(Salvador Dalí)
Esse vai ser um longo, longuíssimo artigo. Porque
pretende cobrir 52 anos de história - surreal, se posso usar esse termo - de
nosso País. E mais: é um longo artigo que expressa - e devia ser inútil dizer
isso - a opinião estritamente pessoal do seu autor. Não há fontes, não há
citações, não há outras opiniões, apenas a do autor.
Tudo começa nos anos 60. Presidente: Juscelino Kubistchek.
Construção de Brasília. Mas, mais importante que a construção da nova capital -
NOVACAP, na mídia da época - é o momento de liberdade que vive o País. Um
presidente eleito que sofre um golpe antes de sua posse e anistia os golpistas
em nome da democracia. Um presidente que não usa nenhum dos artifícios de poder
de seus antecessores e que consegue levar o navio Brasil ao porto seguro de
aparentes instituições democráticas, assimilando todos os golpes da oposição. E
mais: consegue modernizar o País. E construir - algo absolutamente inédito -
uma nova capital em quatro anos de governo.
Claro, deve ter feito inúmeros conchavos o esperto
Juscelino, para obter sucesso em seus planos. Deve ter vendido a alma a muitos
demônios - e sabemos, hoje, que esses demônios estiveram presentes em toda a
história do País - para conseguir que o Brasil medieval desse lugar ao País
industrializado que surgiu a partir de seu governo. Não vou, aqui, citar seus
feitos: pertencem à História e deveriam ser de conhecimento geral. Brasília é
apenas uma de suas realizações, embora - justiça seja feita - a que ofusca
todas as demais.
Mas, a grande obra de Juscelino está além de suas obras
de tijolo e cimento: está na sua enraizada vocação democrática. Que o levou a
assimilar todos os golpismos e todas as oposições a seu estilo de governar. Por
isso perdeu as eleições que indicariam seu sucessor. Os eleitores preteriram o
Marechal Teixeira Lott, em favor do primeiro Presidente eleito pela mídia - o
senhor Jânio Quadros.
E, aqui, tenho que fazer a primeira intervenção
estritamente pessoal. Tenho três grandes ódios a três grandes políticos
brasileiros. O primeiro é Jânio Quadros. Os dois seguintes aparecerão, claro,
ao logo desse longo artigo.
Quando vi o senhor Jânio Quadros pela primeira - e,
acho, única - vez, foi num comício em Lavras, na campanha que o elegeu. Tive
arrepios, ao ver aquela figura excêntrica - para dizer o mínimo - a brandir a
bandeira da moralidade, tendo a vassoura como símbolo, num discurso
entrecortado de pausas dramáticas, para enfatizar seu viés conservador e, por
incrível que possa parecer hoje, extremamente vazio.
Odiei-o à primeira vista e continuo odiando-o hoje,
depois de muitos anos de sua morte. Não tinha, claro, na época, aos dezesseis
anos, consciência do que ele representava, com seu discurso. Apenas tive-lhe
ódio. Apenas pressentia que, de suas palavras, nada se podia aproveitar. Que
seu discurso moralizante tinha o poder de anestesiar as massas, mas era só discurso e nada mais.
No entanto, quando ele venceu, e tomou posse, em seu
discurso - mais ainda moralizador - de posse, não pude - em minha inocência -
deixar de admirar sua coragem de atacar um presidente que saía do governo com
um rol de realizações impressionantes. Mas era só gogó, o que tinha o ilustre e
sanguíneo Jânio Quadros. Alçado pela mídia da época como exterminador de
pretensas quadrilhas que assaltavam os cofres públicos, enraizadas no Palácio
do Planalto recém-inaugurado, quando sabemos, hoje, que essas quadrilhas
estavam à margem do planalto, constituídas não exatamente de servidores
públicos e políticos, mas de empresários que se locupletaram com o pedágio das
obras de Juscelino, Jânio Quadros era bem a imagem do cão que ladra para a roda
do automóvel que passa, mas não sabe o que fazer, se o automóvel para. Como
presidente, só se notabilizou pelas noitadas insones no Palácio da Alvorada,
regadas a inúmeras garrafas de uísque escocês e a filmes que varavam a
madrugada, e a ser o Presidente que proibiu rinha de galos e o uso de biquínis
nas praias do País tropical.
