junho 21, 2013

O OVO DA SERPENTE?




 (São Paulo, Largo da Batata)



No famoso filme de George Romero, "A volta dos mortos-vivos", um bando de zumbis percorre a cidade matando e comendo cérebros, e gritando: "brain, brain, brain".

Foi essa a imagem que me veio, ao ver as imensas passeatas e manifestações em todo o País, exaltadas e elogiadas por todos os meios de comunicação como um fato histórico, como algo realmente extraordinário. Aos poucos, porém, as belas imagens de cantos e slogans, de cartazes contra tudo e contra todos, começaram a ceder às imagens da massa amorfa a destruir tudo o que encontrava pela frente, tendo como alvos (listei alguns, pelo Brasil afora): prefeituras municipais (e muitas, como a do Rio, ocupam prédios históricos, tombados); palácios de governos (em São Paulo, o Bandeirantes; em Brasília, o Palácio do Itamarati, obra considerada patrimônio da humanidade, do gênio de Niemayer); câmaras municipais; assembleias legislativas; campos de futebol; sedes do poder judiciário (como em Vitória, ES); espaços públicos de lazer e artes (o Terreirão do Samba, no Rio; o Teatro Municipal, em São Paulo); veículos de transmissão de tevê; ônibus de transporte público; veículos particulares; bancas de jornais; equipamentos urbanos, como semáforos, radares etc.; lojas em geral e de eletroeletrônicos, principalmente; agências bancárias...

Brain, brain, brain...

Não há desculpa para esse tipo de atitude. Os líderes dos movimentos que convocam a população para se manifestar em atos públicos têm de ter a exata noção do que querem. Ou seja: devem ter clareza no objetivo da manifestação; indicar o local e o trajeto que deverá percorrer; indicar os objetivos a serem alcançados; instruir seus seguidores no modo como agir em relação a quaisquer provocações, sejam da polícia, sejam de outros grupos; orientar os participantes a não permitir ações de indivíduos mais exaltados, que iniciem qualquer tipo de baderna; orientar seus seguidores a manifestar opinião sobre tais e tais assuntos, para que não se torne algo sem uma ideia central; indicar a hora de iniciar e, principalmente, a hora de terminar, para que as pessoas voltem para suas casas e não haja desculpa para grupos de assaltantes, bandidos e saqueadores se aproveitarem do movimento para agir. Enfim, devem tomar atitudes de líderes. E não foi o que eu vi, até agora. Convocam o povo e, depois de reunida a multidão, grupos isolam-se e agem sem comando.

Brain, brain, brain...

Um movimento social se inicia com a perspectiva de que algo pode ser mudado na sociedade. Mesmo que seja um motivo simples, como diminuir o valor do transporte público em vinte centavos, como foi a origem do movimento, em São Paulo. Alcançado esse objetivo, não há motivo para continuar a realizar o mesmo tipo de manifestação, como se aquilo fosse apenas a primeira de uma série de reivindicações. Porque isso é enganar, é não dizer toda a verdade, seja à população, seja às autoridades constituídas. Isso é engodo. É aproveitar-se de um objetivo alcançado para tentar chantagear os governos, como a dizer, irresponsavelmente, "isso o que conseguimos foi só uma brincadeirinha, agora é que vai começar para valer". Tal atitude indica falta de maturidade e leva à perda da credibilidade do movimento.

Brain, brain, brain...

"Vamos mudar o País"; "somos contra a corrupção"; "mais verbas para saúde e educação"; "mais hospitais e menos estádios"; "contra a PEC-37"... E mil outras pequenas e importantes reivindicações apareceram nos cartazes. Mas, qual o objetivo de tudo isso? Por que tudo isso? De que modo se pode conquistar tudo isso? Vamos analisar algumas dessas demandas.

