outubro 15, 2010

ÁGUAS QUE CORREM

(Rio Tietê, em São Paulo, em 1905)



Sempre fui fascinado pelas águas que correm. Menino ainda, na velha cidade mineira de Lavras, encantava-me a enxurrada que levava o barquinho de papel. Para onde? Ficava o mistério. Depois, a descoberta do córrego bem lá no fundo do quintal, onde havia um barranco com areias coloridas, moldado pelas cheias, pelas águas. Mais tarde, o riacho longe, aonde íamos em bando tomar banho de cachoeira, no poço redondo, de pedras e areia. E havia, ainda, muito mais longe, o Rio Grande, que passava perto da minha cidade e inundava a pequena Ribeirão Vermelho, de tempos em tempos. E depois, já adolescente, o Rio Verde de Três Corações, onde minha irmã morava. Rio bravo, cortando a cidade e lambendo a Escola de Sargentos das Armas, a ESA. Rio que comia gente. Não era raro juntar povo na ponte, para ver o resgate de um corpo que descia a correnteza, depois de três dias sumido o jovem recruta que se aventurara em suas águas.

Memórias. Memórias de águas que correm, de rios de minha infância.

Se tivesse que escolher a mais bela frase de todos os tempos, acho que escolheria a do historiador grego, Heródoto: o Egito é um presente do Nilo. Não conheço o Rio Nilo, a não ser de fotos ou filmes, mas deve ser um rio fantástico, como tantos outros no mundo. Das velhas lições de geografia: a Mesopotâmia, região entre rios, o Tigre e o Eufrates. O Tamisa, na Inglaterra. E o Danúbio? Para inspirar uma valsa tão famosa, só pode ser um rio de encantos mil!

A imaginação sempre correu frouxa, quando penso em rios, riachos, córregos, águas que correm. Águas que produzem cachoeiras, corredeiras, margens de bosques ou apenas limam as pedras até torná-las redondas. Águas que correm, que sobem com as chuvas e se estreitam com a seca. Acho que são, todas as terras, presentes das águas que correm. Sem elas, o mundo seria estéril, não existiriam animais, florestas, frutos: não existiria o homem. Só a bíblia vê as águas como ameaça: o dilúvio, o mar que Moisés abre com seu bastão. Mesmo quando usa as águas para batismo, elas são não a ligação do homem com a vida, com a terra, mas a religação com um deus furibundo e mal humorado. Mas isso já é implicância minha...

Águas que correm. Que provocam enchentes. Que levam os bens que os homens, teimosamente, amontoam em suas margens.

Águas que correm. Águas que deviam ser limpas, cristalinas, livres, soltas, com imensas margens a serem fertilizadas (como no Egito de Heródoto). Que deviam, em todos os pontos do mundo, trazer vida, saúde, prazer. E penso: será que ainda estão azuis as águas do Danúbio? Não estão ensanguentadas as águas do Tigre e do Eufrates? Não estão barrentas as águas do Velho Chico? Ah: e o nosso Tietê, o rio que corre para dentro, para o coração do estado, quando nasce tão perto do mar! São Paulo, a cidade e o estado, são, em grande parte, um presente do Tietê, com seus inúmeros afluentes a inundar, cada vez que chove, a metrópole que o matou...

Tietê, Tietê, o rio assassinado, que só ressurge impávido colosso só muitos quilômetros abaixo: orgulhoso, na sua resistência, que, nós, os paulistanos, não sabemos admirar, só reclamar, como se fosse possível haver obras contra enchentes, contra as cheias que são a natureza dos rios, dos riachos, dos córregos, das águas que correm.

E as águas que correm pela cidade de São Paulo levam o meu barquinho de sonho para o mistério das profundezas da terra, porque foram elas todas aprisionadas, enterradas, afundadas, emporcalhadas e desprezadas. Só aparecem, a cada ano, durante o verão. Às vezes, um pouco antes.

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