O Corinthians, campeão da Taça Libertadores da América, vai
jogar nas alturas da Bolívia, em Oruro, a 3700 m acima do nível do mar. Um jogo de
risco e de expectativas, pela estreia.
Duzentos torcedores corintianos acompanham o time na jornada
épica. Nada de mais que esses chamados "loucos pelo time" tenham
enfrentado as agruras da longa viagem para prestigiar aqueles que eles
consideram heróis, depois de uma vitória quase quixotesca, em campos do Japão,
pelo título mundial interclubes.
Apenas um detalhe: entre esse duzentos "loucos",
há alguns que levam a sério o epíteto da torcida, além de serem acabados
imbecis frequentadores de campos de futebol. E são esses idiotas que roubam a
protagonia do jogo que devia se limitar às quatro linhas do campo: para
comemorar o gol de seu time, aos cinco minutos do primeiro tempo, soltam rojões
e sinalizadores (que são proibidos) e mais: dirigem um desses sinalizadores
para a torcida adversária. Um moleque de quatorze anos, que ali fora para
acompanhar, talvez pela primeira vez, o seu time; um moleque boliviano, morador
distante quase duzentos quilômetros, que para ali viajara em busca da emoção de
uma partida de futebol, é atingido no olho direito pela estupidez do
"louco" que estava na torcida adversária. E morre.
Não. Não se pode falar de fatalidade. Fatalidade é terremoto,
enchente, tufão... Fatalidade é estar onde não se devia estar. Mas, um campo de
futebol não é lugar onde não devia estar, quando o seu time do coração está em
campo. E campo de futebol não é lugar para se morrer, principalmente se você é
apenas um jovem torcedor. Falar de fatalidade diante de tal estupidez é aceitar
como normal que uma banda de música solte rojões dentro de uma boate fechada
com mais de mil pessoas e provoque um incêndio que faz mais de 340 vítimas.
Falar de fatalidade é pensar que não há responsáveis por atitudes absurdas,
improváveis e estúpidas. Porque há, sim, culpados tanto na tragédia de Santa
Maria, no Rio Grande do Sul, quanto na morte desse garoto boliviano. Se há
desproporção de vítimas, a dor é a mesma quando se perdem vidas, não importa
quantas, por motivos que poderiam ser evitados.
Então, quem são os culpados nesse episódio do sinalizador?
Vamos ter que fazer um histórico de eventos e situações e
criações humanas que beiram o absurdo e a insensatez, ao longo de muitos,
muitos anos. Comecemos pelos culpados mais amplos, para chegarmos aos culpados
específicos:
Primeiro, a mídia. Sim, meus amigos, a mídia. Sempre ela, a
poderosa mídia, que interfere na nossa vida em aspectos que ela mesma não tem
controle, ou finge não ter controle, porque há todo um jogo de cena, de
esconde-esconde, de gritinhos histéricos de liberdade de opinião e outras
cretinices que obstruem o verdadeiro significado das palavras.
Por que a mídia é culpada, num incidente desse tipo? Vejamos.
É sim, criação da mídia, a ideia da mítica torcida fanática,
"sofredora" por anos e anos sem um título, da torcida
"fiel" que se transforma em "nação corintiana", como se
torcer para um clube estivesse no mesmo nível de emoção ou de pertencimento a
um País ou a um grupo étnico. Tudo bobagem, para vender jornal, para produzir
notícia, para ganhar dinheiro. Nenhum time de futebol devia poder provocar o
mesmo tipo de paixão que se tem por causas muito, muito mais nobres. Um time de
futebol é só um time de futebol. Que perde e ganha, como todas as equipes de
qualquer esporte coletivo.
E por que se criou essa "mística", esse fanatismo?
Porque a torcida corintiana começou a crescer, a dar espetáculo, a atrair a
atenção. E houve aquela famosa "invasão" corintiana ao Maracanã, há
alguns anos, quando a torcida tomou conta do então maior estádio de futebol do
mundo, atrás de uma vitória de seu time. O monstro - que já estava aí - foi
retroalimentado pela mídia, que incensou e incentivou sempre esse tipo de
comportamento, porque descobriu que escrever sobre o Corinthians, falar sobre o
Corinthians, produzir filmes ou material para a televisão sobre o Corinthians
atrai público, atrai leitores, atrai, consequentemente, fama e dinheiro. E a
mídia vive de seguidores, de patrocinadores, de dinheiro, enfim. E o monstro,
incentivado pela mídia, tem crescido e ganhado epítetos, desde o termo
"fiel", que remete ao fanatismo religioso, até o mais recente,
"loucos". E os "loucos" fazem esse tipo de coisa, que é
lançar um mortífero sinalizador contra adversários anônimos e completamente
desconhecidos, já que a torcida do time adversário - o San José - não tem, nunca
teve e provavelmente nunca terá qualquer motivo de desavença ou de hostilidade
em relação à torcida ou ao time de futebol chamado Sport Club Corinthians
Paulista.