"Mudar o País". Mudar em quê e para quê, exatamente? Se estamos num Estado democrático de pleno direito, com todas as instituições funcionando; se não há nenhuma ameaça à liberdade de expressão; se os governantes são eleitos a cada quatro anos, em eleições livres e justas; se a inflação, embora ainda possa assustar um pouco, está sob controle; se o custo de vida, ainda que oscile, tem sido o que se espera num momento econômico internacional complicado; se os partidos políticos abrangem todos os naipes das ideologias e, se não são ideais, há a possibilidade de se discutir e encaminhar propostas de reformas que visem à melhoria dessas instituições; se o País está crescendo, em ritmo lento, mas consistente; se não há desemprego nem falta de perspectivas para os jovens no mercado de trabalho; se os problemas estruturais relacionados a estradas, portos, aeroportos etc. estão sendo discutidos e soluções - que não são baratas nem imediatas - estão sendo encaminhadas; se a educação - que é realmente ruim e tem sido assim há décadas - tem sido contemplada com verbas suficientes e com propostas que visam a ampliá-las, num futuro não muito distante, como, por exemplo, que a extração do petróleo do pré-sal e seus dividendos sejam dirigidos para a educação; se não há nenhum grande esquema de corrupção dentro do Estado, em qualquer de seus níveis - municipal, estadual e federal - e os que aparecem são pontuais e devidamente investigados e punidos; se há, sim, verba para a saúde, e o que vivemos é uma crise de gestão de órgãos da saúde cuja responsabilidade está vinculada muito mais a gestores municipais, que precisam, sim, ser cobrados para que a situação melhore e isso não tem relação direta com quaisquer outros investimentos públicos, como a construção de estádios para a Copa do Mundo; se a discussão sobre o ordenamento jurídico do Estado, como a responsabilidade de investigação entre Ministério Público e Polícia Federal, é apenas uma discussão de limites de poder, que não vai, absolutamente, interferir em nada na vida dos cidadãos, como querem fazer parecer as partes envolvidas na contenda, e isso é só uma discussão jurídica e nada mais, sobre a qual os cidadãos podem e devem dar sua opinião, mas não justifica nenhum tipo de gritaria de que a aprovação da tal PEC-37 vá ocasionar perda de garantias e de direitos dos cidadãos deste País; enfim, se todas essas demandas são legítimas e cabem em qualquer fórum de discussão de melhorias para o povo, por que fazer disso, exatamente, um motivo para "mudar o País?"

Brain, brain, brain...

Muito bem, concordemos que tudo isso é muito bom, que tudo isso está bem, que o povo precisa achar um canal de comunicação, de mobilização, de pressão às autoridades, para que as coisas melhorem. Concordemos que é importante e necessária uma manifestação pacífica, uma boa passeata, com as pessoas sabendo exatamente o seu papel de cidadãos, com palavras de ordem devidamente discutidas e repassadas, seguindo o ritual (odeio os rituais, mas não há como fugir deles, se não tudo desanda) dos processos democráticos de objetivo, clareza, começo, meio e fim da manifestação e, principalmente, controle da massa. Para isso, é preciso que haja líderes. Para isso, é preciso que haja uma ideologia concreta, clara, sem subterfúgios.

E onde estão os líderes? Onde estão os responsáveis diretos por todas essas manifestações? Não há palanques, não há discursos (mesmo que breves, que, afinal, os tempos são outros), não há compromisso dos líderes com seus liderados nem com os demais entes da sociedade. Afinal, uma manifestação de rua interfere na vida de muita, muita gente, e isso precisa ser planejado, combinado, avisado de forma clara e transparente. A mesma clareza e transparência que os manifestantes estão a exigir dos governantes. Se a liderança é difusa, a ideologia também é difusa. E pode ser perigosa.

Brain, brain, brain...

E aí entramos no terreno mais complexo de tudo isso: o da ideologia.

Não existe movimento humano que não seja político, ou seja, que não esteja dentro de um contexto que envolva outros seres humanos. Porque, como todos sabem e alardeiam, nenhum homem é uma ilha. Tudo bem, nem toda política é partidária, mas toda ação política tem um motivo, uma motivação, um "ovo" do qual brotam e se desenvolvem todas as demais ações que poderão ou não mudar a vida de uma comunidade, de uma cidade, de um país, do mundo. E enquanto não temos clara a ideologia de uma ação, não podemos julgá-la em termos de consequência. Principalmente, é impossível julgá-la no seu nascedouro, quanto a seus méritos morais, se não a conhecemos, se ela permanece oculta por seus pretensos líderes ou iniciadores. É o que acontece, agora. O que pensam, realmente, os líderes dessas manifestações todas, já que eles mal aparecem, ou não se deixam conhecer?

Sabemos que, primeiro, são apartidários. Mais precisamente: parece que não são apenas apartidários, mas contrários a todos os partidos. Mussolini também era contra todos os partidos. Por isso fundou o seu. Ser contra partidos políticos pode parecer, portanto, algo muito generoso e bom, mas é extremamente perigoso. Porque os partidos políticos abrigam ideologias, ou, pelo menos, deveriam abrigá-las. E dizer-se sem nenhuma ideologia é, sem sombra de dúvida, flertar com forças muito negras da história da humanidade.

Segundo, parece que defendem um tipo de democracia direta. Claro, se não há partidos, que o povo decida nas ruas o que se deve ou não se deve fazer. Alguns veem nisso o que chamam de anarquia. Não, anarquia não é isso. O anarquismo é uma doutrina séria, que prega um tipo de utopia de sociedade sem governo, porque não precisa de governo, já que seria constituída de homens e mulheres de tal grau de civilidade, que não precisariam de leis ou de regras ou de regulamentos para conviver entre si. O que esses indivíduos que se dizem "anarquistas" pregam é a destruição de um sistema, sem nada para colocar no lugar. É apenas a bagunça. E esses "bagunceiros", "arruaceiros" ou seja lá o nome que se queira dar a eles, estão, sim, no âmago de qualquer movimento que não tenha uma ideologia definida, porque eles se aproveitam disso para impor suas ideias e, mais, impor pela força aquilo que eles não conseguem pela lógica.

Brain, brain, brain...

Democracia direta só funciona em pequenas, em mínimas comunidades e, assim mesmo, quando os indivíduos que a compõem têm um compromisso muito claro com certos princípios de respeito ao outro, a si mesmos e ao meio em que vivem, para não serem cooptados por uma minoria atuante que acaba por envolver a maioria em suas ideias e propostas, muitas vezes contrárias ao grupo e de acordo com os seus interesses. E aí, chegamos a um ponto crucial: as minorias. Esses indivíduos acham-se maioria, mas não o são. Porque se impõem, porque mobilizam, porque gritam mais alto, parecem maioria e, por algum tempo, obtêm a adesão de uma grande quantidade de pessoas, que se iludem com as palavras de ordem devidamente edulcoradas. Mas é tudo falso: impõem, na verdade, a ditadura da minoria, porque, aos poucos, os cidadãos que aparentemente aplaudem suas atitudes começam a se sentir incomodados com seus gritos, com seus rompantes e, principalmente, com suas atitudes de arrogância e de interferência na ordem pública. Porque a maioria absoluta do povo gosta da ordem, de sua zona de conforto. Que as revoluções sejam feitas,  a maioria do povo até aprova, de vez em quando. Mas que tudo volte ao normal, em seguida, que a vida siga o seu curso. E não é o que está acontecendo. Os mortos-vivos insistem e insistem e insistem...

Brain, brain, brain...

Temerosos por seus funcionários e, mais ainda, por seu patrimônio, está claro que as redes de comunicação social - televisões e rádios, em primeiro, lugar e imprensa em segundo - aplaudem e tratam com a máxima cautela o que está acontecendo. Um certo comentarista até se retratou vinte e quatro horas depois de ter dito barbaridades contra as manifestações. Com cara de poucos amigos, mas se retratou. E os apresentadores de televisão são tão caras de pau, que conseguem ver seus veículos de transmissão pegando fogo e ainda elogiar! Conseguem maquiar tão bem suas opiniões, que colocam as imagens de quebra-quebra, de destruição, ao som de ícones musicais, como "Alegria, alegria", de Caetano Veloso. Referências à tomada da Bastilha passam, como vinhetas arranhadas, de vez em quando, pelos comentaristas escrotos. E só falta associarem a destruição da sede da Prefeitura do Rio à voz de Geraldo Vandré cantando "Para não dizer que não falei de flores", um dos hinos da resistência à ditadura. Enfim, o circo está armado e, debaixo dessa lona, está o ovo, um ovo que me parece conter negros presságios.

Os zumbis de George Romero comiam cérebros. Os mortos-vivos das marchas pela mudança do País parece que só querem, mesmo, provar que a força da "redecracia" que eles comandam pode substituir um sistema de governo democrático, baseado no princípio da representação - que pode não ser perfeito e não o é, aliás bem ao contrário, mas não há outro melhor que o suceda.

Só nos resta torcer para que muitos desses mortos-vivos não se transformem em mortos de verdade.


Brain, brain, brain...



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