março 12, 2018

DEMOCRACIA? ONDE?







“Um governo do povo, para o povo e pelo povo”. Essa a frase que nos vem à cabeça quando falamos de democracia. Uma espécie de meme, totalmente falacioso, mas grudado na memória de todos, por força do tanto repetir. 

E por que esse conceito é falacioso? 

Bem, a conversa promete ser longa. E o assunto, inesgotável. Vamos tentar levantar alguns problemas dessa definição e da própria existência da democracia no mundo ocidental, principalmente no Brasil. 

A primeira falácia é a própria noção de “democracia grega”: o povo grego, as chamadas classes populares, os comerciantes, os artesãos e, naturalmente, os escravos (que eram muitos, na época, por questões relacionadas a guerras e a dívidas) nunca participaram da escolha dos governantes gregos, escolhidos sempre por uma aristocracia dominante, através de vários processos, muitos deles não exatamente democráticos. Mas deixemos que os gregos enterrem os gregos. Falemos do presente. 

Para começar, o que seria um governo “do povo”? 

Acredito que um “governo do povo” fosse um governo que tivesse realmente representantes oriundos do povo, escolhidos livremente por todos, através de processos realmente democráticos e complexos, que pudessem selecionar pessoas que irão exercer o poder com compromissos muito bem fincados em um longo processo de discussão das prioridades e dos anseios desse povo. Talvez, através de assembleias que começassem em quarteirões e bairros, atingissem toda a cidade e fossem gradativamente levando seus representantes até a uma assembleia nacional, em que se discutissem todos as sugestões programáticas, para escolher as mais importantes e factíveis, com as quais os então escolhidos representantes iriam se comprometer ao chegar ao governo. Mas isso é um processo caro e difícil, que não demanda nem mesmo a existência de partidos políticos ideologicamente estruturados. 

Então, encontramos o primeiro nó: política precisa de ideologia? E a ideologia deve ser preocupação da política? 

Sim, se vivemos num mundo dividido em forças econômicas e ideológicas que desejam apenas o poder para aumentar ainda mais a sua capacidade de ganhar dinheiro e, por conseguinte, de oprimir o povo e subjugá-lo, para ganhar ainda mais poder e mais dinheiro, num círculo vicioso de ganância e escravidão. Estamos, é claro, falando do predomínio do sistema capitalista, com suas políticas (que são várias) de exploração do povo e de dominação. 

Não, não precisaríamos de ideologia na política, se vivêssemos num mundo igualitário, em que não houvesse a exploração do homem pelo homem... E paremos por aí, porque a utopia está evidente nessas poucas palavras. Esse mundo ideal não existe e não podemos afirmar que vá existir algum dia, embora o desejemos todos. 

O nó ideológico, portanto, ainda não tem condições de ser desfeito: mesmo nas assembleias mais democráticas, como as que possamos realizar a partir das bases mais profundas da organização popular, estarão eivadas de ideologia que irá contaminar seus resultados e seus projetos. E o povo, mais uma vez, seria enganado. Ou se enganaria nas suas escolhas. Voltaremos a isso mais adiante. 

Portanto, um governo “do povo” é uma falácia, porque os representantes, mesmo aqueles que provieram do povo, que iremos eleger foram e são escolhidos por uma elite partidária, para atender demandas e facções e exigências de quem já está no poder ou tem o poder para manipular eleições e resultados ou, se não podem manipular eleições, têm o poder de, através do investimento em propaganda e marketing, levar o povo a escolher os seus preferidos. 

Abro, aqui, um parêntese, para exemplificar com a história de nosso País. Desde a proclamação da República, em 1889, quantos presidentes oriundos das classes populares teve o Brasil até agora? E a resposta é óbvia: um, apenas um, que governou por oito anos, com grandes dificuldades, e agora, está sofrendo um terrível processo de perseguição política, para que não volte ao poder: Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, mesmo Lula não foi exatamente escolhido pelas classes populares. Eu disse que ele é oriundo do povo, e somente obteve a benevolência do voto popular, quando abriu mão de uma série de compromissos populares, para não “assustar” as chamadas elites. Foi, sem dúvida, o maior avanço democrático da história desse País, mas tem um pezinho na ajuda de forças eleitorais poderosas que, se não o apoiaram, não o atrapalharam, apostando no seu fracasso estrepitoso, para voltarem depois como “salvadoras da pátria”, como sempre o fizeram, para manter o povo sob o seu tacão. 