Segundos culpados: a diretoria do clube. Ou melhor, as diretorias
de todos os clubes e, por extensão, todos os dirigentes de futebol, desde as
Federações estaduais até as poderosas CBF e FIFA.
Sempre condenei a existência, por absurda, das chamadas
"torcidas organizadas". São um bando de baderneiros que se unem não
exatamente para torcer para um clube, mas para provocar o adversário, para
realizar enfrentamentos com outras torcidas, para tomar lugares nos estádios de
pessoas que querem torcer com tranquilidade. E mais: usam o nome do clube - que
é um patrimônio privado e valioso - para se estabelecer como pretensas
sociedades que não têm nenhuma base jurídica, mas se apropriam também dos
símbolos
acha dona desses bens e que só provocam - como todos
sobejamente o sabem - o temor por onde
passam, em suas investidas contra adversários, contra os bens públicos,
provocando ferimentos e até mortes, muitas mortes. E os clubes - no caso, o
Corinthians - são culpados, sim, por terem sido inicialmente omissos em relação
ao surgimento dessas torcidas e, depois, por até mesmo incentivar sua
existência, dando-lhes voz em decisões internas e patrocinando-as com dinheiro,
ingressos e privilégios nos estádios. São responsáveis, sim, pela alimentação e
pelo crescimento dos monstros, sob os olhos complacentes dos dirigentes máximos
do futebol, que poderiam, sim, baixar normas que levassem a que os dirigentes
dos clubes coibissem a existência das torcidas organizadas ou que, pelo menos,
não as incentivassem.
Terceiros culpados: o poder público. Principalmente o
Ministério Público e os órgãos de Segurança Pública.
O Ministério Público já fez várias denúncias contra a
existência dessas hordas bárbaras, mas não teve peito de levar adiante medidas
que as pusessem totalmente fora da lei ou, melhor, que reconhecessem que seu
funcionamento não tem respaldo legal. Quando chega a hora de realmente
criminalizar o comportamento dessas torcidas, sempre se faz uma conta de
chegar, o famoso "termo de ajustamento" e tudo continua igual. Os
vândalos seguem sua sina de vândalos, sob o olhar às vezes conivente, às vezes
furibundo dos órgãos de Segurança Pública, ambas as atitudes condenáveis,
porque ou não reprimem de forma civilizada aquilo que não respeita a
civilização ou o fazem de forma incivilizada, ou seja, descendo o cacete, como
se a violência das hordas justificasse a violência policial. E o monstro,
tocado em seus brios guerreiros, alimenta-se da violência, para, através do
desafio aos órgãos repressores, arrebanhar mais indivíduos violentos para as
suas fileiras.
Há, agora, os responsáveis específicos do evento: primeiro,
a polícia boliviana. Sim, não vou aliviar a responsabilidade policial, que
devia ter revistado com mais rigor - se é que houve revista - a todos os
torcedores, para impedir que entrassem no estádio com objetos perigosos, como os
tais sinalizadores. E finalmente, os próprios indivíduos que entraram com esse
tipo de petardo em campo, quando sabem - e não podem se fazer de inocentes,
porque nada têm de inocentes - que esse tipo de material se constitui, na
verdade, numa arma de ataque, muito mais do que um objeto de uso em
comemorações de alegria. Tinham, sim, segundas intenções. Entraram no estádio
com a ideia de que iriam não para uma partida de futebol, mas para uma batalha
com a torcida adversária, em muito maior número e, portanto, muito mais
perigosa, num tipo de raciocínio ilógico de que todo adversário é inimigo. E
inimigo merece... morrer!
Portanto, já que não se podem punir os responsáveis
longínquos, porque não há como definir atos específicos, devem ser os
torcedores severamente penalizados, para que não se repitam atos como esses. E
também ao clube, ao Corinthians, de acordo com as normas da Federação Latino-americana
de Futebol, devem ser impostas sanções severas, já que os clubes são
corresponsáveis pelas atitudes de seus torcedores.
E o que mais?
Ah, sim, há muito o que fazer: buscar formas de amenizar o
fervor místico de torcedores imbecilizados pelo fanatismo, através de campanhas
educativas, em todos os meios de comunicação, coisa que se devia impor à mídia,
como forma de cobrar dela a parte de responsabilidade que lhe cabe, aos
educadores, aos formadores de opinião. E também, principalmente, acabar de uma
vez por todas com a existência dessa praga chamada "torcida
organizada". Processar seus dirigentes, por danos à imagem dos clubes, ao patrimônio
público e ao consumidor em geral, por impedi-lo de assistir com tranquilidade
aos jogos de futebol; fechar e lacrar suas sedes e impedir que se reúnam e que
voltem a existir. E os que praticam ou praticaram violência em estádios de
futebol ou por causa do futebol sejam banidos, banidos para sempre, dos campos,
com a obrigação de se apresentarem numa delegacia de polícia sempre que houver
um jogo de seu time.
Enfim, há muito o que fazer, para que volte a paz ao
futebol. Medidas, medidas práticas, efetivas, não apenas promessas ou passeatas
em favor da paz ou coisas do gênero. Chega de paliativos, chega de conivência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário