Tomemos o período histórico
recente entre 1960 e 2000. Quarenta anos. Durante esse tempo, três presidentes
da República foram defenestrados. Um deles, João Goulart, era de esquerda e foi
afastado do poder por um golpe militar da direita mais hidrófoba desse País. Os
outros dois - Jânio e Collor - eram de direita e saíram por motivos diferentes,
em situações diferentes, mas eram ambos muito parecidos, como vamos ver nesta
tentativa de entender um pouco mais a política brasileira.
Jânio Quadros. Como político,
"nasceu" da oligarquia paulista. Venceu as eleições presidenciais com
o mote da vassoura, que ia varrer a corrupção e limpar o País. E venceu contra
um candidato moderado, da centroesquerda, Marechal Lott. Nem sei se posso
colocar o Marechal um pouco mais à esquerda do que no centro. Em todo caso, não
era o homem do empresariado, dos que tinham dinheiro e pretendiam continuar
fazendo a festa, depois do surto de desenvolvimento promovido por JK.
Por que Jânio renunciou, sete
meses depois?
Bem, ele já morreu e nunca
explicou direito o que o levou ao gesto estúpido. Por um motivo, para mim,
muito simples: não podia explicar, sem comprometer muita gente graúda. Porque,
na verdade, a renúncia foi uma tentativa de golpe. Pensava que voltaria nos
braços do povo - que nunca foi bobo, e não compactuou com as idiotices que ele
cometeu no seu breve governo - ou por obra e graça de militares apoiados pelo
dinheiro do capital - coisa que ainda não estava madura, naquele momento. Ou
seja, as Forças Armadas - que já possuíam um núcleo político de direita - ainda
não tinham o necessário motivo e o necessário apoio político, institucional e
financeiro para dar o golpe, e muito menos apoiar um civil. Os empresários que
devem ter-se comprometido com Jãnio compreenderam bem isso, e devem tê-lo
traído, uma traição com a promessa de recompensas futuras, principalmente
financeiras. Porque, em termos políticos, Jânio teve apenas uma recompensa: a
prefeitura de São Paulo, em 1985 (o que prova que a "elite"
paulistana é mesmo muito burra). E há também um outro fator: os empresários
comprometidos com Jânio eram ainda uma classe em formação, não tinham tanto
poder político (o golpe de 64 foi gestado e financiado pelos fazendeiros e
latifundiários e teve, claro, o apoio da classe empresarial, principalmente na
manutenção dos militares por vinte anos, quando eles, os empresários se
empoderaram, não só de dinheiro).
Por que Jânio perdeu a confiança
da direita endinheirada? Porque era
louco. E, sendo louco, era inteligente. Fazia coisas de sua própria cabeça.
Pensava um País à sua imagem e semelhança. Proibia rinhas de galo e biquínis,
coisas absolutamente absurdas, na visão das velhas raposas. Mas que davam
claros sinais de que seria ele, Jânio, indomável. E não confiável. Sua renúncia
deve ter sido articulada com a promessa de uma escada que lhe foi retirada em
seguida, deixando-o a ver navios. Como não podia falar nada, atribuiu-a a
"forças ocultas", expressão que, na verdade, foi cunhada pela imprensa,
ele usou "forças terríveis", para justificar seu gesto. Outra
hipótese para a renúncia pode ter sido um delírio messiânico, depois de se
recusar a dar o rumo ao governo que pretendiam as forças que o apoiaram. Suas
políticas - principalmente a externa e a econômica - não vinham agradando aos
setores conservadores. Enfim, Jânio tinha de ser descartado, mesmo com o risco
Jango, risco esse amenizado pela ausência do vice-presidente, que estava na
China e demorou para voltar, o que possibilitou articulações que, por um lado,
permitiram sua posse, por outro tentou limitar seus poderes, com a adoção
desastrada do parlamentarismo. O que veio a seguir todos sabem: os anos de chumbo,
após a deposição de Jango, um governo de esquerda.
Fernando Collor de Mello foi a
aposta da direita endinheirada, após o perído da restauração democrática,
depois do fracasso das políticas econômicas de José Sarney, um vice que devia
ter sido um vice de luxo de Tancredo Neves, morto antes da posse.
Seu governo durou mais do que o
do Jânio. Embora também seja louco. E porque é louco, é inteligente. Por isso,
também se recusou a fazer a "lição de casa", quando presidente.
Adotou políticas econômicas heterodoxas e extremamente instáveis e impopulares.
Tentou - e até obteve algum sucesso - uma segunda "abertura dos
portos", provocando a ira do empresariado que se acostumara a uma economia
fechada e a reservas de mercado para seus produtos. Tocou, então, numa velha
ferida: a falta de competitividade da indústria nacional frente aos
estrangeiros, uma marca do atraso e da burrice de nossas elites empresariais
até então (e, em parte, até hoje). Além disso, tinha um projeto próprio de
poder, o que levou ao governo um grupo paralelo de arrecadação, chefiado por
seu irmão, num processo de corrupção e pagamento de propinas nunca antes tão
escancarado. O ódio do povo - por causa de sua economia e da corrupção - e do
empresariado, por sua traição aos princípios de abertura econômica lenta e
gradual (como fora o processo de redemocratização), levaram-no à renúncia, para
não sofrer impeachment pelo Congresso Nacional.
Jânio e Collor. Ambos tiveram por
marca de suas campanhas políticas o combate à corrupção. Ambos eram tribunos
enlouquecidos e conseguiam mobilizar multidões, com uma retórica conservadora e
moralista. O primeiro não teve tempo para corromper-se, embora os sete meses de
governo lhe tenham propiciado um botim considerável, provavelmente advindo dos
empresários que o apoiaram e o traíram. O segundo já levava a corrupção em seu
DNA. Ambos tiveram projetos políticos ousados, para dizer o mínimo. Ambos eram
forças indomáveis, loucas e sem destino. Quase levaram o País ao desastre
total. Ambos irritaram a direita com seus projetos e suas políticas. Ambos
foram levados à renúncia. São os projetos frustrados da nossa velha e boa
direita calhorda, nesses quarenta anos.
Todos os demais presidentes da
república desse período, com exceção óbvia de João Goulart, incluindo os
militares, executaram ou tentaram executar políticas econômicas de favorecimento
das classes empresariais, sejam da indústria, do comércio ou do agronegócio.
Foram coniventes com o status quo de país de pouca abertura econômica para o
mundo, de proteção ao capital nacional, de incentivo a um crescimento econômico
capitalista e selvagem, com pouca ou nenhuma preocupação social. O
desenvolvimento era custeado por poucos e visava a poucos, principalmente
durante o regime militar. As desigualdades sociais eram tratadas como algo
contingencial e até necessário, para que o País crescesse e só depois o
"bolo seria distribuído", o que nunca acontecia, porque os que ganhavam
dinheiro com o crescimento não só embolsavam os lucros, como ainda queriam cada
vez mais. Então, o processo de distribuição de rendas caía no velho e
costumeiro círculo vicioso: só ganhava dinheiro quem tivesse dinheiro. E o povo
que se virasse, com as poucas oportunidades que lhe eram atribuídas, como
migalhas do banquete dos ricos, para usar a velha metáfora, tão velha quanto a
desigualdade aprofundada por todos esses governos, desde 1960 até o ano 2000 e tendo
mais dois anos, até 2002, como um rabicho desse tempo de desigualdades. Quando,
a partir desse ano, tudo começou a mudar. Mas, aí é outra história.
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