abril 01, 2024

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DO BELO E O RACISMO

  

(Escultura de Leocares - séc. IV a.c.: Apolo Belvedere - foto de Pio Clementino)

(Escultura de Hans Bellmer: the doll, c.1936)


O belo é um conceito criado pela metafísica platônica, em que há entes absolutos para além da matéria. Portanto, se rejeitamos a metafísica, como causa de todas as estupidezes produzidas pela mente humana, como a ideia de eternidade da alma, devemos também rejeitar a busca de um conceito do que seja o belo, porque cairíamos na ideia absurda de que há um princípio original de todas as coisas, uma espécie de matriz transcendente que molda tudo quanto existe, num limbo imaterial e inacessível, a não ser através da palavra, da ideia, do pensamento, da imaginação, enfim.

Mas, a ideia do que seja belo, ou seja, a materialização do belo, ou do que se considera belo, tem origem, como quase todo o pensamento ocidental, nas concepções gregas baseadas na moral, na retidão, no que é bom (outro conceito metafísico), no retilíneo e harmônico, em termos matemáticos. Os templos gregos são o exemplo da ideia de perfeição (esta, mais um conceito metafísico), porque obedeciam a princípios arquitetônicos matemáticos, passíveis de serem medidos e suas medidas, relacionadas à geometria. Portanto, eram belos.

As estátuas gregas, representando deuses e heróis, seguem o mesmo padrão: linhas harmônicas, geometrizadas, passíveis de serem medidas e relacionadas à matemática, ou a fórmulas matemáticas. Portanto, eram belas.

Assim, o mundo grego que nos chegou através da arte, da literatura, do teatro etc. é todo ele moldado pela ideia da beleza absoluta, base do pensamento de seus filósofos, que buscavam a perfeição, ou tentavam traduzir em palavras e conceitos o ideal, o absoluto, o transcendente, enquanto seus artistas buscavam representar tudo isso em suas obras.

E foi esse modelo o que formatou a mentalidade ocidental e fixou na mente dos seres humanos deste lado do mundo a ideia de que o belo é passível de ser parametrizado, medido, entendido como oposto ao feio – um conceito metafísico oposto ao belo – determinado por nossos olhares e nossos paradigmas.

Assim, dizemos que é belo um dia de sol e é feio um dia de chuva; que é bela a rosa e é feio o espinho, misturando moral com beleza, estabelecendo novas categorias metafísicas absurdas, como o bem e o mal. Assim, dizemos que é belo o colear de um tigre e achamos feia a cara de um orangotango, sem nenhum critério que não seja a ideia de harmonização estabelecida e fixada em nossa mente pelos conceitos gregos de geometrização.

O barroquismo de uma floresta de cipós retorcidos, num dia de chuva, causa-nos arrepios de horror, porque ali não vemos a harmonia pré-concebida e também associamos essa liberdade de formas confusas como algo que pode conter o mal e, portanto, não é belo, mais uma vez misturando conceitos metafísicos em que o belo é bom (e o que é bom deve ser belo) e o que feio é mau (e o que é mau deve ser feio).

Esse olhar contaminado e formatado por uma metafísica da estética que nos diz o que é belo e o que é feio, baseada em padrões idealizados, permaneceu por meio milênio na mente do europeu cristão, que teve pouquíssimas oportunidades de contato civilizacional com outros povos, mesmo assim, quase que somente com povos orientais. O estranhamento entre os europeus e os orientais, por exemplo, tem raízes profundas não só na visão de corpos diferentes, mas também nas visões de mundo de origem cultural e, principalmente, religiosa. Não preciso, aqui, lembrar as guerras provocadas pelas cruzadas nem pela ocupação árabe da península ibérica. E esse estranhamento ocidente-oriente permanece até hoje.

Agora, imaginemos o estranhamento em relação aos povos das Américas recém-descobertas, no século XVI, e começamos a entender por que uma civilização – a europeia – destruiu ou tentou destruir outra civilização – a dos povos originários. E vamos ao exemplo máximo: o estranhamento do europeu em relação às etnias negras da África!

Vamos estacionar nosso pensamento por aqui, para fazermos um exercício de imaginação e de inversão de papéis. Imaginemos que a Grécia antiga, com todo o seu arcabouço filosófico, metafísico, artístico-literário etc. tivesse ocorrido não na Europa branca, mas no centro, bem no centro da África negra. Que Platão, Aristóteles e todos os demais filósofos, poetas, escultores, pintores, heróis e, principalmente, deuses (sim, deuses!) fossem pretos! Que a Vênus de Milo, por exemplo, tivesse nariz achatado, lábios grossos, cabelos encaracolados, bunda e peitos avantajados etc. Imaginou? Bem, não vou sugerir como seriam os trajos, os templos e tudo o mais. Deixo à imaginação de quem teve o beneplácito de chegar até aqui, na leitura dessas mal traçadas linhas.

Qual seria, hoje, o nosso ideal de beleza? O que seria belo, para nós, agora pensando não só genericamente, em elementos da natureza ou da capacidade humana de criação e de arte, mas em termos humanos?

Bem, não vou fazer comparações, nem levar o leitor a pensar em fulano ou fulana, em homens e mulheres que julgamos belos, porque cairíamos no tal racismo estrutural, se é que você me entende.

Quero terminar essa já longa reflexão, com esta ideia básica: nossos olhos acham feio tudo o que é diferente do que normalmente vemos, o que é uma grande, enorme, estupidez. Porque é essa a base de todo o nosso absurdo, pavoroso, ilógico e cruel – para todos – racismo estrutural. Infelizmente, isso é humano, demasiadamente humano e, como tal, fruto de uma mentalidade que, embora construída ao longo de muitos séculos, pode – e deve, sim – ser modificada, mesmo que isso leve tempo, muito tempo.

Mas, enquanto o tempo não se encarrega de mudar essa mentalidade, tenhamos, pelo menos e por enquanto, um pouquinho de lógica e de racionalidade: abramos nossos olhos e nossas mentes para todos os seres humanos e não procuremos neles o belo com o olhar preconceituoso, porque, na verdade são todos, sim, belos, belos sob outros padrões, outras perspectivas, outras visões de mundo e culturas. Procuremos no outro apenas o ser humano. Sempre. Que, temos certeza, o mundo será um pouco melhor.





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