novembro 28, 2021

QUANDO A BREGUICE É ESTRUTURAL

  


Dizemos que algo é estrutural, quando está arraigada numa estrutura, numa sociedade, por exemplo. Mas, posso tomar esprestado esse termo para dizer que há coisas que estão estruturalmente arraigadas num indivíduo. A breguice, por exemplo. Que é irmã gêmea da estupidez, da falta de cultura, de conhecimentos mínimos de ciências e de humanidades; da falta de respeito para com a sociedade em que vive.

Vamos dar nome ao boi, ou melhor, à besta: estou falando do atual presidente da república desse pobre (em todos os sentidos) país cujo povo, ainda mais pobre (agora no sentido de miserabilidade), o elegeu: Jair Messias Bolsonaro.

Sua breguice estrutural começa com o fato de que, como militar expulso do exército, por insubordinação, continuou militar por mais de trinta anos. O exército chutou sua bunda suja, mas ele não o tirou de dentro de si, numa espécie de fervor e amor que têm os prisioneiros que enlouquecem por seus carcereiros ou por seus torturadores (aliás, ele parece adorar torturadores e déspotas). Depois, como político, elegeu-se deputado e, por quase trinta anos, frequentou o fundão mais profundo do centrão do Congresso, onde nunca se notabilizou por sequer uma lei aprovada, um discurso elogiado. Ali, enriqueceu através da mais nobre e brega atividade congressual, juntamente com seus filhos: a famosa “rachadinha”, ou seja, surrupiando parte dos salários de seus funcionários de gabinete. Um crime que deixa poucos rastros, já que os contratados raramente denunciam, porque temem perder a esmola que lhes sobra ou temem o poder do parlamentar, já que a corda sempre arrebenta pelo lado mais fraco. Suas mais destacadas atuações parlamentares consistiram em afirmar para uma colega que não a estupraria porque era muito feia e por levar uma cusparada na cara, de outro deputado a quem ofendera, por ser homossexual. Suas posições ideológicas, aliás, não passam dessa breguice estúpida de preconceitos, homofobia, misoginia e defesa do uso de armas por todos os cidadãos, além de uma religiosidade ainda mais brega e absurda, já que “ama” o estado de Israel, mas se diz cristão, num fundamentalismo que nem ele mesmo sabe que tem, ou sequer saiba o que seja.

Inaugurou seu governo, assinando medidas, leis, decretos etc. com uma caneta bic. E pior: fazendo questão de mostrar que usava tal tipo de instrumento de escrita, como se isso fosse o suprassumo de um “populismo” carunchado que ele também não sabe bem o que é. Nada mais brega! Por mais que os atos cerimoniais do poder sejam muitas vezes de uma grande breguice, há no entanto algo de simbólico nesses atos. Pode-se, por exemplo, tecer mil críticas à chamada lei áurea, que libertou os escravizados sem lhes dar qualquer tipo de proteção ou de perspectiva de vida, mas imaginem a princesa Isabel assinando essa lei com uma caneta que não fosse de ouro. Não seria a lei áurea! Portanto, quando o idiota que está no exercício da presidência assina atos de governo com uma caneta vagabunda, ele está indicando claramente que seu governo é um governo vagabundo e brega, que não tem respeito pelo próprio cargo, assim como não tem respeito pelo povo que ele governa. E foi isso que ele sinalizou desde o início: que seria um governo brega, que seria um governo vagabundo.

Depois de mais de 600 mil mortos pela pandemia, sem que esse governo vagabundo tivesse feito o seu dever de agir com competência, para comprar vacinas, de incentivar o povo a se vacinar, de assumir a liderança no combate à covid-19, não resta mais nenhuma dúvida sobre o quanto de estupidez asinina cabe na cabeça de tal indivíduo. Aquilo que começou como um ato de breguice estrutural se transformou em atos não só de incompetência, mas também de genocídio, já que se pode imputar a esse canalha a morte de centenas de milhares de brasileiros, vidas que poderiam ter sido poupadas, se medidas preventivas tivessem sido tomadas a seu tempo e de maneira vigorosa.

E estamos falando apenas de um dos muitos aspectos absurdos de seu desgoverno, a saúde pública. Ainda há que se falar em: desmonte da educação, leniência para com o desmatamento e para com as atividades de garimpo, desprezo à pesquisa científica, descontrole da venda de armas, aumento das tachas de homicídio, feminicídio e de chacinas pelas polícias militares, falta de medidas para melhoria do saneamento básico das cidades, polícia externa subserviente a interesses escusos etc. etc. etc. Enfim, a lista de problemas causados por ser escroto e estúpido é longa. O fundo do poço tem um alçapão e por ele estamos despencando num abismo, do qual será complicado e demorado sair.

novembro 22, 2021

COLABORACIONISTAS

O TEXTO ABAIXO REFLETE O QUE EU PENSO, POR ISSO AÍ ESTÁ PARA A DEGUSTAÇÃO DOS LEITORES DESTE BLOG, ASSIM COMO UMA FORMA DE MANTÊ-LO VIVO NA INTERNET, MUITO ALÉM DAS REDES SOCIAIS, NO CASO, DO FACEBOOK, DE ONDE O RETIREI.



Ao final da Segunda Guerra, com o avanço das tropas aliadas, Paris foi libertada. Explosão de alegria, comemoração e, como seria mais do que previsível, com muitos «acertos de contas» com os franceses que colaboraram com o exército de ocupação. E não foram poucos. Sob argumentos diversos muitos franceses seguiram suas vidas quase que normalmente apesar de toda a destruição civilizacional que os nazistas impunham. Não foram poucas as fracesas que, alegremente, namoraram soldados alemães e se deitaram com oficiais nazistas. Muitos comerciantes enriqueceram como fornecedores dos inimigos, muitos funcionários públicos, principalmente no judiciário, progrediram em suas carreiras por fazer o que deles esperavam os fascistas.

