dezembro 06, 2010

A GUERRA DO RIO OU UM RIO DE GUERRAS?







Há coisas que me irritam. Frases feitas. Ou, pior: conceitos feitos. De encomenda.

Um deles: o “crime organizado” começou com a instrução dos presos políticos de conceitos de guerrilhas aos presos comuns, na época da ditadura.

Será?

Será que uns poucos intelectuais conseguiriam influenciar tanto assim a bandidagem? Bandido,que eu saiba, não tem ideologia. E guerra de guerrilha tem: se não os vietcongs não teriam derrotado o império estadunidense, com seus túneis, com seu conhecimento do território, com suas surpresas e emboscadas...

Bandido pensa em lucro imediato, não em conquistas posteriores. Portanto, essa história de “organização” só existe, entre a bandidagem, em termos de quadrilha: um grupo se une em torno de um “líder” (o mais esperto) e quem não seguir as regras – toscas e imediatistas – do grupo e, principalmente, do chefe, morre.

Além disso, a “organização” é mais fruto da sofisticação de meios que o mundo modernizado e globalizado oferece: tem que haver gente que entenda esse mundo especializado e cada vez mais especializado. O comércio de drogas, por exemplo, exige conhecimentos de línguas, de comércio exterior, de armamentos (cada dia mais sofisticados), de geografia, de informática etc. Então, as quadrilhas também se sofisticam, dentro de suas possibilidades. E se organizam.

E aí entra a minha segunda coisa que me irrita: “crime organizado”. Não existe. É invenção de quem tem o pensamento raso, imediatista e de comunicação instantânea. Nem a famigerada máfia é organizada. Suas quadrilhas ou “famílias”, sim. Organizam-se em torno de um “chefe” ou “babo” (para usar uma expressão em uso), ou “capo” ou “padrinho”, com leis próprias e regras de conduta: quem não as segue, é punido, ou melhor, morre. Não há segunda chance.

“Crime organizado” é ficção. De noticiário rasteiro. O que há são quadrilhas mais ou menos organizadas em torno de um líder. Com lutas internas e externas. O mais esperto mata o que “deu bobeira” e toma o “poder”, que é restrito a uma comunidade relativamente pequena: só se expande pelo terror, pela ameaça, por ter a arma mais poderosa ou ser aquele que mata mais os inimigos ou intimida mais a comunidade.

Mas seus chefes, ou líderes, cometem o erro da ganância ou do orgulho: arrotam seu poder (que é relativamente pequeno) como verdadeiros monarcas – julgam, condenam e matam ou absolvem com a mesma idiota pretensão de reis medievais que se julgavam “representantes de deus” na terra. Acabam, quase sempre, mortos: ou pela polícia ou por um de seus “súditos” (em “golpes de estado”) ou pelos inimigos que estão de olho em seu “território” ou “reino”, outro conceito que absorvem e tentam estabelecer. Na verdade, o “território” é ilusório e seus “súditos”, traidores ou descontentes, já que sabem que estão sob um jugo absolutista, capaz tanto de recompensá-los quanto de eliminá-los por motivos incompreensíveis.

Como as quadrilhas têm um inimigo comum – a polícia –, parece que se unem para combater esse inimigo comum. Na verdade, apenas parecem que se unem, porque, quando a situação aperta, é cada um por si. A união é falsa, ou só ocorre em momentos de crise, quando, então, as decisões tomadas são eivadas de motivação imediatista e, quase sempre, equivocadas, ou seja, sem visão de futuro.


As quadrilhas dos morros cariocas formam-se quase sempre em torno de um elemento comum: o tráfico. E as drogas só são um poderoso ponto de interesse porque têm mercado certo: a classe média, média alta e alta dos bairros da Zona Sul. Ou seja, o mercado determina a criação, organização e existência das quadrilhas. Se não houvesse mercado – e um mercado consumidor de alta capacidade – não haveria tantas quadrilhas e tantas lutas para conquistar e manter territórios que, na verdade, só são conquistados e mantidos por bandidos estúpidos, que querem usar a droga como poder não apenas econômico, mas também político ou territorial. Os verdadeiros criminosos ou “importadores” estão nos gabinetes simples e refrigerados de escritórios discretos e levam a vida de nababos sem chamar a atenção de ninguém. Sabem que seu poder só subsiste se se mantiverem à sombra, com os idiotas indo para a linha de frente do enfrentamento, lutando por poderes limitados de território, totalmente inúteis e sem sentido, se pensarmos em termos econômicos. O “tráfico do morro” é o boi de piranha de interesses muito mais altos e espertos, no mundo da alta bandidagem.

