outubro 19, 2024

BRASIL: UM PAÍS POLARIZADO?

 




Hoje, eu vi um leão

Leão, leão

E não era um leão

Não era um leão

E o que era então?

Não digo, não!

Não digo, não!

Não digo, não!



Que bicho, que bicho

Que bicho era então?



(Eu vi um leão: canção popular de Lauro Maia – 1913-1950)



O Brasil, desde a Proclamação da República, em 1889, tem sido governado prioritariamente pela direita. Porque o Brasil é um país de direita. E só estamos descobrindo isso agora. A esquerda só governou o país por períodos muito exíguos. Mas, precisamos deixar claro o que é “direita” e o que é “esquerda” neste país complexo e multicultural.

Falemos, primeiro, da tal “direita”. A república nasceu de um golpe de estado – de direita. Os presidentes que nos governaram até 1930 pertenciam à direita. Essa era ou é a direita “envergonhada”, ou seja, uma direita que não se proclamava de direita, mas tinha todos os tiques e toda a ideologia de uma direita que tinha um nacionalismo meio torto, mas que não defendia, por exemplo, a extinção ou a morte de inimigos políticos, embora o assassínio de adversários ocorresse de vez em quando. Porém, tudo dentro da ordem e do progresso. E digo isso com toda a ironia de que eu seja capaz. Era uma direita conservadora, católica e, por isso, anticomunista.

Abramos um parêntese para o anticomunismo dessa direita.

Num tempo – e estamos falando das três primeiras décadas do século XX – em que as comunicações eram precárias, a Revolução Russa foi-nos vendida como uma revolução anticatólica, que perseguia a Igreja, que assassinava os padres e fechava os templos. Uma revolução ateísta. Lembremos que éramos (e ainda somos, embora menos) um país católico.

Um parêntese dentro do parêntese: Stálin e o fechamento da Rússia (depois, União Soviética) para o ocidente contribuíram muito para má imagem desse país e da revolução bolchevista, não só no Brasil.

Prossigamos. O país católico que era/é o Brasil cultivou, a partir de então, paulatinamente, um horror ao comunismo e a tudo que era de esquerda. E isso está no imaginário popular: a esquerda é intrinsecamente má. Comunista come criancinhas. Estupra mulheres. Persegue a religião. Fecha igrejas. E, numa escalada absurda de anti-ideologia, toma sua propriedade, sua casa, seus bens, seu sítio, sua fazenda. (Talvez isso explique por que falar de reforma agrária se tornou um tabu, para as mentes toscas da direita). Mas essa era ainda o que chamamos de “direita envergonhada”, aquela que não quer dizer seu nome, não se assume, apenas pratica seus valores.

