dezembro 24, 2009

O CASO DO MENINO SEAN, UM CASO LAMENTÁVEL

Dizia a minha mãe: - “Quando a cabeça não dá, o corpo é quem padece”. Sábias palavras, signifiquem elas o que quer que seja. De qualquer forma, quando a estupidez e os interesses mesquinhos (mesmo sob o manto do tal “amor”) prevalecem, há sempre muito sofrimento e dor.

Estou-me referindo ao caso do menino Sean, cuja mãe, brasileira, morreu no parto de outra filha, de outro casamento, aqui no Brasil e cujo pai, americano, devia ser, pela lógica, o responsável pela criação e educação do menino. No entanto, num ato de estupidez amorosa, o padrasto brasileiro pediu a guarda provisória do menino. E noutro ato de estupidez jurídica, algum juiz a concedeu. Afinal, o sobrenome ilustre do requerente deve ter pesado, e muito, nesta decisão. Lins e Silva, uma família de juristas!

Cinco anos de luta. Entre o verdadeiro pai e a família da mãe. Cinco anos em que não se pensou, nem por um minuto, primeiro, na lógica; segundo, na lei; terceiro, nas implicações internacionais e, quarto, na cabeça da própria criança, centro de uma disputa kafkiana, entre juristas de dois países.

Lógica: se o pai é vivo, e capaz, e contra ele não pesa nenhuma acusação de abandono ou maus tratos, não se pode simplesmente, por um ato discricionário de uma avó ou de quem quer que seja, abolir o seu direito paterno. Isso não cabe em nenhuma cabeça. Por maior que fosse o amor da nova família à criança. Um acordo, nesses casos, tornaria a transição menos dolorosa para todas as partes envolvidas, sem necessidade de transformar um caso familiar em incidente diplomático internacional.

E entramos, então, nos aspectos legais e internacionais. A legislação brasileira sempre esteve a favor do pai americano, e somente os recursos protelatórios, totalmente descabidos e absurdos, avalizados pelo sobrenome ilustre da família, é que conduziram o caso para o terreno do Direito Internacional, que tem tratados muito definidos quanto ao assunto. Tratados de que o Brasil é signatário, não podendo, portanto, deixar de cumprir. Porque isso se constituiria em sequestro, simplesmente, sequestro de menor, agravado pelo fato de se realizar em pleno estado de direito e contra todas as evidências legais.

E, finalmente, não se pensou na própria criança. Se a Lei estava a favor do pai, por que não se tentou, antes de qualquer medida, o mais simples: um acordo, um acordo amigável, entre as duas famílias? Em benefício da criança. Que poderia, muito bem, conviver tanto com o pai americano quanto com a família brasileira, para benefício do menino, que teria o privilégio de conviver com duas culturas, duas línguas, dois países.

Mas, não: preferiu-se o confronto. Com o risco de, ao final, saírem todos perdendo, e deixando sequelas difíceis de serem cicatrizadas. E o pior: mesmo sabendo a família brasileira, de ilustres juristas, que seria uma causa perdida. Ou alguém duvida de que eles sabiam das condições legais de sua demanda? Claro que sabiam que só remotamente ganhariam a causa, muito remotamente.

E nessa luta absurda, envolveram-se elementos que não podiam nem deviam ser envolvidos, principalmente de parte dos Estados Unidos, quando seu próprio presidente foi instado a pressionar o governo brasileiro por uma solução que era eminentemente jurídica, e não política. Até mesmo um senador americano boicotou a aprovação de tratado internacional que beneficiaria o Brasil, entre outros países, por causa do menino.

E, ao final do caso, o fato de o governo americano fretar um jatinho para levar para casa o pai e a criança deixou bem clara a mensagem de que não confiava na Justiça brasileira, na sua visão, pusilânime, demorada e sujeita a mudanças. E isso é totalmente lamentável, em termos internacionais!

E a família brasileira, por sua vez, veio a público, também pressionando o Presidente da República que interviesse no caso, como se um presidente, num estado de direito, pudesse transformar-se em juiz de um caso cuja legislação é clara, tanto em termos nacionais quanto internacionais.

Até os argumentos de que é “tradição” uma criança ser criada pela avó materna, na falta da mãe, são falaciosos e inventados para dar apelo emocional ao caso e, com isso, conquistar a simpatia da imprensa e da opinião pública. E mais: dizer que a criança foi “vendida” em troca da aprovação de um tratado, por alguns milhões de dólares, é só um ato de desespero, que não deve ser levado em conta.