Repito, pois: um governo “do povo” é uma falácia, um fato que não ocorre nunca nem no Brasil nem em nenhum outro país do Ocidente. E a nação mais poderosa da Terra, os Estados Unidos, é um exemplo mais do que acabado de que a democracia ali está a anos luz do povo: o processo de escolha dos candidatos é baseado unicamente no seu poder de arrecadar dinheiro para a campanha; depois, o processo eleitoral é indireto e, nas últimas “eleições” (sim, com aspas), houve claramente um vitorioso pelo voto, mas elegeu-se aquele que foi escolhido pelo tal do “colégio eleitoral”, num processo que remonta a fundação da “democracia americana” (deveria poder colocar, pelo menos, umas dez aspas), quando outras eram as forças eleitorais e outro o país, um processo, portanto, arcaico e hoje totalmente sem sentido. Embora, isso não importe muito, já que o processo todo é viciado e o eleito nunca foi, não é e nunca será um legítimo representante do povo, mesmo que seja negro, como o ex-presidente Barak Obama. 

A segunda parte da tal definição de democracia, redundantemente “um governo pelo povo e para o povo”, pode ser desmontada facilmente. Se não se elegem legítimos representantes do povo, nenhum governante tem realmente compromisso com as demandas populares. Nenhum governante governa “pelo povo” que o elegeu ou aplica programas de governo que sejam realmente “para o povo”. Você vai dizer que eu estou exagerando, que houve governantes que fizeram isto ou aquilo pelo povo, que construíram obras ou deixaram um bom legado para o povo. Sim, em sei disso. E podemos listar praticamente todos os presidentes do Brasil: todos eles deixaram alguma “contribuição” para o povo. Mas não exatamente “pelo povo”. Se fizeram isto ou aquilo, se construíram pontes e estradas, se desenvolveram o ensino, se tiveram políticas sociais voltadas para o combate ao desemprego ou à miséria e etc. e etc. etc., tudo isso foi feito porque é preciso que o povo tenha algum quinhão da riqueza, como forma de controle, de manutenção do status quo, de que a pobreza não atinja pontos de extrema penúria que coloque em risco os seus empregos (digo, os empregos dos governantes e de quem os governa, os capitalistas, as elites mantenedoras do sistema). Fazem, sim, governos “populistas” (e aí emprego o termo no seu sentido mais nobre), não porque se comprometeram com o povo, mas porque, se não o fizerem, arriscam-se a colocar em desequilíbrio o sistema, levando ao colapso de bancos, indústrias, agronegócio etc. 

Abro novamente um parêntese, para falar de Lula. Seu governo foi um governo “para o povo”, apesar de tudo. Conseguiu, com todas as dificuldades políticas de um partido sem maioria no Congresso, impor políticas de erradicação da pobreza e de pleno emprego, que tiraram milhões de pessoas da linha da miséria. Mas seu governo parou aí: não conseguiu, porque não havia, como disse apoio político, aprofundar reformas que o Estado Brasileiro necessita, para definitivamente aplicar políticas de distribuição de renda permanentes de amplo espectro, para que se tornasse um governo “para o povo e pelo povo”. Embora tendo feito sua sucessora, esta também não teve condições de aprofundar quaisquer políticas que mudassem o País. Reeleita, sofreu um golpe sujo das forças conservadoras e não pôde concluir sua obra de preparar terreno para a volta de Lula. E as forças conservadoras lançaram mão do mais sórdido meio de perseguição a um líder: o Judiciário. Através de um juizinho de primeira instância, devidamente orientado e formado nos corredores da CIA e nos escritórios luxuosos de Wall Street, a perseguição a Lula tem como objetivo eliminá-lo da corrida presidencial, já que há a possibilidade de que, usando de seu carisma e sua força política, inclusive internacional, um terceiro mandato de Lula levasse à aprovação de reformas de interesse do povo. E isso dá urticária aos mandatários maiores da Nação, os banqueiros, os grandes capitalistas, os donos de indústrias e de empresas agrícolas, cujo sonho é alinhar definitivamente o Brasil aos Estados Unidos. Portanto, urge condenar e até prender o senhor Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo que hão haja provas para isso. 