A era Vargas destampou em parte o demônio da direita: Getúlio, inicialmente, simpatizava (e acho que sempre simpatizou) com o ideário fascista da dupla Hitler-Mussolini. Perseguiu, prendeu e matou muitos políticos e cidadãos da esquerda. Propiciou até mesmo o surgimento de um movimento claramente nazista, a Ação Integralista, de Plínio Salgado. Instituiu um programa educacional que difundia o nacionalismo (com o culto a símbolos nacionais, principalmente a bandeira: isso não lhe recorda algo?), o anticomunismo, o racismo (o país precisava “embranquecer”). Nossos avós foram devidamente educados nessa ideologia. Estava ali o ovo da serpente da extrema-direita, que, todavia, não prosperou, porque Getúlio recuou de seus princípios, sob pressão dos Estados Unidos, e acabou declarando guerra ao eixo, enviando até mesmo uma força expedicionária para lutar na Itália. Mas o ovo da serpente da extrema-direita saíra da cloaca da direita “envergonhada”. E foi essa direita, a “envergonhada”, que nos governou entre 1945 e 1964. Não conheço a ideologia de Juscelino Kubitschek, mas ele não era de esquerda, embora se pudesse prever um segundo mandato com um viés menos progressista e mais voltado para o social. João Goulart tinha compromissos com pautas da esquerda, mas não era exatamente um esquerdista ou comunista. Mas só o fato de pregar as tais “reformas de base” (entre elas a tenebrosa, para a direita, reforma agrária) foi suficiente para que o ovo da serpente da extrema direita eclodisse em 1964. Os militares deitaram e rolaram por 21 anos: perseguiram, prenderam e assassinaram seus opositores; aprofundaram o nacionalismo de extrema direita e a ideologia de temor ao comunismo, como ameaça à pátria, à propriedade privada, à religião. O ovo da serpente produziu seus filhotes extremistas, que se retraíram um pouco com o processo de redemocratização. Retraíram-se, “envergonharam-se” novamente, até a ascensão de Lula à presidência, quando, eu acredito, subterraneamente, pertinazmente, silenciosamente, os extremistas foram se reorganizando, até encontrar um “líder” que, por mais tosco que fosse, levantasse a bandeira do neonazifascismo, agora com o apoio não mais da Igreja Católica (meio que defenestrada da hostes direitistas, embora continue sendo uma instituição de direita), mas com a ajuda de um movimento que cresceu absurdamente nas últimas três décadas: o neopentecostismo, que herdou quase tudo de ruim da direita hidrófoba de Plínio Salgado (não é coincidência o Sul ser o que é: os camisas-verdes brotaram e cresceram lá) e do nacionalismo torto de Vargas (não à toa que se apresentam vestidos de verde e amarelo e enrolados na bandeira). Bolsonaro e seus asseclas tiveram apenas o trabalho de “encarnar” todo esse lixo, para tomarem o poder e, quando defenestrados, até pensarem num novo golpe de estado, para instituir um regime semelhante a uma teocracia de extrema direita.

A esquerda, no Brasil, foi sempre uma esquerda “subterrânea” e sem definição de extremismos. Porque foi quase sempre perseguida e tolhida em suas pretensões; poucas vezes, seus líderes realmente tiveram oportunidade de se destacarem na política. E foi sempre uma esquerda amedrontada, que vestia e ainda veste “luvas de pelica”, ou seja, uma esquerda que nunca pregou claramente a incompreendida “ditadura do proletariado” ou até mesmo uma revolução que chocalhasse as bases do poder e instituísse suas bandeiras de justiça social e igualdade em todos os campos da política e da sociedade. Foi sempre uma esquerda ética. Basta ler a biografia de um de seus maiores líderes, senão o maior, Luís Carlos Prestes, um homem probo, extremamente ético, cuidadoso com suas ações, mesmo quando liderou a famosa Coluna Prestes. Um homem que pautou sua existência pela coerência, honestidade de princípios, lealdade ao país (é uma fake news da época, a frase a ele atribuída de que lutaria pela União Soviética contra o Brasil, numa hipotética guerra).

A famigerada, podemos dizer assim, hoje, “intentona comunista” foi um pequeno levante dentro do exército, em Natal, Recife e Rio de Janeiro, envolvendo meia dúzia de tenentes insatisfeitos com o regime de Getúlio, com quase nenhuma repercussão. A mídia, que sempre esteve nas mãos da direita, é que rotulou o movimento rebelde como “intentona”, uma palavra forte para um movimento fraco, mais uma jogada de marketing contra os comunistas, do que realmente qualquer ameaça ao governo ou aos latifundiários que em 64, juntamente com a embaixada dos Estados Unidos, financiaram o golpe militar. A esquerda brasileira – e vamos esclarecer: nunca houve movimento de extrema esquerda no país – pautou suas ações quase sempre no campo da luta pela defesa de igualdade de direitos em termos econômicos, sociais e humanos. E essa é toda a sua ideologia, mesmo quando, nos curtos períodos em que foi governo, através do Partido dos Trabalhadores. Se algum de seus líderes alguma vez pensou numa revolução nos moldes da cubana, por exemplo, nunca teve a ousadia de defender tal ideia, principalmente o assassínio e a exterminação de adversários, como a extrema direita tem pregado ultimamente, e não só pregado, mas já tendo realizado tal feito durante o regime militar e, também, durante a ditadura Vargas.