Portanto, um caso simples de lógica, de respeito à lei, de compreensão da vida, quase se transforma em incidente internacional. Se estivéssemos em outras épocas, seria até o caso de desencadear-se uma guerra entre dois países amigos, por uma questão de caráter puramente familiar. Não estou exagerando, pois a História, desde a guerra de Tróia, está cheia de exemplos em que muitas vidas foram perdidas em lutas fratricidas por encontrarem as nações o pretexto para a guerra em fatos corriqueiros da vida particular, transformados em “honra nacional”.

Se eu fosse o pai dessa criança, moveria mundos e fundos, lá dos Estados Unidos, para processar por perdas e danos ao menino a família brasileira, como uma lição para que nunca mais, no mundo, acontecesse um fato lamentável como esse, de tentativa de burlar leis nacionais e internacionais, além da própria lógica da vida, por motivos sentimentais ou por quaisquer outros motivos.

Fique, pois, o caso do menino Sean como uma lição, para todos, de como um ato aparentemente de “amor” pode transformar-se num incidente de proporções incontroláveis, por ser, ao verdade, ao fim e ao cabo, um ato de insensatez humana.

“Quando a cabeça não dá...”

dezembro 18, 2009

AS VIÚVAS DE FHC





Há uma “fábula” rodando por aí:




Um belo dia o príncipe se olhou no espelho mágico e perguntou:

- Diga-me, espelho meu, existe alguém mais Presidente, mais Inteligente, mais Competente, mais Príncipe do que eu? 

Respondeu o espelho:

- Sim: o Sapo!

Pois, é: o Sapo não tem diploma (a não ser o de Presidente), não é bonito, não é elegante, não fala inglês e se atrapalha com o português, não tem charme, tem um dedo a menos numa das mãos, mas...

É o cara! Um dos homens, hoje, mais influentes do planeta Terra. Cortejado por todos os poderosos. Admirado mundo afora. E tem 80% (eu disse oitenta!) de aprovação do povo brasileiro.

Também, pudera: começou a construir, agora pra valer, o Brasil do futuro. Tirou trinta milhões de pessoas da linha absoluta da pobreza. Livrou-nos do FMI. Estabilizou de vez a economia. Domou a inflação. Criou 10 milhões de novos empregos. Enfim, fez exatamente o contrário do que fizera antes o Príncipe, com sua elegância, com seus diplomas, com seu inglês fluente, com sua fala melíflua e seus modos de gente que comia três refeições por dia e estudava na USP.

No entanto, as viúvas do Príncipe continuam por aí, a carpir, com saudade, as várias recessões econômicas promovidas por ele, com o consequente extermínio de empregos, os apagões, a venda do patrimônio público a preço de bananas, enfim, todo aquele corolário neoliberal que todos conhecemos e que deixou o País quebrado e sem esperanças.

As viúvas espalham-se por aí, embora não sejam muitas. Fazem, no entanto, um barulho infernal, com seus lamentos e sua choradeira. Tentam ressuscitar seu Príncipe em políticos que rezem pela mesma cartilha, principalmente o atual ocupante do Palácio dos Bandeirantes, que é o seu atual preferido para ser o próximo Príncipe.

Dizem que as viúvas têm um partido – o PIG (Partido da Imprensa Golpista) – porque se alojam, principalmente, em redações de jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão. Daí, a aparente (e eu acho, na verdade, que não é tão aparente assim, é real) força desse grupo. Mas eu acho que as viúvas formam, na verdade, um bloco carnavalesco, um bloco de sujos. Um bloco de sujos barulhento. Que fala e escreve bobagens por aí, no intuito de emplacar a candidatura do já eleito, na opinião deles, governador de São Paulo.

Essas carpideiras todas não são inocentes, não. São perigosas, porque têm força na mídia e um poder imenso de comunicação. Por isso, todo cuidado é pouco com essas viúvas – as mesmas que nos deram os governos militares (lembram como a mídia da época apoiou o golpe de 64? – eu não esqueço, não); depois nos impingiram um tal de caçador de marajás (lembram como a mídia da época fez até trapaça para eleger o cara? – eu não esqueço, não); e finalmente nos brindaram com o exterminador de empregos, o glorioso FHC, pelo qual elas, as viúvas, vivem ainda em lamento profundo, esquecidas de que ele já morreu há tempos, embora um fantasma seu siga por aí a falar e a escrever bobagens, consultando de vez em quando o seu espelho mágico que lhe repete sempre, num mantra para ele desesperador: o Sapo, o Sapo, o Sapo!

