(São Paulo, Largo da Batata)
No famoso filme de George Romero,
"A volta dos mortos-vivos", um bando de zumbis percorre a cidade
matando e comendo cérebros, e gritando: "brain, brain, brain".
Foi essa a imagem que me veio, ao
ver as imensas passeatas e manifestações em todo o País, exaltadas e elogiadas
por todos os meios de comunicação como um fato histórico, como algo realmente
extraordinário. Aos poucos, porém, as belas imagens de cantos e slogans, de
cartazes contra tudo e contra todos, começaram a ceder às imagens da massa amorfa
a destruir tudo o que encontrava pela frente, tendo como alvos (listei alguns,
pelo Brasil afora): prefeituras municipais (e muitas, como a do Rio, ocupam
prédios históricos, tombados); palácios de governos (em São Paulo, o
Bandeirantes; em Brasília, o Palácio do Itamarati, obra considerada patrimônio
da humanidade, do gênio de Niemayer); câmaras municipais; assembleias
legislativas; campos de futebol; sedes do poder judiciário (como em Vitória,
ES); espaços públicos de lazer e artes (o Terreirão do Samba, no Rio; o Teatro Municipal,
em São Paulo); veículos de transmissão de tevê; ônibus de transporte público;
veículos particulares; bancas de jornais; equipamentos urbanos, como semáforos,
radares etc.; lojas em geral e de eletroeletrônicos, principalmente; agências
bancárias...
Brain, brain, brain...
Não há desculpa para esse tipo de
atitude. Os líderes dos movimentos que convocam a população para se manifestar
em atos públicos têm de ter a exata noção do que querem. Ou seja: devem ter
clareza no objetivo da manifestação; indicar o local e o trajeto que deverá
percorrer; indicar os objetivos a serem alcançados; instruir seus seguidores no
modo como agir em relação a quaisquer provocações, sejam da polícia, sejam de
outros grupos; orientar os participantes a não permitir ações de indivíduos
mais exaltados, que iniciem qualquer tipo de baderna; orientar seus seguidores
a manifestar opinião sobre tais e tais assuntos, para que não se torne algo sem
uma ideia central; indicar a hora de iniciar e, principalmente, a hora de
terminar, para que as pessoas voltem para suas casas e não haja desculpa para
grupos de assaltantes, bandidos e saqueadores se aproveitarem do movimento para
agir. Enfim, devem tomar atitudes de líderes. E não foi o que eu vi, até agora.
Convocam o povo e, depois de reunida a multidão, grupos isolam-se e agem sem
comando.
Brain, brain, brain...
Um movimento social se inicia com
a perspectiva de que algo pode ser mudado na sociedade. Mesmo que seja um
motivo simples, como diminuir o valor do transporte público em vinte centavos,
como foi a origem do movimento, em São Paulo. Alcançado esse objetivo, não há
motivo para continuar a realizar o mesmo tipo de manifestação, como se aquilo
fosse apenas a primeira de uma série de reivindicações. Porque isso é enganar,
é não dizer toda a verdade, seja à população, seja às autoridades constituídas.
Isso é engodo. É aproveitar-se de um objetivo alcançado para tentar chantagear
os governos, como a dizer, irresponsavelmente, "isso o que conseguimos foi
só uma brincadeirinha, agora é que vai começar para valer". Tal atitude
indica falta de maturidade e leva à perda da credibilidade do movimento.
Brain, brain, brain...
"Vamos mudar o País";
"somos contra a corrupção"; "mais verbas para saúde e
educação"; "mais hospitais e menos estádios"; "contra a
PEC-37"... E mil outras pequenas e importantes reivindicações apareceram
nos cartazes. Mas, qual o objetivo de tudo isso? Por que tudo isso? De que modo
se pode conquistar tudo isso? Vamos analisar algumas dessas demandas.