Nove meses de governo. E Jânio, o neurótico e
irresponsável boneco da mídia - já naquela época influente - paulista e
nacional, naufragou em um copo de uísque, encenando uma surreal e absurda
renúncia, na esperança de que seria reconduzido como salvador da Pátria pelas
multidões anestesiadas pela propagando de seu discurso moralizante e conservador.
Abriu o Jânio o caminho para a crise institucional. O
vice-presidente a tomar posse não tinha o aval da mídia da época, embora fosse
o escolhido pelo povo, na eleição anterior como o legítimo sucessor. Jango foi
empossado numa comédia que não posso tachar como commedia del'arte, sem risco de menosprezar o nobre estilo teatral,
sob um absurdo regime parlamentarista, inventado pela direita - já naquela época
golpista e hidrófoba e apoiada por uma mídia da pior qualidade, mas ainda
ingênua, se comparamos com a atual - e pelas forças mais conservadoras que se
podiam imaginar da política brasileira. O regime parlamentarista, claro, não
sobreviveu à vontade do povo e naufragou num plebiscito que eles, os
direitistas de então, contavam como vitória certa. Jango, no entanto, não
sobreviveu aos dentes e à sanha da direita mais conservadora e foi deposto pelo
golpe de 1964, apoiado financeiramente pelos fazendeiros e latifundiários - que
deram origem ao agronegócio atual - e, ideologicamente, pela Igreja Católica -
que tinha, ainda, muita influência - e pela mídia de então, já fortalecida pela
incipiente televisão.
Os anos de chumbo, com os governos militares à frente,
foram amplamente apoiados pelos setores mais conservadores da sociedade
brasileira: a Igreja Católica Apostólica Romana (apesar de algumas poucas vozes
dissonantes, constituídas por alguns padres e bispos das Comunidades Eclesiais
de Base), os políticos organizados em torno da ARENA (Aliança Renovadora Nacional,
que deu origem ao PFL e,atualmente, o DEM), várias organizações da sociedade
civil (que cada uma coloque o respectivo capuz), a mídia então definitivamente
organizada em grandes conglomerados, como Globo, Folha de São Paulo, O Estado
de São Paulo etc., e amplos setores interessados na política nacionalista dos
militares, como a indústria, o comércio, a agricultura.
Abramos um parêntese para uma observação importante em
relação à mídia: houve empresas que apoiaram a ditadura e se tornaram
porta-vozes de suas políticas, como a Rede Globo de Televisão, mas se manteve
distante da prisão, tortura e morte de opositores, até onde sabemos, e até
protegeu alguns de seus funcionários (artistas, escritores, roteiristas etc.)
da sanha persecutória dos aparelhos de repressão; houve empresas que depois
deixaram de apoiar de forma explícita os desmandos da ditadura, mas que se
aproveitaram da onda de censura, para faturar um pouco mais, como o grupo
Estado de São Paulo (ao faturar com a presença de sensores em suas redações, preenchendo
os espaços censurados de seus jornais com versos de Camões ou receitas
culinárias), mas que não sujou as mãos de seus dirigentes com o sangue dos
mártires da ditadura, mantendo um certo distanciamento da opressão; houve
outros, no entanto, que prestaram estrita colaboração com os órgãos
repressores, emprestando até mesmo suas viaturas para condução de presos
políticos, como foi o caso do grupo Folha de São Paulo. Enfim, na época do
salve-se quem puder, muitos se salvaram como puderam, e cresceram e se tornaram
grandes empresas de renome nacional e até internacional, com mais ou menos
sangue nas mãos de seus primeiros dirigentes. O fato é que, praticamente todos,
nessa época, tiveram sua parcela de responsabilidade nos desmandos da ditadura.
Não há inocentes.