Ah, as viúvas do FHC! É preciso temê-las! É preciso exorcizá-las! É preciso isolá-las nos cemitérios em que trabalham, mas isso é quase impossível. Deixemo-las carpir e não lhes demos ouvidos, portanto!

dezembro 12, 2009

LULA E A MERDA













O povo que votou – duas vezes – em Lula para Presidente, o povo que lhe dá, hoje, mais de 80% de aprovação, esse povo conhece bem o jeito dele, a franqueza dele. Porque é assim que esse povo fala. Palavrão, para esse povo, é fome, é miséria, é doença, é falta de esgoto, é morar onde não mora ninguém, como dizia um velho samba. Para esse povo, que vivia – e muitos ainda vivem – na merda, essa palavra não é palavrão, é convivência diária, pelo pouco que têm, pela comida ruim, pela rua esburacada, pelo córrego que transborda e leva tudo, quando tudo é quase nada, pela falta de condução.

Para esse povo, merda é dia a dia. E não choca a esse povo que seu Presidente diga o que eles estão cansados de viver – na merda.

Já para os ouvidos sensíveis de certos colunistas de jornal, de certa mídia que frequenta restaurantes franceses onde só o vinho custa dois anos de salário do pobre, para essa gente, que come caviar – que vai também virar a mesma merda que o arroz com feijão do pobre – para essa gente, o Presidente é grosso, é inconveniente, por trazer à baila um assunto que sempre esteve debaixo do tapete dos políticos corruptos que eles apoiam: saneamento básico.

O Brasil tem quase seis mil municípios, quase seis mil prefeitos e um número incalculável de vereadores espalhados por suas quase seis mil casas legislativas. A maioria absoluta desses municípios são pequenos, pequenos mas orgulhosos. Não exatamente dos prefeitos que escolhe o seu povo, ou que é obrigado a escolher, pelo sistema partidário atual. Ser prefeito de cidade pequena é, em geral, o melhor emprego do mundo: ganha-se bem, não se faz nada e tem-se prestígio local. E aquele pequeno poder que enche a cabeça dos que não nada têm na cabeça, a não ser a vontade de enriquecer.

Vá a qualquer cidade pequena e, por mais miserável que seja, procure a casa do prefeito: é, quase sempre, a mais bonita da cidade. E, quase sempre, o prefeito é fazendeiro ou pertence à chamada elite local. Pergunte por saneamento básico, isto é, serviço de água e esgoto. Quase sempre, a resposta será a mesma: esgoto? Pode até ter. Mas... é tratado? Em 99% por cento dos casos, pode ter certeza: tratamento de esgoto é coisa que ninguém nem sabe o que é.

Vou dar um exemplo extremo, em todos os sentidos: na Grande São Paulo, há uma cidade chamada Guarulhos. É um dos mais populosos municípios de São Paulo, com mais de um milhão e duzentos mil habitantes. Vá ao site da Prefeitura de Guarulhos – há todo tipo de informação. Procure saneamento, ou saneamento básico. Nada. Por quê? Porque, simplesmente, a grande cidade de Guarulhos não trata um só litro de seu esgoto, que é todo lançado no rio Tietê!

Prefeito que é prefeito não se preocupa com isso. Fazer esgoto e tratar esgoto é enterrar votos, como sempre se diz.

Saneamento básico, tratamento de esgoto, isso é condição fundamental de qualidade de vida, de saúde. Mas, não: eles, os prefeitos, preferem asfaltar ruas, construir pontes e viadutos, fazer obras que dêem dinheiro às empreiteiras e comissão para eles, para seus secretários, para seus seguidores políticos. E comprar ambulância, que é a única preocupação que eles têm com a saúde de seus munícipes, porque basta colocar o doente na ambulância e levá-lo para a capital.

Contratar empréstimos com o BNDES – o Banco Nacional de Desenvolvimento Social – para saneamento básico, quase sempre a fundo quase perdido, para o que basta vontade política e um pouco de preocupação social e um pouco, muito pouco, de visão de futuro, isso não lhes passa nunca pela cabeça. O povo? Ah, o povo que viva na merda, como sempre viveu.