Fechemos nosso parêntese e voltemos ao nosso tema: a farsa da nossa democracia. E vamos, agora, falar de um elo importante, ou melhor, o elo mais importante do processo democrático verdadeiro: o povo. 

Todo discurso, seja ele realmente democrático, seja ele falsamente democrático, como costumam ser os discursos dos conservadores e de todos os seus próceres e seguidores, coloca como centro de todas as suas preocupações o povo, o povo que ouve e se cala, ou o povo que ouve e aplaude, ou o povo que ouve e vaia. Mas é só isso o que resta ao povo fazer: ouvir. E votar. 

Então, você vai me dizer: está aí a democracia – o voto popular. Sim, o voto na urna é feito pela mão do povo. Mas... será que a mão do povo tem mesmo liberdade de escolher os melhores? Mesmo que os tais “melhores” não venham a ser exatamente os seus legítimos representantes? 

A resposta é não. Com todas as letras. Raríssima mente o povo escolhe realmente os melhores. E mesmo quando os escolhe, ou são minoria ou são anulados de uma forma ou outra pelas forças conservadoras, seja pela cooptação econômica e ideológica ou, até mesmo, pela força e pelo impeachment, como ocorreu recentemente. 

E o povo não escolhe bem por diversas razões, dentre as quais vou citar as duas mais importantes e interligadas: ignorância e manipulação. 

Um ídolo do futebol brasileiro (e mundial) disse, uma vez, que “o povo não sabe votar”. Foi massacrado. E ainda o é, toda vez que se levanta essa questão. Mas a verdade é cristalina: o povo não sabe votar. 

E por que o povo não sabe votar? 

Primeiro, porque a maioria não tem educação formal suficiente, para perceber-se no mundo como realmente é: uma maioria explorada, sem outras perspectivas de vida que não sejam medíocres, um povo mantido na ignorância pela falta de escolas, pela falta de educação de qualidade, pela falta de condições de vida para até mesmo lutar por melhores condições de vida. Um povo, enfim, sem consciência de si, de sua situação e, portanto, um povo que não sabe o que pode querer e o que pode conquistar, pois não sabe e não lhe permitem saber e conhecer a força que tem. 

A manutenção desse povo nas trevas da falta de autoconhecimento tem um custo altíssimo no desenvolvimento do próprio País, mas esse custo tem sido bancado de forma sistemática e cruel pelas forças conservadoras e mantenedoras do sistema capitalista selvagem ou liberal (você pode escolher qual demonização você quer lhe dar) imposto ao País desde sempre. E sem perspectivas de que isso mude. 

O sistema de ensino no Brasil não precisa de reformas, precisa apenas de duas coisas: investimento na melhoria dos salários dos professores e investimento na melhoria da infraestrutura educacional. 

A primeira, melhoria dos salários dos professores, é o único caminho para a excelência do ensino, porque com melhores salários, os professores irão investir mais em sua própria carreira, melhorando o seu desempenho; e mais: com melhores salários, gradativamente, a profissão atrairá cada vez mais talentos, que começarão a fazer a diferença na qualidade do ensino, em vez de buscarem sustento e possibilidade de sucesso profissional em outros campos. Com isso, o nível de ensino melhora e teremos uma juventude realmente preparada para os desafios da Nação e não uma juventude treinada para ser mão de obra barata, segundo os interesses do capital. 

A segunda, investimento na infraestrutura educacional, é ainda bem mais fácil de realizar: prédios, carteiras, livros, bibliotecas, condução para os alunos, laboratórios, tudo isso não tem custo tão alto, se tivermos a decência e honestidade de buscar o melhor pelo menor preço ou o melhor sem sobre-preço. Nem é preciso construir CIEPs (um projeto fantástico de Darci Ribeiro, no Rio de Janeiro, infelizmente sucateado) ou CEUs (um projeto também muito bom, implantado pela Secretaria da Educação de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, a caminho de ser sucateado), embora até mesmo se objetive a chegar a tal ponto, mas basta, no começo, uma política de pé no chão, de utilização inteligente dos recursos disponíveis. 