Também as empresas que se constituíram e cresceram na
época não se furtaram a sujar as mãos de sangue, ao colaborar de forma contundente
para operações do DOI-CODI, principalmente a famosa Operação Bandeirantes, em
São Paulo, que teve o empresário encarregado da arrecadação assassinado por um
grupo "terrorista". Assim, muitos empresários de fama e sucesso
atuais têm em seu histórico um rol de crimes que nunca serão investigados e
punidos, muitos posando de beneméritos da sociedade, talvez para aplacar suas
consciências.
Os anos de redemocratização marcaram a tomada de
território dos sobreviventes da ditadura. Quem acumulou créditos - capital - sobreviveu
e teve cacife para investir na euforia democrática que tomou conta do País. Foi
o que aconteceu com os grandes grupos mediáticos: souberam bajular os militares
e lamber seus traseiros até o último minuto, para, no momento em que eles
brocharam, pular fora do prostíbulo e se apresentarem como vestais da
democracia. E, devidamente inflados pelo capital acumulado, souberam muito bem
o que fazer: criar e impor um novo monstro, travestido de salvador da pátria,
de caçador de marajás, diante de governos democráticos que fracassaram no
combate à inflação e à corrupção (endêmica, mas devidamente realçada pelos
órgãos de comunicação, conforme seus interesses do momento). Encarnaram num
jovem governador boa pinta, extremamente vaidoso e ostensivamente egocêntrico,
o espírito das vassouradas moralistas de Jânio Quadros, e o travestiram de
salvador da Pátria. Estou falando do segundo indivíduo que odiei profundamente
nesses cinquenta e dois anos de observação da política nacional: Fernando
Collor de Mello. Sua figura - embora carismática para as massas - causou-me
repulsa à primeira vista, por algo que o observador objetivo e racionalista
abomina, a impressão difusa de falsidade, que não se sabe bem de onde vem, tal
a sua subjetividade. Ao contrário de Jânio, que até conseguiu, ao tomar posse,
iludir por alguns momentos o jovem ingênuo que eu era, Collor de Mello não
logrou angariar uma sequer mínima dose de simpatia. E, quando, eleito
Presidente da República pela mídia mais conservadora, numa manobra tipicamente
golpista da Rede Globo de Televisão, seu mais ardente apoiador, apresentou à
Nação aquele plano miraculoso de tentativa de debelar a inflação, tive certeza
de que era apenas um golpe de prestidigitação, que não sobreviveria à borda da
cartola de mágica de uma idiota alçada à posição de gestora da economia, como a
Zélia Cardozo de Melo. O fracasso do governo de Collor de Mello estava escrito
no mesmo manuscrito em que Kafka escreveu O
Processo e outras narrativas absurdas. Embora tivesse o apoio e fosse a
cria da mídia conservadora que o elegeu, contra o operário analfabeto Luis
Inácio Lula da Silva, o metalúrgico que ousara, anos antes, desafiar o poder da
ditadura com seus metalúrgicos e, agora, pleiteava - que ousadia! - o cargo
máximo da Nação, com seu Partido dos Trabalhadores, um bando de operários sujos
de graxa e meia dúzia de idiotas que se diziam intelectuais.
Collor de Mello afundou, como Jânio, num mar de corrupção
e incompetência. Talvez mais incompetência que corrupção, embora o esquema de
controle do aparelho estatal por uma verdadeira quadrilha fosse um dos desenhos
possíveis para a pobre e incipiente democracia brasileira.
A Nação afundava na inflação, o dragão incontrolável,
indomável, indestrutível. Planos miraculosos tentaram abater o animal indócil.
Nada o abalava. Até que... um mineiro de jeito meio besta, topete à Elvis
Presley, comedor de "inocentes" divas distraídas no uso de peças
íntimas, alçado à Presidência da República, após o impeachment de Collor,
nomeou como Ministro da Economia um sociólogo da USP, queridinho das esquerdas,
com histórico condizente com os novos tempos, palrador, inteligente,
carismático e, com ele, uma equipe de verdadeiros economistas saídos dos
quadros universitários, com amplos currículos de trabalhos teóricos, que
inventaram uma fórmula de combater o famigerado dragão da inflação através de
um ousado plano de conversão monetária do desmoralizado dinheiro da época em
novo padrão monetário e, a partir disso, de um plano rígido de controle dos
gastos públicos. O ministro bonachão - claro, estamos falando de Fernando
Henrique Cardoso - só teve o trabalho de ir à televisão e, com os teleprompters
devidamente recheados de informações técnicas, explicar o novo plano, o Plano
Real, da nova moeda que nascia.