A grana que as quadrilhas de morro ganham transformam-se em motivo de ostentação fútil – casas com mil e um equipamentos, mulheres, muitas mulheres e ouro, muito outro, inutilmente pendurados nos corpos, como forma de atração sexual. Não saem, portanto, do morro, porque, se saírem, sabem que são presa fácil da polícia. Daí, a noção de território: é o território, ou seja, o entorno amedrontado e humilhado pelo poder das armas, a segurança do bandido de morro.

Armas! Outro ponto nevrálgico das quadrilhas: pretendem-se, todas elas, armar-se o mais possível, e nisso gastam boa parte do que ganham com a droga. Elas são essenciais para a intimidação não só dos moradores do “território ocupado”, mas também da polícia. Mas, com certeza, serão poucos os que sabem usar realmente o armamento mais sofisticado, que exige perícia e treinamento. O problema é como chegam ao morro: seu comércio, feito através das extensas fronteiras terrestres e marítimas do País, é um caso complicado de se resolver. Por mais apreensões que a Polícia Federal faça, ainda assim vale a pena, para o tráfico, porque o dinheiro é fácil, tentar contrabandear armamento pesado e sofisticado. Assim, acredito que os traficantes devam comprar uma quantidade bem maior de armas e contar com a sorte – já que uma boa parte é apreendida – para que elas cheguem até eles.

E a sociedade que se escandaliza com o armamento pesado dos bandidos tem, sim, o seu quinhão de contribuição para as armas do tráfico: quando, há alguns anos, debateu-se o desarmamento civil, essa mesma sociedade que hoje se sente ameaçada não concordou com a tese de proibição de fabricação e distribuição de armas no País. Armas que aqui são fabricadas passam a fronteira dos países vizinhos e voltam em forma de contrabando, para as mãos dos traficantes, enriquecendo e desenvolvendo, assim, uma indústria que emprega uma quantidade bem menor de pessoas do que apregoou anos atrás o seu poderoso lobby.

Assim como as armas são uma espécie de fetiche – manipulado pela propaganda da indústria armamentista que, tal qual a do cigarro, também enriquece e ganha milhões a custa da desgraça alheira – as drogas “inocentemente” consumidas pelas classes mais abastadas em suas festinhas de embalo são também um ponto intocável na questão da guerra ao tráfico.

Assim como todos aplaudem – muitos falsamente – o combate sistemático às quadrilhas dos morros e das favelas por esses brasis afora, deviam também exigir que se aplicassem pesados recursos na identificação, tratamento e cura dos milhares e milhares de usuários de drogas que as famílias desesperadas mantêm sob o manto da hipocrisia, sem terem coragem de assumir que financiam, sim, o tráfico de drogas e contribuem para o banho de sangue de bandidos e inocentes, nessa “guerra” sem inimigos declarados que a própria sociedade exige que se faça.

Portanto, tenhamos coragem de assumir que não há apenas uma guerra no Rio, mas rios de combates que acontecem em todos os lugares, em todos os lares onde haja viciados – inocentes ou não – mas principalmente indivíduos que fumam, injetam, consomem não somente drogas – maconha, cocaína, crack, anfetaminas, heroína, ecstasy etc. – mas também sangue e vida de milhares de vítimas – homens, mulheres e crianças dos morros e de suas próprias famílias – das quadrilhas de traficantes que infestam a sociedade e que só estão “organizadas” na mídia: são só um bando de indivíduos sem qualificação a querer se aproveitar de uma situação que nós mesmos, e aí, sim, a chamada “sociedade organizada” temos criado, com nossa hipocrisia no trato da dependência química.

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