dezembro 08, 2009

"DESVIOS DE CONDUTA"







O título acima está entre aspas, porque não é meu: é de um articulista de O Estado de São Paulo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), JOSÉ DE SOUZA MARTINS.

No domingo, 6 de dezembro deste ano de 2009, publicou ele no caderno “Aliás”, um artigo em que afirma, já no subtítulo da matéria, que “violência de bandidos e polícia escancara uma sociedade em que o desenvolvimento social ficou muito aquém do econômico”.

Só por aí já se pode ter alguma idéia do discurso do ilustre professor. Listando uma série de crimes, como a da “jovem vendedora, de 21 anos de idade, moradora no morro de São Carlos, no centro do Rio, (...) detida e sequestrada, roubada (...), objeto de tentativa de extorsão (...), ferida com um tiro na boca e jogada de penhasco na Floresta da Tijuca, por um cabo e um soldado da Polícia Militar”; passando pelo caso da favela Naval em São Paulo, em que “um sargento, dois cabos e seis soldados (...)” foram filmados “na prática de violência contra a população pobre e indefesa” até o crime do menor (na época) Champinha, que sequestrou, torturou e matou um jovem casal de classe média que acampava num sítio abandonado de Embu-Guaçu, grande São Paulo, José de Souza Martins conclui que “esses episódios nos falam do profundo estado de anomia da sociedade brasileira, de desencontro entre valores e condutas, pesada herança histórica de uma sociedade em que o desenvolvimento social ficou muito aquém do desenvolvimento econômico, a sociedade de uma modernidade fictícia, sustentada pelos arcaísmos de nosso atraso crônico”.

Belas palavras, à primeira vista: somos bárbaros porque somos pobres.

Será?

Ora, todos sabemos que a sociedade brasileira não é, em primeiro lugar, anômica, ou seja, desregulada, sem leis ou regulamentos sociais. Muito ao contrário, temos até leis demais. Apenas ou não são cumpridas, ou são muito complacentes em relação a alguns crimes, principalmente os que envolvem assassínios (essa história de progressão de pena para crimes de morte é um absurdo jurídico).

O problema está nos argumentos seguintes – desencontro de valores e condutas, herança histórica, desenvolvimento social aquém do econômico, modernidade fictícia, arcaísmos e atraso crônico.

Vejamos: se tomarmos um país de primeiro mundo, como os Estados Unidos, podemos listar uma série de crimes bárbaros, sendo que os piores e mais grotescos são, primeiro, os assassínios em série (serial killers) e as chacinas promovidas por jovens de classe média (nos padrões americanos, o que não é pouca coisa) que, de vez em quando, enlouquecidos por doutrinas esdrúxulas e armados até os dentes (por uma sociedade complacente quanto ao uso de armas) matam colegas e professores de uma tranquila escola de alguma mais do que tranquila cidade do interior. Em seguida, poderíamos citar a violência policial (também comum, principalmente contra negros, latinos e pobres), ou a barbárie dos soldados surpreendidos a torturar civis no Iraque.

Não podíamos usar exatamente as mesmas palavras de conclusão do ilustre professor?

Vamos à civilizada Europa. Podemos listar, também, uma série de crimes bárbaros, tais como o do holandês a manter em cárcere privado, por quase trinta anos, a filha a quem abusava e com quem teve vários filhos, ou o alemão que atraiu e comeu (literalmente, pela boca!) a outro conterrâneo, ou ainda a polícia inglesa (tão fria e tão profissional!) a assassinar barbaramente um rapaz (brasileiro!), no vagão de um metrô, por confundi-lo (ou supostamente confundi-lo) com um terrorista, sem lhe dar nenhuma oportunidade de explicar ou sem que ele esboçasse qualquer reação. E também poderíamos citar os hooligans ou a violência policial de quase todos os países europeus a espancar e expulsar os imigrantes, por preconceito ou por motivos econômicos.

Não podíamos usar exatamente as mesmas palavras de conclusão do ilustre professor?

Então, será que ser pobre é sinônimo de ser violento? Uma sociedade pobre é uma sociedade violenta?

A pobreza pode, sim, justificar revoltas, sublevações, protestos e tudo o que advém desse tipo de atitude de populações carentes, em confronto com forças policiais repressoras. “Violência” (colocada entre todas as aspas possíveis) de cunho social ou, às vezes, até de base política. Mas, nunca, em absoluto, nem mais nem menos crimes hediondos individualizados, isto é, cometidos por pessoas sem formação ética, poderiam ser atribuídos à condição social desses indivíduos, já que crimes bárbaros acontecem em todas as classes sociais, desde a jovem adolescente a permitir friamente a morte dos pais, até a clássica violência contra mulheres e crianças dentro de lares perfeitamente constituídos, tanto na favela quanto no condomínio de luxo.

Não somos uma sociedade violenta porque somos pobres ou porque nosso modelo de desenvolvimento privilegia o econômico e não o social. Aliás, esse modelo, senhor professor, é o que permaneceu vigindo desde os anos mil e quinhentos até hoje. E mais, senhor professor, é modelo importado de praticamente todos os demais países. Além disso, está sendo quebrado por políticas sociais que nunca aconteceram antes, mesmo que caiamos no bordão do atual presidente da República.

Temos uma sociedade violenta, senhor professor, por mil e uma causas. E, talvez, entre essas causas possamos até incluir a miserabilidade de nosso povo. Mas não com exclusividade. O pobre não é mais violento do que o rico, em termos de crimes individuais como os que o senhor citou. E se cairmos no problema do tráfico, iremos bater, necessariamente, à porta das classes consumidoras que, em absoluta maioria, localiza-se nos apartamentos elegantes e nas mansões de milhões de dólares de condomínios de luxo. Enquanto o rico consome a cocaína (felizmente batizada) em carreirinhas distribuídas em pratos de prata, separadas pelo acinte do chavão de um cartão de crédito internacional, os miseráveis se consomem com a cocaína vagabunda do crack que o vicia com poucas doses e mata em pouco tempo.

Portanto, senhor professor acadêmico da USP, não sei se os seus argumentos são ilógicos e escamoteadores da realidade por simplismo de análise ou porque há um viés político nas suas entrelinhas. De qualquer maneira, começo a pensar que há, sim, muitas pessoas que pensam certo, mas escrevem por linhas tortas, porque fazem parte da parcela de vinte por cento da população brasileira que não concorda em que temos um presidente, pela primeira vez na história, que não saiu dos quadros de suas pretensas elites – pensantes ou econômicas.

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