Agora que o Lula escancarou essa realidade, com uma simples palavra – merda – que os idiotinhas das redações de uma certa imprensa que só pensa em um novo governo liberal que escancare as burras dos governos para seus donos, as elites que comandam os impérios midiáticos do Brasil, pois esses idiotinhas dizem que Presidente falar palavrão é feio, é inconveniente, é sinal de que não tem preparo para governar o País, esquecidos todos eles, claro, da merda que seus preferidos políticos sempre fizeram no Brasil, em termos de administração pública e de safadeza com o povo.

Cagam – literalmente – esses idiotinhas as regras para um tipo de governo que não interessa ao povo, porque essa gente que aqui esteve antes do Lula, com seu linguajar empoado, com seu jeito empavonado, com seus diplomas emoldurados, nada fez para tirar o povo da merda, como Lula está fazendo.

Então, é preferível, sim, um Presidente que fale merda do que presidentes que sempre fizeram merda!

dezembro 08, 2009

"DESVIOS DE CONDUTA"







O título acima está entre aspas, porque não é meu: é de um articulista de O Estado de São Paulo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), JOSÉ DE SOUZA MARTINS.

No domingo, 6 de dezembro deste ano de 2009, publicou ele no caderno “Aliás”, um artigo em que afirma, já no subtítulo da matéria, que “violência de bandidos e polícia escancara uma sociedade em que o desenvolvimento social ficou muito aquém do econômico”.

Só por aí já se pode ter alguma idéia do discurso do ilustre professor. Listando uma série de crimes, como a da “jovem vendedora, de 21 anos de idade, moradora no morro de São Carlos, no centro do Rio, (...) detida e sequestrada, roubada (...), objeto de tentativa de extorsão (...), ferida com um tiro na boca e jogada de penhasco na Floresta da Tijuca, por um cabo e um soldado da Polícia Militar”; passando pelo caso da favela Naval em São Paulo, em que “um sargento, dois cabos e seis soldados (...)” foram filmados “na prática de violência contra a população pobre e indefesa” até o crime do menor (na época) Champinha, que sequestrou, torturou e matou um jovem casal de classe média que acampava num sítio abandonado de Embu-Guaçu, grande São Paulo, José de Souza Martins conclui que “esses episódios nos falam do profundo estado de anomia da sociedade brasileira, de desencontro entre valores e condutas, pesada herança histórica de uma sociedade em que o desenvolvimento social ficou muito aquém do desenvolvimento econômico, a sociedade de uma modernidade fictícia, sustentada pelos arcaísmos de nosso atraso crônico”.

Belas palavras, à primeira vista: somos bárbaros porque somos pobres.

Será?

Ora, todos sabemos que a sociedade brasileira não é, em primeiro lugar, anômica, ou seja, desregulada, sem leis ou regulamentos sociais. Muito ao contrário, temos até leis demais. Apenas ou não são cumpridas, ou são muito complacentes em relação a alguns crimes, principalmente os que envolvem assassínios (essa história de progressão de pena para crimes de morte é um absurdo jurídico).

O problema está nos argumentos seguintes – desencontro de valores e condutas, herança histórica, desenvolvimento social aquém do econômico, modernidade fictícia, arcaísmos e atraso crônico.

Vejamos: se tomarmos um país de primeiro mundo, como os Estados Unidos, podemos listar uma série de crimes bárbaros, sendo que os piores e mais grotescos são, primeiro, os assassínios em série (serial killers) e as chacinas promovidas por jovens de classe média (nos padrões americanos, o que não é pouca coisa) que, de vez em quando, enlouquecidos por doutrinas esdrúxulas e armados até os dentes (por uma sociedade complacente quanto ao uso de armas) matam colegas e professores de uma tranquila escola de alguma mais do que tranquila cidade do interior. Em seguida, poderíamos citar a violência policial (também comum, principalmente contra negros, latinos e pobres), ou a barbárie dos soldados surpreendidos a torturar civis no Iraque.

Não podíamos usar exatamente as mesmas palavras de conclusão do ilustre professor?

Vamos à civilizada Europa. Podemos listar, também, uma série de crimes bárbaros, tais como o do holandês a manter em cárcere privado, por quase trinta anos, a filha a quem abusava e com quem teve vários filhos, ou o alemão que atraiu e comeu (literalmente, pela boca!) a outro conterrâneo, ou ainda a polícia inglesa (tão fria e tão profissional!) a assassinar barbaramente um rapaz (brasileiro!), no vagão de um metrô, por confundi-lo (ou supostamente confundi-lo) com um terrorista, sem lhe dar nenhuma oportunidade de explicar ou sem que ele esboçasse qualquer reação. E também poderíamos citar os hooligans ou a violência policial de quase todos os países europeus a espancar e expulsar os imigrantes, por preconceito ou por motivos econômicos.

