fevereiro 22, 2022

CATÁSTROFE ANUNCIADA

 

(Petrópolis - antes e depois)


Os meios de comunicação chamam de “tragédia”. Maculam o significado nobre da palavra, termo grego que nos remete às origens do teatro, de cujo âmbito não devia ser retirado para as catástrofes provocadas por forças da natureza e não pela ação do homem contra o homem, nos palcos imemoriais da arte teatral.

Por isso, prefiro a palavra catástrofe ou outras similares, como calamidade, desastre, hecatombe etc. Mas não é o polêmico uso do léxico que eu quero tratar neste texto. Que cada um chame como quiser.

Falemos de Petrópolis, a cidade imperial; a cidade que é tão imperial, que até hoje paga aos descendentes do seu ramo da “família real”, este sim, um polêmico imposto de transação imobiliária, chamado “laudêmio”. E devem estar coçando os dedos os descendentes de Dom Pedro, ao imaginarem que, depois da tempestade que destruiu a cidade, haverá uma quantidade muito grande de petropolitanos decididos a vender seus imóveis, o que deverá aumentar muito os ganhos da “família imperial”.

Feita essa devida provocação, vamos à catástrofe anunciada.

Sabe-se, desde o século XIX, que a bela cidade construída nos altos Serra dos Órgãos está sujeita a chuvas intensas e que seu território acidentado tem centenas de áreas de risco de deslizamento e desabamento. Portanto, o crescimento inevitável do município teria de ser monitorado e controlado de forma rigorosa pelo poder público, em conformidade com as condições do terreno. No entanto, nesses cento e tantos anos, nada se fez para que a urbanização seguisse critérios minimamente lógicos e seguros. Como, aliás, na maioria das cidades brasileiras. Nossos governantes odeiam o futuro; por isso, odeiam planejamento.

Podemos imaginar a seguinte provável história (que deve ter-se repetido em milhares de outros municípios): alguém resolve demarcar uma área, desmatá-la, loteá-la e vendê-la para os desesperados e incautos necessitados de moradia. Naturalmente, um processo “simples” de grilagem, devidamente apoiado ou incentivado por alguma “autoridade” – um prefeito, um vereador, um “coronel’, um juiz de direito, um oficial graduado ou político poderoso. Como o desmatador e loteador vai ganhar seu dinheirinho para enganar os trouxas ao afirmar e jurar e “provar” que o local é seguro e devidamente “regularizado”, também as “autoridades’ competentes ganharão – e bem! – para fechar os olhos e “deixar rolar” as irregularidades, em conluio claro com os devidos órgãos de fiscalização.

Meus amigos e caros leitores, ninguém constrói seu barraco, sua casinha, seu “quarto e cozinha” em área de risco porque “encontrou” aquele lugar para isso: os pobres diabos são levados a comprar o terreno (“baratinho, baratinho”) pelos espertalhões de plantão. Os “doutores” sabichões lucram na venda não só do terreno devidamente demarcado e “limpo”, mas também com o material de construção, com mão de obra, tudo muito “baratinho”, em “suaves” prestações mensais, e tudo, tudo “regularizado” com promessas de escrituras ou com escrituras falsas. E isso é uma bola de neve: de meia dúzia de barracos, logo haverá vinte e trinta e centenas. Uma verdadeira cidade se ergue em poucos anos, com toda a “infraestrutura” possível. E ali há centenas de eleitores, para os quais é preciso acenar, com promessas verdadeiras ou falsas de melhorias, que vão chegando, sim, aos poucos, e a “comunidade” está constituída, é forte, elege e reelege os políticos. E quando há alguma calamidade, lá estão eles, os políticos, prontos a “ajudar, a “prestar solidariedade”, a dizer que a natureza é assim mesmo, que logo vão fazer obras de contenção e obras disso e daquilo. E às vezes fazem, mesmo, obras que dão prestígio, e dão poder e os enriquecem, com os superfaturamentos de sempre. E quase sempre obras poucas e muitas vezes inúteis.

Os anos passam, os eventos climáticos, que antes eram eventuais, se tornam não apenas constantes, mas principalmente mais violentos (os meteorologistas não se cansam de avisar para o tal “aquecimento global”, que a maioria das autoridades prefere ignorar ou desdenhar), até que, um dia, a coisa desanda: uma grande tempestade tropical ou subtropical (seja lá o nome que se lhe dê) provoca uma catástrofe com centenas de mortos. Exatamente como se havia previsto há anos, em documentos arquivados no fundo das secretarias de obras, ignorados e desdenhados por inúmeros gestores.

Então, todos choram e lamentam. Autoridades dão entrevistas. A mídia estende por horas e horas a cobertura do evento, conta os mortos, individualiza os sofrimentos, narra histórias, filma e mostra para o mundo todo a catástrofe, a destruição, as consequências; mobiliza a sociedade para a ajuda aos desabrigados; discute causas e obtém promessas de ajuda das autoridades de plantão. Mas... nem a mídia nem as “autoridades responsáveis” nunca vão atrás dos verdadeiros culpados: os famigerados “grileiros” e toda a corja de canalhas escondidos sob o manto da - muita! - grana que ganharam com a desgraça daqueles milhares de seres humanos, que choram a perda de seus bens, de seus familiares, de sua vida.

E mais: passado o choque do momento, a vida volta ao “normal”, as pessoas tentam reconstruir dos monturos e do fundo da lama e do sofrimento as suas vidas, a mídia esquece, todo mundo esquece. Não os que foram diretamente atingidos até mesmo em sua dignidade pela catástrofe anunciada. Mas, esses, ora, que se virem, que vão chorar na cama, que é lugar quente. Ninguém mais se preocupa com eles, mesmo que continuem brigando por anos a fio com o poder público, mesmo que continuem correndo atrás de seus direitos, de sua dignidade, de sua vida. Que aguardem, depois da reconstrução – se e quando houver –, uma nova catástrofe devidamente anunciada! E novamente chamada de “tragédia”. A tragédia humana que não está nos eventos meteorológicos e naturais, mas na cara de pau de nossos governantes.