Perceba-se que o ensino, o sistema educacional, tem um lugar fundamental em todo o processo democrático. Somente através da escola, da educação como um todo, um povo toma consciência de si mesmo, de sua força, e consegue se livrar do opressor ou dos opressores, estejam eles encastelados em posições de mando político ou desfrutando das benesses do capital que explora e mantém escravos. 

Somente a educação liberta um povo, insisto. Ou você acha que nosso sistema educacional é ruim por culpa dos professores ou por falta de dinheiro? Não, nosso sistema educacional é ruim porque querem que ele seja ruim. 

Tirando o povo da ignorância, damos o primeiro passo para que aprenda realmente a escolher seus representantes (mesmo, repito, que esses representantes não sejam exatamente aqueles que verdadeiramente o representem). Mas isso não basta: é preciso que o povo não seja manipulado. 

Mesmo um povo que tenha um excelente ou muito bom sistema educacional pode ser manipulado, para manter o status quo (vejam os Estados Unidos). A manipulação começa com o cerceamento dos professores e mestres em sala de aula, quando o Estado impõe ao sistema educacional a ideologia dominante, não permitindo que as ideias e as discussões fluam livremente. Ou você acha que o movimento “Escola sem partido” visa a quê? Não é preciso que os mestres e professores professem ou ensinem ideologias, mas é necessário que permitam a discussão, que provoquem a discussão, que levem seus alunos a suas próprias conclusões, ou seja, é preciso liberdade, coisa que o citado movimento quer, obviamente, cercear, em nome, mais óbvio ainda, da manutenção do status quo, ou seja, da ignorância do jovem. 

Outra forma de manipulação do povo, mesmo o mais culto, ocorre com o controle dos meios de comunicação. Na maioria dos países ditos “democráticos”, os meios de comunicação social estão nas mãos de poucas empresas ou “famiglias”, comprometidas todas elas com as forças conservadoras, ou por ideologia ou por serem sustentadas por elas. Isso acontece no Brasil, de forma escancarada, cruel e aberta. Redes de televisão, imprensa, emissoras de rádio, praticamente todo o nosso complexo de comunicação está nas mãos de poucos. Que sabem muito bem o que querem e o que não querem, por isso interferem, com seu poder, na composição de governos, na escolha de ministros, nos destinos da Nação. 

Se não houver um contraponto a esse mando exagerado dos meios de comunicação, com o impedimento de que grandes grupos mantenham controle de diversos meios, ou com a sua democratização, através do financiamento de meios ligados a sindicatos e a organizações sociais populares, o poder dessa mídia não pode ser desprezado na hora das eleições e na influência do eleitorado. Temos um novo “eleitorado de cabresto”, o “eleitorado da mídia”, que vota segundo as notícias – verdadeiras ou falsas ou, se verdadeiras, devidamente editadas – veiculadas pela mídia, segundo a opinião de donos da emissora de televisão ou a opinião de comunicadores de auditório ou “formadores de opinião” devidamente orientados pela “voz do dono”, segundo os interesses das forças conservadoras que os sustentam. 

Há muitas outras variáveis que levam o povo à ignorância, à ignorância de si mesmo, de seu poder, de sua força. Mas, por enquanto, fiquemos com essas, que já são suficientes para nosso propósito de reafirmar a falácia de nosso sistema dito democrático. 

Se é que isto seja consolo, o que nos resta dizer é que não estamos sozinhos. Se nosso sistema eleitoral ou político não tem quase nada de democracia, muito pelo contrário, é um sistema pensado, construído e mantido para que o povo não tenha voz e para que as forças dominantes continuem no comando, podemos afirmar que, no mundo ocidental, praticamente nenhum país obteve ou vive uma democracia plena. Há-os mais ou menos democráticos, mas totalmente democráticos só na nossa imaginação, no nosso desejo.