"Mudar o País". Mudar
em quê e para quê, exatamente? Se estamos num Estado democrático de pleno
direito, com todas as instituições funcionando; se não há nenhuma ameaça à
liberdade de expressão; se os governantes são eleitos a cada quatro anos, em
eleições livres e justas; se a inflação, embora ainda possa assustar um pouco,
está sob controle; se o custo de vida, ainda que oscile, tem sido o que se
espera num momento econômico internacional complicado; se os partidos políticos
abrangem todos os naipes das ideologias e, se não são ideais, há a
possibilidade de se discutir e encaminhar propostas de reformas que visem à
melhoria dessas instituições; se o País está crescendo, em ritmo lento, mas
consistente; se não há desemprego nem falta de perspectivas para os jovens no
mercado de trabalho; se os problemas estruturais relacionados a estradas,
portos, aeroportos etc. estão sendo discutidos e soluções - que não são baratas
nem imediatas - estão sendo encaminhadas; se a educação - que é realmente ruim
e tem sido assim há décadas - tem sido contemplada com verbas suficientes e com
propostas que visam a ampliá-las, num futuro não muito distante, como, por
exemplo, que a extração do petróleo do pré-sal e seus dividendos sejam dirigidos
para a educação; se não há nenhum grande esquema de corrupção dentro do Estado,
em qualquer de seus níveis - municipal, estadual e federal - e os que aparecem
são pontuais e devidamente investigados e punidos; se há, sim, verba para a
saúde, e o que vivemos é uma crise de gestão de órgãos da saúde cuja
responsabilidade está vinculada muito mais a gestores municipais, que precisam,
sim, ser cobrados para que a situação melhore e isso não tem relação direta com
quaisquer outros investimentos públicos, como a construção de estádios para a
Copa do Mundo; se a discussão sobre o ordenamento jurídico do Estado, como a
responsabilidade de investigação entre Ministério Público e Polícia Federal, é
apenas uma discussão de limites de poder, que não vai, absolutamente,
interferir em nada na vida dos cidadãos, como querem fazer parecer as partes
envolvidas na contenda, e isso é só uma discussão jurídica e nada mais, sobre a
qual os cidadãos podem e devem dar sua opinião, mas não justifica nenhum tipo
de gritaria de que a aprovação da tal PEC-37 vá ocasionar perda de garantias e
de direitos dos cidadãos deste País; enfim, se todas essas demandas são legítimas
e cabem em qualquer fórum de discussão de melhorias para o povo, por que fazer
disso, exatamente, um motivo para "mudar o País?"
Brain, brain, brain...
Muito bem, concordemos que tudo
isso é muito bom, que tudo isso está bem, que o povo precisa achar um canal de
comunicação, de mobilização, de pressão às autoridades, para que as coisas
melhorem. Concordemos que é importante e necessária uma manifestação pacífica,
uma boa passeata, com as pessoas sabendo exatamente o seu papel de cidadãos,
com palavras de ordem devidamente discutidas e repassadas, seguindo o ritual
(odeio os rituais, mas não há como fugir deles, se não tudo desanda) dos
processos democráticos de objetivo, clareza, começo, meio e fim da manifestação
e, principalmente, controle da massa. Para isso, é preciso que haja líderes.
Para isso, é preciso que haja uma ideologia concreta, clara, sem subterfúgios.
E onde estão os líderes? Onde
estão os responsáveis diretos por todas essas manifestações? Não há palanques,
não há discursos (mesmo que breves, que, afinal, os tempos são outros), não há
compromisso dos líderes com seus liderados nem com os demais entes da
sociedade. Afinal, uma manifestação de rua interfere na vida de muita, muita
gente, e isso precisa ser planejado, combinado, avisado de forma clara e
transparente. A mesma clareza e transparência que os manifestantes estão a
exigir dos governantes. Se a liderança é difusa, a ideologia também é difusa. E
pode ser perigosa.
Brain, brain, brain...
E aí entramos no terreno mais
complexo de tudo isso: o da ideologia.
Não existe movimento humano que
não seja político, ou seja, que não esteja dentro de um contexto que envolva
outros seres humanos. Porque, como todos sabem e alardeiam, nenhum homem é uma
ilha. Tudo bem, nem toda política é partidária, mas toda ação política tem um
motivo, uma motivação, um "ovo" do qual brotam e se desenvolvem todas
as demais ações que poderão ou não mudar a vida de uma comunidade, de uma
cidade, de um país, do mundo. E enquanto não temos clara a ideologia de uma
ação, não podemos julgá-la em termos de consequência. Principalmente, é
impossível julgá-la no seu nascedouro, quanto a seus méritos morais, se não a
conhecemos, se ela permanece oculta por seus pretensos líderes ou iniciadores.
É o que acontece, agora. O que pensam, realmente, os líderes dessas
manifestações todas, já que eles mal aparecem, ou não se deixam conhecer?
Sabemos que, primeiro, são
apartidários. Mais precisamente: parece que não são apenas apartidários, mas
contrários a todos os partidos. Mussolini também era contra todos os partidos.