E nascia, também, o novo Presidente da República, eleito
e reeleito por obra e graça do plano gestado na administração Itamar Franco,
que ficou na história como o Presidente que se deixou fotografar no Sambódromo
do Carnaval do Rio de Janeiro ao lado de uma modelo sem calcinhas. Todo o
mérito da vitória sobre o dragão da maldade da inflação ficou para o santo são
jorge criado pela mídia, Fernando Henrique Cardoso.
Não, não o odiei à primeira vista, como a Jânio e
Collor. O ódio veio aos poucos. Ao longo de oito longos anos de desgoverno.
Primeiro, por comprar, literalmente, o Congresso para aprovar sua reeleição. Um
PIB inteiro foi gasto nisso, no processo eleitoral que lhe deu o segundo
mandato. Outro PIB inteiro foi gasto para pagar a conta, no segundo mandato,
dos despautérios do primeiro. Seu único feito: segurou a inflação, com rédeas
de aço, à custa do emprego de milhões de cidadãos brasileiros, que se viram,
entre 1999 e 2002, no precipício da miséria, no mais alto grau de desespero, e
à custa de uma política monetarista submissa às regras do FMI. O País entrou
numa depressão de dar dó, num estado lastimável de falência que o abismo que se
avizinhava parecia ser o paraíso, de tão desesperador era o estado das classes
médias arrasadas pela política econômica do presidente reeleito Fernando
Henrique Cardoso de Melo. Foi aí que nasceu o meu ódio contra ele, aos poucos,
crescendo como a levedura do fermento, tanto quanto crescia o grau de depauperamento
das classes médias brasileiras, já que as classes pobres já não tinham mais a
quem recorrer e entravam num grau máximo de extinção, pela fome, pelo
desespero, pela falta de esperança.
Já a mídia comprada com os milhões de reais empregados
no processo da reeleição, consideravam-no - e ainda o consideram - o santo
guerreiro que domou o dragão da inflação. E isso lhe bastava. Não lhe
importavam - à mídia - os milhões de desesperados famintos, os milhões de
desempregados. Fernando Henrique, o presidente que dava entrevistas em francês
e inglês, que sabia se comportar nos banquetes dos banqueiros e presidentes da
Europa, que tinha uma obra de teoria sociológica importante (que ele pediu para
ser esquecida), que portava a faixa presidencial como os antigos reis das podres
monarquias do século XIX portavam suas coroas de ouro, era seu orgulho e seu
cartão de visitas, o troféu que mostrava ao mundo "civilizado" que
tínhamos, sim, um presidente que não era botocudo, que sabia usar os talheres para
comer e a língua para defender-nos de nossa pretensa barbárie, de nosso
pretenso complexo de vira-latas. Enfim, um presidente de primeiro mundo, com um
governo de décima categoria. Mas isso não importava. Importava a pose, a fala
bem articulada, a argumentação acadêmica. O povo? Que se explodisse o povo,
esse ingrato, que não sabe reconhecer a sutileza de um particípio passado, no
idioma francês.
E então... e então, a despeito de toda a sua
honorabilidade, a despeito de todo o apoio da moeda, em 2002, o povo, esse
ingrato, elege nada mais nada menos do que aquele metalúrgico analfabeto, falto
de um dedo, grosso, barbudo ainda por cima, como Presidente da República.
Lula. Lula lá. Lula no Palácio. Lula com a faixa de
Presidente. Com o diploma de Presidente. O primeiro diploma do metalúrgico
analfabeto. O antípoda do melífluo, elegante, acadêmico, palrador, mistificador
e exterminador de empregos, Fernando Henrique Cardoso.
Não podia dar certo. Seria o desastre total. Era só
esperar alguns meses. Lula iria meter os pés pelas mãos. O mínimo que a mídia
esperava de seu governo é que, mais dia, menos dia, ia dar - com o perdão da
palavra - MERDA!