Não podíamos usar exatamente as mesmas palavras de conclusão do ilustre professor?

Então, será que ser pobre é sinônimo de ser violento? Uma sociedade pobre é uma sociedade violenta?

A pobreza pode, sim, justificar revoltas, sublevações, protestos e tudo o que advém desse tipo de atitude de populações carentes, em confronto com forças policiais repressoras. “Violência” (colocada entre todas as aspas possíveis) de cunho social ou, às vezes, até de base política. Mas, nunca, em absoluto, nem mais nem menos crimes hediondos individualizados, isto é, cometidos por pessoas sem formação ética, poderiam ser atribuídos à condição social desses indivíduos, já que crimes bárbaros acontecem em todas as classes sociais, desde a jovem adolescente a permitir friamente a morte dos pais, até a clássica violência contra mulheres e crianças dentro de lares perfeitamente constituídos, tanto na favela quanto no condomínio de luxo.

Não somos uma sociedade violenta porque somos pobres ou porque nosso modelo de desenvolvimento privilegia o econômico e não o social. Aliás, esse modelo, senhor professor, é o que permaneceu vigindo desde os anos mil e quinhentos até hoje. E mais, senhor professor, é modelo importado de praticamente todos os demais países. Além disso, está sendo quebrado por políticas sociais que nunca aconteceram antes, mesmo que caiamos no bordão do atual presidente da República.

Temos uma sociedade violenta, senhor professor, por mil e uma causas. E, talvez, entre essas causas possamos até incluir a miserabilidade de nosso povo. Mas não com exclusividade. O pobre não é mais violento do que o rico, em termos de crimes individuais como os que o senhor citou. E se cairmos no problema do tráfico, iremos bater, necessariamente, à porta das classes consumidoras que, em absoluta maioria, localiza-se nos apartamentos elegantes e nas mansões de milhões de dólares de condomínios de luxo. Enquanto o rico consome a cocaína (felizmente batizada) em carreirinhas distribuídas em pratos de prata, separadas pelo acinte do chavão de um cartão de crédito internacional, os miseráveis se consomem com a cocaína vagabunda do crack que o vicia com poucas doses e mata em pouco tempo.

Portanto, senhor professor acadêmico da USP, não sei se os seus argumentos são ilógicos e escamoteadores da realidade por simplismo de análise ou porque há um viés político nas suas entrelinhas. De qualquer maneira, começo a pensar que há, sim, muitas pessoas que pensam certo, mas escrevem por linhas tortas, porque fazem parte da parcela de vinte por cento da população brasileira que não concorda em que temos um presidente, pela primeira vez na história, que não saiu dos quadros de suas pretensas elites – pensantes ou econômicas.

dezembro 03, 2009

PÉ EM DEUS E FÉ NA GRANA

Tenho, sim, ojeriza a tudo que é metafísico. A tudo que é relacionado a “espírito”, “fé”, “religião”. Não sou daqueles que pensam que religião é o ópio do povo: acho que religião é muito mais que isso, é uma das invenções humanas mais perversas e inúteis. Gasta-se um tempo imenso em tentar adular aos deuses (estejam eles no plural ou no singular, o sentido é o mesmo) e deixa-se de viver outro tanto. Graças à religião, graças ao culto aos deuses, a humanidade tem construído e pregado aberrações, como a exclusão de pessoas, tribos, grupos, nações inteiras, somente por não terem a mesma fé. Guerras e preconceitos, chacinas e ódios sempre foram estimulados sutilmente por todas as crenças deístas. Pregam o amor, mas instilam o ódio. Porque são excludentes, por princípio, já que o deus a quem devotam sua fé somente salvará os que o seguem.