Libertos do fascismo alemão milhares de «colabôs» foram expostos à execração pública, e vários deles foram forçados a humilhantes desfiles pelas ruas em centenas de cidades francesas, cabeças raspadas, mulambentos.

Viveremos algo semelhante no Brasil quanto terminar a ocupação bolsonarista dos espaços públicos e institucionais?

Pensando sobre isso hoje topei com o texto do Márcio Sotelo Felippe sobre as similitudes entre a França ocupada pelos nazistas e o Brasil ocupado pela burrice, pela crueldade e pelo mau-caratismo bolsonarista.



Colaboracionistas


"Em um artigo publicado em 1944, A república do silêncio, Sartre escreveu que os franceses nunca foram tão livres quanto no tempo da ocupação alemã. Um chocante e brilhante paradoxo que só a grande Filosofia, como exercício de pensar fora do senso comum, é capaz de produzir. Por que os franceses eram livres se todos os direitos haviam sido aniquilados pelos alemães e não havia qualquer liberdade de expressão? Como se podia ser livre sob a cerrada opressão do invasor que fiscalizava os gestos mais triviais do cotidiano? Porque, dizia Sartre, cada gesto era um compromisso. A resistência significava uma escolha e, pois, um exercício de liberdade. Significava não renunciar à construção de sua própria existência quando os invasores queriam moldá-la, reduzindo-a a objeto passivo e sem forma.

Em linguagem retórica e poética Rosa de Luxemburgo disse algo semelhante: quem não se movimenta não percebe as correntes que o aprisionam.

Sartre era existencialista: a existência precede a essência. Isto significa que não há algo anterior à existência que impeça um ser humano de tomar livremente as decisões que construirão o seu futuro. Isto dá ao humano a plena imputabilidade pelos seus atos. O que ele faz da sua existência é culpa ou mérito exclusivamente seu. O que ela é hoje resulta de decisões que tomou no passado, e o que será resultará das decisões que toma no presente.

A experiência francesa durante a ocupação alemã guarda certa similitude com o Brasil de hoje. Na França parte da sociedade (muito maior do que os franceses gostam de admitir) foi complacente ou colaborou com o invasor que massacrava seu povo e aniquilava os mais elementares direitos dos franceses. Hoje, parte da sociedade brasileira assiste inerte, é complacente, apoia ou apoiou usurpadores que vão reduzindo a pó o pouco de direitos e garantias de um povo já miserável.

Na França colaborava-se por ser fascista ou filofascista. Por egoísmo social. Por ressentimento. Por ódio de classe. Para pequenas vinganças privadas, para atingir um inimigo pessoal. Colaborava-se por ausência de qualquer sentimento de solidariedade social. A colaboração com o invasor desvelava a mais baixa extração moral. Quanto a nós, tomo como paradigma uma cena do cotidiano que presenciei dia desses. Duas mulheres ao meu lado conversavam. Uma disse que seu filho de 13 anos era fã do Bolsonaro. A outra, algo espantada, faz uma crítica sutil, perguntando se ela não conversava com o filho sobre política. A resposta: “acho bonito que meu filho seja politizado nessa idade”. Com isto, quis dizer que não importava de que modo seu filho estava precocemente se politizando.

Pode-se razoavelmente supor que ela, mulher, ignore que Bolsonaro disse que há mulheres que merecem ser estupradas? Que saudou, diante de todo país, em rede nacional de televisão, o mais célebre torturador da ditadura militar? Que declarou que prefere o filho morto se ele for homossexual? Como ignorar isso tudo é altamente improvável, porque seria supor que tal mulher vive em uma bolha impenetrável em plena era das redes sociais, podemos concluir, com Sartre, que escolheu o sórdido para si e para seu filho. O que resultará dessa escolha não poderá ser imputado a Deus, ao destino, aos fatos da natureza ou a qualquer fórmula vaga e estúpida do tipo “a vida é assim”, mas a ela mesma e a seus pares brancos de classe média que tem atitudes semelhantes.

Do mesmo modo como a parcela colaboracionista da sociedade francesa escolheu a opressão do invasor estrangeiro, parcela da sociedade brasileira escolheu o retrocesso, o obscurantismo e a selvageria.

Foi em massa às ruas em nome do combate à corrupção apoiando um processo político liderado por notórios corruptos.

Regozija-se com o câncer e com o AVC do adversário politico, demonstrando completa ausência de qualquer traço de fraternidade e respeito ao próximo.

Suas agruras e dificuldades econômicas e sociais transformam-se em ódio justamente contra os excluídos e em apoio às ricas oligarquias que controlam a vida política do país (das quais julgam-se espelhos), a fórmula clássica do fascismo.

Permanece indiferente, omissa ou dá franco apoio ao aniquilamento de direitos, ao fim, na prática, da aposentadoria para milhões de brasileiros, à eliminação dos direitos trabalhistas, à entrega do patrimônio nacional a grandes empresas estrangeiras.

Seu ódio transforma em esgoto as redes sociais.

Não há como prever o que acontecerá a esta sociedade. Uma convulsão social poderá desalojar os usurpadores do poder, ou poderemos seguir para o cadafalso como povo. A História sempre é prenhe de surpresas. O que é certo, no entanto, tomando a frase de Sartre, é que somente poderão dizer no futuro que foram livres, no Brasil pós-golpe de 2016, os que agora estão se comprometendo e resistindo. É uma trágica liberdade de tempos sombrios, mas se nos foi dado viver neste tempo, que vivamos com a dignidade que somente os seres livres podem ostentar.

Hoje são livres os que resistem.""

Por Marcio Sotelo Felippe (pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.)

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