Não deu. Os empresários que iriam abandonar o País não
só não o abandonaram como até começaram a investir e a prosperar. Não houve
planos mirabolantes. Não houve confisco da renda de ninguém. O direito à
propriedade continuou como sempre, direito à propriedade. Os contratos foram
respeitados. A Lei foi respeitada. A Constituição foi respeitada. Ninguém se
matou, ninguém se desesperou. E a Nação começou a crescer. Os investimentos
foram retomados. Um plano de combate à pobreza foi engendrado, posto em
execução e começou a dar certo. O povo sentiu que tinha alguém lá em cima que
se preocupava com ele. A miséria começou a ser vencida. E Lula - o metalúrgico
analfabeto, que mal falava português - conquistou a admiração do mundo, de
presidentes e líderes de todas as nações. Porque era autêntico, porque falava a
língua universal da defesa dos pobres e não apenas defendia os pobres com a
retórica amplamente utilizada por seus antecessores, mas punha em prática
princípios básicos e simples de economia que privilegiavam o combate à fome e à
miséria, a criação de novos empregos, o crescimento da economia. E o País saía,
pouco a pouco, do atoleiro em que o lançara a intelligentsia do príncipe da sociologia brasileira, Fernando
Henrique Cardoso. E é, espero, a última vez que falo no nome do vampiro, que deve
ser esquecido, atravessado por uma estaca de madeira e enterrado no último
túmulo da última rua do cemitério da História.
Lula, o metalúrgico, exercia seu mandato com uma
trajetória simples de cumprimento de promessas eleitorais, sem alarde, sem mirabolantes
enrolações teóricas, provendo ao povo o que o povo queria: emprego, ascensão
social, tranquilidade, salários, comida, acesso aos bens de consumo. A Nação
retomava seu rumo. Crescia. Ganhava respeito internacional. Livrava-se das
políticas de recessão do FMI, trilhava seu caminho, com liberdade de expressão,
com todas as instituições funcionando, sem ameaças de golpe, sem
protecionismos, sem sustos.
Eu disse sem ameaças de golpe? Ingenuidade minha, porque
isso - o exitoso governo Lula - era um absurdo, um contrassenso, aos olhos da
mídia a soldo dos poderosos que há mais de quinhentos anos mantinham seus
privilégios nessa outrora república de bananas. Era preciso derrubar a qualquer
custo o metalúrgico. Armou-se o inferno para derrubar Lula. Derrubaram-se
ministros, destruíram-se reputações, inventaram-se mil artimanhas. Houve
momentos em que pensei que eles venceriam, como, aliás, temia desde o início de
seu governo, que Lula não iria conseguir chegar ao fim de seu mandato. As
"forças ocultas" que derrubaram Jânio (na verdade, essas forças
ocultas eram a cachaça e o golpismo do presidente), agora, tomavam forma numa
campanha nunca antes vista contra um Presidente a partir da mídia: jornais,
rádios, televisões, revistas, enfim um verdadeiro exército formado de
interesses contrariados e muito bem pagos por gente que desejava voltar ao
poder se uniu para derrubar o Presidente, na crise das denúncias daquilo que a
imprensa denominou "mensalão". Ou seja, o Partido dos Trabalhadores,
ou seja o Presidente da República, desviava recursos públicos e os usava para
comprar o apoio do Congresso Nacional a seus projetos de governo, pagando-os
regiamente a cada votação mensal.
Vamos abrir, agora, talvez um longo parêntese.
Necessário. Filosoficamente, politicamente, logicamente.
Maquiavel não disse, em O Príncipe, em nenhum momento, que os fins justificam os meios. Mas
a crítica, os filósofos posteriores e todo o pensamento político conservador
canonizaram esse princípio como a essência da obra maquiavélica, ou seja,
daquele pensamento político que preza a conservação do poder a qualquer custo. Se
Maquiavel não o disse, isso não mais importa. Está consagrado. E maquiavélico
passou a ser sinônimo de algo perverso em política, ou até nas relações
pessoais. Coitado do Maquiavel. Deve arrepiar-se em seu túmulo cada vez que
suas ideias e seus princípios políticos se associam ao mal, àquilo que é imoral
ou amoral.