Por isso fundou o seu. Ser contra partidos políticos pode parecer, portanto,
algo muito generoso e bom, mas é extremamente perigoso. Porque os partidos
políticos abrigam ideologias, ou, pelo menos, deveriam abrigá-las. E dizer-se
sem nenhuma ideologia é, sem sombra de dúvida, flertar com forças muito negras
da história da humanidade.
Segundo, parece que defendem um
tipo de democracia direta. Claro, se não há partidos, que o povo decida nas
ruas o que se deve ou não se deve fazer. Alguns veem nisso o que chamam de
anarquia. Não, anarquia não é isso. O anarquismo é uma doutrina séria, que
prega um tipo de utopia de sociedade sem governo, porque não precisa de
governo, já que seria constituída de homens e mulheres de tal grau de
civilidade, que não precisariam de leis ou de regras ou de regulamentos para
conviver entre si. O que esses indivíduos que se dizem "anarquistas"
pregam é a destruição de um sistema, sem nada para colocar no lugar. É apenas a
bagunça. E esses "bagunceiros", "arruaceiros" ou seja lá o
nome que se queira dar a eles, estão, sim, no âmago de qualquer movimento que
não tenha uma ideologia definida, porque eles se aproveitam disso para impor
suas ideias e, mais, impor pela força aquilo que eles não conseguem pela
lógica.
Brain, brain, brain...
Democracia direta só funciona em
pequenas, em mínimas comunidades e, assim mesmo, quando os indivíduos que a
compõem têm um compromisso muito claro com certos princípios de respeito ao
outro, a si mesmos e ao meio em que vivem, para não serem cooptados por uma minoria
atuante que acaba por envolver a maioria em suas ideias e propostas, muitas
vezes contrárias ao grupo e de acordo com os seus interesses. E aí, chegamos a
um ponto crucial: as minorias. Esses indivíduos acham-se maioria, mas não o
são. Porque se impõem, porque mobilizam, porque gritam mais alto, parecem
maioria e, por algum tempo, obtêm a adesão de uma grande quantidade de pessoas,
que se iludem com as palavras de ordem devidamente edulcoradas. Mas é tudo
falso: impõem, na verdade, a ditadura da minoria, porque, aos poucos, os cidadãos
que aparentemente aplaudem suas atitudes começam a se sentir incomodados com
seus gritos, com seus rompantes e, principalmente, com suas atitudes de
arrogância e de interferência na ordem pública. Porque a maioria absoluta do
povo gosta da ordem, de sua zona de conforto. Que as revoluções sejam
feitas, a maioria do povo até aprova, de
vez em quando. Mas que tudo volte ao normal, em seguida, que a vida siga o seu
curso. E não é o que está acontecendo. Os mortos-vivos insistem e insistem e
insistem...
Brain, brain, brain...
Temerosos por seus funcionários
e, mais ainda, por seu patrimônio, está claro que as redes de comunicação
social - televisões e rádios, em primeiro, lugar e imprensa em segundo -
aplaudem e tratam com a máxima cautela o que está acontecendo. Um certo
comentarista até se retratou vinte e quatro horas depois de ter dito
barbaridades contra as manifestações. Com cara de poucos amigos, mas se
retratou. E os apresentadores de televisão são tão caras de pau, que conseguem
ver seus veículos de transmissão pegando fogo e ainda elogiar! Conseguem
maquiar tão bem suas opiniões, que colocam as imagens de quebra-quebra, de
destruição, ao som de ícones musicais, como "Alegria, alegria", de
Caetano Veloso. Referências à tomada da Bastilha passam, como vinhetas
arranhadas, de vez em quando, pelos comentaristas escrotos. E só falta associarem
a destruição da sede da Prefeitura do Rio à voz de Geraldo Vandré cantando
"Para não dizer que não falei de flores", um dos hinos da resistência
à ditadura. Enfim, o circo está armado e, debaixo dessa lona, está o ovo, um
ovo que me parece conter negros presságios.
Os zumbis de George Romero comiam
cérebros. Os mortos-vivos das marchas pela mudança do País parece que só querem,
mesmo, provar que a força da "redecracia" que eles comandam pode
substituir um sistema de governo democrático, baseado no princípio da
representação - que pode não ser perfeito e não o é, aliás bem ao contrário,
mas não há outro melhor que o suceda.
Só nos resta torcer para que
muitos desses mortos-vivos não se transformem em mortos de verdade.
Brain, brain, brain...