediente de altíssima voltagem midiática: a facada que ele levou em plena campanha, o que o impossibilitou de participar de debates com os demais candidatos, blindando, assim, a falta de argumentação e a estupidez de suas ideias absurdas, do eleitor que não queria o PT de volta, o que gerou um fenômeno no segundo turno das eleições: um candidato que se elege com uma quantidade inferior ao de votos brancos, nulos e dados a seu oponente. A tal da facada pode ter sido falsa, como eu e muitas pessoas acreditamos, mas o seu poder midiático e de blindagem do candidato foi bem real.

Bolsonaro, do alto de sua estupidez, está destruindo todas as conquistas sociais, políticas, econômicas que as forças progressistas haviam logrado obter. E não se pode dizer que ele escamoteou dos eleitores suas intenções, já que seus seguidores – aqueles 20 a 25% do eleitorado que ainda o apoiam – estavam conscientes do que desejavam: acabar com tudo que tivesse um leve perfume de “esquerdismo”, de comunismo, mesmo que fossem territórios indígenas, direitos das mulheres, gays, transexuais etc., mesmo que se relacionassem à defesa do meio ambiente, à política externa, à economia e mais uma série imensa de etcéteras. E pior: mesmo que tivesse “cara” de fascismo, “jeito” de fascismo, “cheiro” de fascismo, eles apoiariam jurando que não é fascismo. No entanto, abriram as portas para todos os extremismos de direita, que jaziam em suas tocas, e agora, vitaminados pela tecnologia das redes sociais, ousam colocar suas garras de fora, aproveitando-se da ingenuidade ou, mais provavelmente, da necessidade de não descartar apoios da “comunidade anticomunista” dos bolsonaristas, num balaio de gatos pardos, dos quais, no entanto, cada grupo sabe muito bem a cor real de cada um, mas finge não saber.

Os “pastores” que levaram seus “rebanhos” – melhor, talvez, se disséssemos “seu gado” – para formar as hordas bolsonaristas souberam muito bem explorar o vácuo deixado há mais de 50 anos pela ICAR. A igreja e seus papas, depois de Pio XII, principalmente a partir de João XXIII, modernizou seu discurso tradicional, abrandou seus ritos conservadores, deixou que muitos de seus bispos e padres desenvolvessem um discurso socializante e de defesa dos mais desprotegidos, e tem abandonado pouco a pouco algumas de suas práticas medievais. Isso assustou e afastou seguidores mais tradicionalistas, os mais “medievais”, em cuja mentalidade não cabiam essas “modernidades”. Órfãos, acabaram nos braços fundamentalistas, ou falsamente fundamentalistas, da pregação “evangélica” que, se não tinha o conservadorismo dos ritos, tinha o “ouro dos tolos” da ligação direta do cristão com seu deus, embora passando essa mediação direta pela bolsa escancarada e faminta dos pastores. A esse discurso salvacionista e fundamentalista, acrescente o conservadorismo, o medo do “inferno comunista”, a promessa tácita e indiscutível de que deus está, não exatamente no céu, mas ao lado de cada um deles, conduzindo suas vidas e prometendo melhores condições sociais, desde que acolham a “palavra”, nada mais do que a “palavra”, com as mãos erguidas para doar a deus o seu rico dinheirinho em troca de emprego, de casa, de carro, de mais dinheiro, temos uma multidão que chamamos de “gado”, porque segue de olhos fechados o chefe da manada e faz o que eles, os pastores, querem, inclusive votar no Bolsonaro e apoiar seu governo. Ou seja, o governo de Bolsonaro, o “taumaturgo” estúpido e destruidor, significa o povo de deus no poder. E mesmo que eles não acreditem nos milagres do taumaturgo, precisam, no entanto, devidamente guiados por seus pastores, acreditar que um milagre precisa acontecer.

Creio ter retratado de alguma forma – e o mais realisticamente possível – essa figura quase enigmática e quase inexplicável que é o atual presidente da república do Brasil. Não é o único no mundo atual. Passamos por um momento de crise de lideranças e em muitos países outros seres fora da curva têm obtido sucesso eleitoral e estão conduzindo seus países e seus povos para destinos que só podemos considerar como trágicos. As forças progressistas têm procurado reagir, o que nos dá alguma esperança.

No entanto, creio não ser necessário, para concluir, alertar o quanto de perigo há no bolsonarismo e na continuidade de seu desgoverno. E no quanto as forças progressistas terão que investir em termos de persuasão e de luta para que esse indivíduo seja vencido nas próximas eleições, para que a destruição do país chegue a um ponto de total irreversibilidade.

“There is still time, brothers”!!!

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