Nem por isso, por meu ateísmo, vou defender a extinção pura e simples dos religiosos, como esses costumam tentar fazer uns com os outros, quando têm o poder para isso, como a igreja perseguiu judeus e bruxas durante a inquisição. E não só os perseguiu, mas torturou e matou a quantos se opunham a seus princípios. E hoje fazem o mesmo os seguidores do Corão, em relação aos demais povos. E continuarão fazendo, enquanto acreditarem que seu deus é o único e precisa de sangue humano para continuar a existir no imaginário da humanidade. Não, não vou defender nem mesmo a união de ateus contra o estigma e a estupidez da crença deísta. Porque não acho que se possa substituir uma barbárie pela outra, e é isso que sempre faz o homem quando de posse de um conhecimento ou de uma crença que ele julga absoluta. E o ateísmo não é nem pode ser considerado uma crença: ateísmo não é o contrário de crença; ateísmo é a ausência da crença em deus ou em deuses, por absoluta desnecessidade de cultuá-los. E os ateus não são bons nem maus, são apenas homens que não precisam de metafísicas.

Mas, não posso concordar, em nome de uma pretensa liberdade de culto, que as pessoas não paguem por sua fé. Dar isenção fiscal a igrejas, templos ou quaisquer outros lugares de culto, como sinal de liberdade, é aberração. Se as pessoas querem seguir um culto e pagar por ele, que o façam dentro da lei, como todos os demais: paguem também os impostos devidos!

A Constituição Brasileira deu isenção fiscal às igrejas e cultos, mas esse dispositivo entra em contradição e é absolutamente incongruente com o princípio da igualdade de todos perante a Lei.

E mais: ao dar isenção fiscal aos cultos, abriu a brecha para a existência de milhares de falcatruas, de falsos templos, de picaretas de todos os tipos, que se aproveitam do dispositivo constitucional para ludibriar a fé alheia, enriquecendo ou construindo verdadeiros impérios empresariais à custa de donativos e de dízimos cobrados dos pobres imbecis que buscam algum tipo de pretenso alívio de seus sofrimentos na pregação absurda de falsos pastores e bispos que só querem, mesmo, o seu próprio bem estar.

Repito: que haja liberdade de culto (e também liberdade para pessoas como eu que falam contra a idéia de deus), mas que os crentes registrem suas doações e as igrejas paguem todos os impostos devidos, como todos o fazem.

Conceder privilégios a quem quer que seja não é democrático, não é republicano, não é lógico. Mas, estamos todos atados pelo lobby da fé, que inseriu os dispositivos legais e os mantém.

Para ilustrar minhas palavras, reproduzo o texto abaixo, publicado na Folha de São Paulo em 2 de dezembro de 2009, com uma ressalva: esses picaretas não têm exatamente o “respaldo do governo” – têm o respaldo de qualquer governo, porque, enquanto não se mudar a Constituição, nada se pode fazer:


Piratas da fé

FERNANDO DE BARROS E SILVA


É muito fácil fundar uma igreja no Brasil. No último domingo, esta Folha publicou reportagem em que relatava como três de seus profissionais criaram a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, com custo de R$ 418.

Ninguém seja maluco de participar de igreja de jornalista, mas, ironias à parte, com a sua nova doutrina, Hélio Schwartsman e seus dois "bispos" puderam fazer operações financeiras isentas de IR e IOF.

Pela lei, como qualquer outra, a Igreja Heliocêntrica está dispensada de pagar IPTU (imóveis urbanos), ITR (imóveis rurais), IPVA (veículos) e ISS (serviços). A Constituição concedeu imunidade tributária às igrejas como forma de proteger a liberdade de culto. Na prática, esse princípio vem sendo sistematicamente desvirtuado.

Um dos efeitos históricos dessa distorção, para falar do que importa, foi a consolidação de um novo grupo de milionários da fé, basicamente composto por pastores-empresários e pastores-políticos. Eles se valem do dinheiro obtido por meio da religião (o dízimo, não tributado) para alavancar atividades mercantis que deveriam estar sujeitas ao recolhimento de impostos.Não há como decidir por princípio se uma igreja é "séria" ou "vigarista". Aos olhos do fiel, a sua igreja será sempre legítima. Para um ateu, todas têm o dom de iludir.

A questão aqui é outra: o pastor pode pregar para (ou enganar) seus fiéis à vontade; só não pode é usar a Bíblia para ludibriar a Constituição. Igrejas não podem ser biombo de práticas comerciais nem a fé pode ser pretexto para atos ilícitos.

Quando alguém extrai lucro de um estacionamento ao lado de um templo e não paga IPTU por isso, temos aí um pequeno delito. Quando o dinheiro dos fiéis está na origem de um conglomerado empresarial que tem como joia da coroa uma TV (concessão pública) avaliada em R$ 2 bilhões, então o problema é bem mais sério. E pior fica quando esses piratas do Senhor se tornam figuras respeitáveis da República com o respaldo do governo.