Os fins justificam os meios. Uma frase que recebe a
condenação quase unânime do pensamento, desde o mais conservador até o mais
liberal. Ninguém o admite, mas, no fundo, a maioria o pratica. Porque há, sim,
momentos na vida em que temos que fazer algo não muito elogiável em nome de
conquistas futuras. É inevitável. Se sabemos que, se não fizermos algo
condenável agora, haverá prejuízos maiores no futuro, poucos de nós hesitaremos
em realizá-lo. Como estamos no campo teórico, nem vou dar a complacência de exemplificar:
que cada um consulte sua consciência. Afinal, justificam-se os meios, se os
fins forem nobres.
Então, mesmo não entrando no aspecto maquiavélico do
problema do tal "mensalão" - ou seja, paga-se o preço pedido por uma
boa causa, a governabilidade, ou a aprovação de projetos de interesse da
sociedade - se ele realmente existiu, se realmente houve pagamento de propinas
a deputados para que votassem ou direcionassem sua bancada a votar a favor do
governo, algumas questões éticas devem ser discutidas.
Uma dessas questões éticas é: quem é mais culpado, o que
paga para aprovar seus projetos ou o que exige pagamento para esse fim? E mais:
de quem, exatamente, parte a exigência: de quem paga ou de quem cobra?
Nesse último caso, de quem parte a exigência da propina,
manda a lógica que acreditemos que ninguém, em seu juízo perfeito, vai pagar
propina a quem não a pede. Então, havia - e esse verbo deve ser pensado em
termos de passado - um esquema bem azeitado, há muito utilizado - já que nada
nasce assim, de repente - de cobrança de propinas aos governos anteriores, pois
se sabe que absolutamente nenhum presidente da época da redemocratização até hoje
teve maioria para aprovar com tranquilidade seus projetos. E se havia uma
prática institucionalizada, como parece óbvio, a investigação dos órgãos
controladores - Ministério Público à frente - deviam ter investigado
profundamente esse prática e apontado não apenas aqueles que pagaram, mas
principalmente aqueles que exigiram pagamento. Pelo que eu sei, isso não foi
feito. A investigação centrou seu fogo apenas nos que teriam feito os
pagamentos. Poucos dos que receberam foram indiciados (e punidos). E eu fico
pensando: como tão poucos que receberam puderam influenciar tanto os demais,
sem que os demais também quisessem receber parte desses pagamentos? E mais: os
pagamentos a esses poucos indivíduos nunca foram assim tão vultosos, diante da
importância do apoio que se comprava. Ou seja: para mim, venderam-se por muito
pouco, diante do tanto que representava o valor do que se comprava. E mais,
ainda: se muita gente sabia, como se fez acreditar quem denunciou o esquema,
por que tão poucos receberam? Será que eram tão ingênuos os demais deputados e
senadores a ponto de se deixarem influenciar por alguns poucos cujos votos eles
sabiam ser comprados e, mesmo assim votaram segundo sua orientação, sem nada
pedir ou exigir em troca?