Temos, hoje, portanto, uma falsa polarização, no Brasil. Porque só há polarização quando temos oponentes de espectro totalmente opostos, como, por exemplo, uma direita neonazifascista versus uma esquerda bolchevista e revolucionária. Sim, temos uma direita hidrófoba, neonazifascista, racista, homofóbica, negacionista, extremamente anticomunista; uma extrema direita que berra slogans fascistas pelas ruas, com seus membros enrolados em bandeiras e vestidos de amarelo, estupidificados por uma pregação de princípios baseados em mentiras, em desconhecimento da História, em deturpação dos fatos. Não têm nenhum princípio ético, mas brandem a bíblia, que mal leem e que interpretam pelos olhos de seus pastores, como se esse livro contivesse não só toda a verdade histórica, mas principalmente toda a verdade. Mas a esquerda que se contrapõe a ela não é extremista, muito ao contrário, é extremamente democrática. E ética. Não consegue, em seu discurso, produzir e reproduzir o mesmo nível de ódio, de desinformação; não consegue inventar mentiras, distorcer os fatos e negar a História. E, por isso, tem grandes dificuldades para lidar com o mundo de fake news das redes sociais. Em termos de comunicação, ainda está no analógico, enquanto a extrema esquerda deita e rola no digital.

E aí está toda a dificuldade do enfrentamento das ideias radicais da extrema direita, porque só se combate um radicalismo com outro radicalismo, extremamente oposto. Quem, da direita, vai ter a ousadia ou a cara de pau de um Bolsonaro, de um Marçal, de erguer essa bandeira? E, principalmente, dominar o discurso imediatista das redes sociais e se igualar, em termos de comunicação, àquilo que atinge as mentes e os corações principalmente das novas gerações? E mais: quem vai conseguir destruir o discurso que os “empreendedores” que acham que tudo o que conseguiram foi pela “graça de deus” e não de um momento propício da economia de um governo de “esquerda”? Quem vai convencer o motoboy entregador de pizza que trabalha 14 horas por dia, correndo e morrendo no trânsito louco das capitais, de que, na verdade, ele não é um “empreendedor”, mas um trabalhador braçal sem nenhum direito trabalhista, simplesmente? Quem vai desfazer a mentira de que, porque ele é um PJ, sem carteira assinada, é dono de seu nariz e não tem patrão? Os novos escravos não sabem que são escravos. E isso precisa ser dito e repetido mil vezes, até que a verdade que parece mentira se torne verdade, ou seja, usar as mesmas armas de comunicação que a extrema direita tem sabido usar com maestria. Mas a esquerda não consegue sair do seu nicho de pregação tradicional, não consegue se modernizar!

Concluindo: a extrema direita vê em cada um que defende pautas sociais um leão que ameaça sua vida, suas propriedades, suas crenças, mas na verdade, o leão é apenas uma leoa (a “mulher do leão”, como conclui a letra da música citada como epígrafe). Uma leoa que defende sua prole, o povo, para lhe dar um pouco de dignidade, coisa que a extrema direita não conhece ou finge não conhecer, mergulhada em sua idiotia ideológica. E a leoa – a esquerda – cuida dos seus filhotes, mas não tem o domínio das mídias sociais e esperteza de cara de pau dos marqueteiros e influencers direitistas para divulgar isso de forma convincente.



(Ilustração: James Gilray: caricatura de 1791 mostrando radicais ingleses decapitando  o rei Jorge III do Reino Unido. Charles James Fox, o criador do sentido estrito do termo "radical", está segurando o machado).

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