E então, surge um aspecto que me intriga: se era o
dinheiro distribuído para realmente comprar apoio parlamentar, seria impossível
que isso não tivesse a aprovação de
lideranças superiores, ou seja, poderia até mesmo ter sido aprovado pelo
próprio Presidente da República, ou seja, Lula. Mas não é o que o denunciante
diz e afirma: que Lula só soube quando ele, o denunciante do tal esquema,
contou ao Presidente. E, se o Presidente sabia disso e concordou com isso, por
que tudo foi feito de forma tão amadora e irresponsável, utilizando-se de
expedientes primários e de pessoal de baixo escalão para realizá-lo? Por que
não se tomaram cuidados básicos de encobrimento e disfarce que todos os
antecessores, com certeza, tomaram já que se presume, com bastante lógica, ser
o esquema bem mais antigo que o Governo Lula? Além do mais, há um aspecto ainda
mais intrigante: a Presidência da República dispõe de meios muito mais sutis e
convincentes de compra de votos de parlamentares do que o pagamento de trinta
ou cinquenta mil reais entregues por
obscuros funcionários em encontros furtivos, o dinheiro em toscas pastas ou em sacos
de papel. Há, primeiro, o convencimento próprio do poder do cargo (obras na
comunidade do político, liberação de verbas, afagos políticos etc.), e,
segundo, a caneta, ou seja, o poder de
nomear ou de apadrinhar a quem que que
seja, o que é muito mais efetivo do que dinheiro vivo. Não creio que um
deputado ou senador se deixem seduzir por míseros reais em detrimento da
nomeação de apaniguados para cargos de segundo ou terceiro escalão, com
rendimentos bastante atrativos, além da repercussão entre seus eleitores do
poder de nomear correligionários com possibilidade de realizar suas demandas
políticas junto às comunidades que o elegeram e poderão continuar a elegê-los.
Enfim, o tal "mensalão" não resiste a uma
análise lógica de sua existência.
No entanto, suponhamos que ele realmente aconteceu com
todos os elementos que o denunciante e, depois, o Procurador Geral da República
apontaram. Ou seja, que tudo foi feito pelo segundo escalão do Partido dos
Trabalhadores, especificamente pelo seu tesoureiro. Com a ajuda de um
publicitário, que teria se responsabilizado pela articulação e realização do
esquema, já anteriormente provado (o "mensalão mineiro") e, portanto,
com alguma consistência operacional. Pelo que está nos autos, depreende-se - porque não há provas - que a Casa Civil
(José Dirceu) sabia e aprovava os empréstimos bancários e os pagamentos. E,
novamente, é muito estranho isto: pegar empréstimo bancário para pagar propina?
Ah, sim: dizem que os empréstimos eram falsos. De qualquer maneira, usar um
banco para camuflar dinheiro desviado é de uma estupidez asinina, já que toda
atividade bancária é rigorosamente controlada. Há, aí, um caso a se pensar:
ladrão que deixa tantas pistas quer ser pego. Ou merece ser pego. O articulador
do esquema e o tesoureiro eram tão ingênuos assim?
Entremos, agora, no aspecto legal do julgamento.
Não consigo encontrar nenhum argumento que diga - de
forma lógica e racional - por que esse processo foi parar no Supremo Tribunal
Federal em sua totalidade. Se, pela Constituição Federal, só têm direito a
julgamento no STF determinadas e específicas autoridades federais - e apenas
três réus, deputados com mandatos, estão entre elas - por que todos acabaram
tendo a preocupação de Suas Excelências Máximas, a quem nossos impostos pagam
para cumprir, em primeiro lugar, preceitos constitucionais; em segundo,
defender a própria Constituição, diante de leis que queiram desrespeitá-la; e, em
terceiro, julgar autoridades com mandato, como o Presidente da República,
Deputados e Senadores?
Foi esta a primeira pisada de bola do Supremo: o não
desmembramento do processo, deixando que Tribunais de instâncias inferiores
julgassem a maioria dos réus que, então, de acordo com o princípio
constitucional vigente, teriam direito a recursos, como qualquer assassino,
estuprador, pedófilo, esquartejador etc. têm, o que não acontece no Supremo
que, por ser Supremo, não tem corte superior a que recorrer.
Ou seja: é um julgamento em última instância, sem ter
passado por outras instâncias. O que é totalmente absurdo, kafkiano.
A segunda pisada de bola do Supremo foi a atuação do
Ministro Barbosa. Na minha opinião, não é ele nem herói (como a direita quer
fazer crer) nem vilão (como a esquerda o apresenta): é uma vítima. Vítima de
sua origem, vítima de sua trajetória, vítima das circunstâncias de sua
indicação e ascensão ao Supremo Tribunal.
Origem. Joaquim Barbosa é negro, de origem humilde, o
tipo do brasileiro comum que lutou muito para superar as agruras de sua
existência e conquistar um lugar ao sol. Sob esse aspecto, é um homem
admirável: culto, inteligente, desbravador. No julgamento do
"mensalão", essa sua trajetória explica sua sanha acusatória a homens
que tiveram uma trajetória bastante oposta à sua, já que praticamente todos
eles pertencem a uma classe média ou alta, abastada, detentoras de
oportunidades que ele não teve. Então, em termos psicológicos, isso o predispõe
para se colocar como justiceiro.
Trajetória. Não deve ter sido fácil ao jovem negro
alcançar todas essas vitórias. Tornar-se orgulho de sua etnia, de sua família.
Ultrapassar as barreiras que a profissão de jurista - coisa de homem branco, na
tradição brasileira - não deve ter sido fácil. Agora, na posição de relator de
um processo complexo, com toda a repercussão e, mais do que repercussão, com
toda a pressão da mídia, Joaquim Barbosa não podia decepcionar aqueles que o
exaltavam: ele devia vestir o manto do justiceiro.
Sua ascensão ao STF. Indicado por Lula, é claro que
estaria sob suspeição da mídia que o exaltava, se não cumprisse o papel de
neutralidade e isenção que ela, a mídia, travestida de opinião pública, às
vezes de forma sutil, às vezes de forma explicita dele exigia. E aí está a
armadilha de que ele não soube se livrar: a isenção que a mídia exigia era a de
condenação, ou seja, se ele não condenasse os réus, seria taxado de compadrio
com quem o indicara. E Joaquim Barbosa vestiu, então, definitivamente, o manto
de justiceiro que a sociedade representada pela mídia esperava dele.
Triste papel, o de Joaquim Barbosa, o Othelo de uma
tragicomédia kafkiana: açulado pela mídia de que fora traído em seus princípios
por aqueles que o indicaram para o Supremo, não teve outra saída senão cumprir
seu destino e destruir aqueles a quem devia o favor de sua nomeação. Favor que
não era favor, era mérito. Só que ele não soube bem distinguir isso, cego não
de ciúmes de uma pretensa Ofélia, mas de um espírito justiceiro que não lhe
cabia como Juiz. E um Juiz não pode ser justiceiro, senão deixa de ser Juiz.
Ele deixou de ser isento, para provar que era isento. Deixou de ser honesto,
para tentar mostrar sua honestidade. Um paradoxo. Mas um paradoxo que o fará
entrar para a História, talvez não exatamente como ele deseja.
Então, cometeram-se erros de avaliação do próprio
processo - que não devia ser julgado pelo Supremo - e cometeram-se erros
primários no próprio julgamento, quando, por exemplo, se pressupõe que houve
crime a partir de indícios e não de evidências; como, por exemplo, pressupor
que, se um subordinado comete um crime, seu superior teria a obrigação de saber
e impedir ou coisa que o valha; como, por exemplo, dar mais valor a quem acusa
do que a quem defende, ou seja, se um acusa e vários defendem, pendeu-se para a
acusação; como, por exemplo, aplicar penas pesadas a réus com base apenas em
pressupostos, taxando pessoas com longo histórico público de
"quadrilheiros" apenas porque tinham cargos de relevância. Enfim, um
julgamento para ficar para a História não como uma contribuição relevante, mas
como uma mancha de opróbrio do Supremo Tribunal Federal. Como a História não
guarda os nomes dos que fizeram injustiça (quem se lembra de quem condenou
Tiradentes?), mas exalta os injustiçados, eu fico com ideia prática - mas não
maquiavélica - de que preferia não ser condenado a entrar, assim, para a
História.
Tudo acaba bem, se começa bem. Tudo acaba mal, se começa
mal. E a ópera bufa desse tragicomédia kafkiana chamada História Recente do
Brasil termina, aqui, com a esperança de que, graças a esforços de gente como
Lula, Dilma e tantos outros que estão construindo um novo País, possamos ter os
próximos cinquenta anos com o arrefecimento do golpismo típicos daqueles que
nos governaram antes e que deram mostra de não gostar de lagar assim tão fácil
a doce rapadura do poder. Porque, se a Democracia talvez não seja o melhor
regime, é ainda - e o será por muito tempo, creio - o melhor regime possível.