fevereiro 21, 2025

EU, CRÍTICO LITERÁRIO, COMENTO, MAIS UMA VEZ, TORTO ARADO, DE ITAMAR VIEIRA JÚNIOR

 

(A capa do livro e a foto original, do italiano Giovanni Marrozzini)



Formado em Letras pela USP, é claro que tenho uma visão diferente do leitor comum ao comentar um livro que acabei de ler, como faço no meu blog TRAPICHE DA LEITURA. Lá, porém, sempre me coloco na posição de leitor, nunca de crítico ou de expert em Literatura. Ou seja, não faço crítica literária. Aliás, tenho uma certa ojeriza a críticos; não a todos, óbvio. Talvez venha do fato de que me incomodava, e muito, quando estudava teatro, lia que grandes dramaturgos e diretores e atores e atrizes estadunidenses da primeira metade do século passado, quando estreavam uma peça, passavam uma noite de cão, esperando a crítica de determinados jornais no dia seguinte. Essa crítica podia determinar o sucesso ou o fracasso do espetáculo, pois havia críticos crudelíssimos que, por qualquer motivo, demoliam uma peça, a direção ou uma atuação que não lhes agradasse, esquecendo-se de que por trás de um espetáculo teatral há dezenas de vidas que nela empregaram o seu talento, o seu trabalho, enfim. Por pior que seja, nenhum trabalho artístico merece a depreciação pura e simples de quem quer seja que se coloque na posição de um deus furibundo e onisciente: se não gostou, não fale nada, não destrua – às vezes, algo que parece ruim para um pode ser bom para outro; ou o ruim hoje poderá ser considerado bom no futuro. Caso contrário, se for mesmo ruim, que o público decida. Sem a influência da maldade de um crítico que se considera dono da verdade.

Enfim, não sou crítico. E, em geral, não gosto de críticos. Porém (e há sempre um “porém”), quando uma crítica é construtiva, ou seja, aponta problemas que podem ser corrigidos, sem rancor, sem sarcasmos e sem cutucar de forma cruel a ferida, até gosto de ler, pois me leva – e ao leitor – a um refinamento do gosto, mesmo que não concordemos – eu ou o leitor.

Tudo isso para pedir licença aos eventuais leitores deste texto para demonstrar, com um exemplo, tudo o que acabei de dizer, refazendo a crítica a um livro que li não faz muito tempo e de gostei, mas cuja estrutura me incomodou um pouco. Refiro-me a TORTO ARADO, de Itamar Vieira Júnior [1], cuja resenha pode ser lida no referido blog TRAPICHE DA LEITURA [2].

Itamar Vieira Júnior conta uma história muito interessante. E escreve bem. Mas comete, na minha opinião, dois erros básicos, que escritores experientes não cometem.

Explico: quando um autor opta por um narrador onisciente, ele pode esquadrinhar a mente das personagens, dizer-nos o que elas pensam e sentem; pode dar-lhes a palavra em várias formas de discurso: direto (quando reproduz a fala da personagem), indireto (quando nos traduz a fala da personagem) e indireto-livre (quando a fala da personagem se mistura à do narrador), mas sempre respeitando a forma de falar de cada um, já que a fala, a maneira de se expressar, também reflete a visão de mundo da personagem e cada uma tem uma visão diferente, logo tem também um modo de falar diferente, e isso é tratado com muito cuidado por um bom escritor. Quando ele opta por um narrador-personagem, esse cuidado de linguagem atinge altos graus de cuidados, porque a maneira de narrar e de contar e de se expressar vai ser conformada à visão de mundo, ao pensamento e às idiossincrasias linguísticas do narrador-personagem. Vamos ver o mundo e acompanhar a narrativa pelos seus olhos, com seus defeitos e qualidades, com seus erros e acertos de julgamento.

Outro ponto importante: se um escritor nos leva para um universo regional, não bastam as referências culturais, os usos e costumes dessa região: é necessário (e bons escritores cuidam muito bem disso) usar também termos, expressões e o linguajar típico da região na fala das personagens e, às vezes, até mesmo na narrativa de um narrador onisciente, mas principalmente na fala do narrador-personagem. Nem preciso citar Guimarães Rosa, que é um mestre na arte de nos levar para o mundo que ele descreve através da linguagem, criada e recriada pelo escritor. Dou outro exemplo: FOGO MORTO, de José Lins do Rego {3]. Já o título nos remete a um regionalismo, que é explicado ao longo do livro, mas que contém uma metáfora de toda uma situação complexa: quando um engenho entra em fogo morto, ou seja, para de produzir a cana, os reflexos sociais são imensos, já que os explorados trabalhadores deixam de ganhar a miséria de um salário de fome e se tornam ainda mais miseráveis. Às vezes, por injunções econômicas regionais, nacionais e até internacionais (um país despeja no comércio mundial toneladas de açúcar mais barato, talvez produzido por mão de obra escrava, e faz baixar os preços na bolsa de valores de Nova Iorque e o efeito cascata chega aos miseráveis trabalhadores dos engenhos nordestinos). Então, vemos a força de uma expressão, dentro de uma obra literária. E a força do regionalismo. E mais: deve o escritor regionalista atentar para as expressões típicas do grupo social a que se refere, mesmo dentro de um padrão regionalista. Por exemplo: num quilombo de Alagoas, seus membros não só usam a linguagem típica do seu estado, mas também palavras e expressões típicas de sua cultura, do seu microuniverso, diferentes das palavras e expressões de quilombolas do estado de São Paulo, que também teriam o reflexo do linguajar estadual em sua fala, mas teriam termos específicos de seu povoado.

Voltemos a Itamar Vieira Júnior. Repito que li o romance com prazer e gostei dele. Mas, literariamente, tem dois problemas sérios (nem vou dizer que são defeitos).

Primeiro, os narradores. Ao optar por narradores-personagens, principalmente nas duas primeiras partes do livro, as duas irmãs deveriam, cada uma em seu momento, ter estilos diferentes de narrativa, já que, embora irmãs, têm visão de mundo diferente, histórico de vida diferente, ou seja, não podia o escritor ter-se descuidado ao ponto de que não diferenciarmos o discurso de uma do discurso da outra: ambos mantêm o mesmo jeito de narrar, o do escritor, e não exatamente o das personagens. Um escritor experiente teria o cuidado de tecer em termos linguísticos dois discursos diferentes, cada um com seu jeito de falar, com aquilo que em linguística se chama de idioleto (o idioma no estilo individualizado).

Segundo, o romance de Itamar Vieria Júnior é uma narrativa regional e, mais do que regional, de um microuniverso específico do interior da Bahia. No entanto, pouco, muito pouco do linguajar desse mundo aflora na narrativa ou na fala das personagens. Os usos e costumes dessa gente não se refletem no léxico que, diante da visão que nos oferece o autor, são bastante ricos, mas o vocabulário que ele, o autor, usa é praticamente o de um leitor culto de qualquer cidade do país.

São esses “descuidos” literários de um autor principiante, embora de grande potência narrativa. Minha crítica tem o sentido de observar, para futuros ficcionistas que por acaso me leiam, que não basta boa vontade e habilidade de escrever, para produzir uma obra de arte. Dizia Chico de Assis, em suas aulas sobre dramaturgia, que é preciso sempre buscar a melhor forma. E que há uma melhor forma para tudo. E eu acrescento que forma e conteúdo são indissoluvelmente intricados e que não se pode desprezar a forma em detrimento do conteúdo ou vice-versa. As grades obras artísticas são aquelas que obtiveram o equilíbrio entre forma e conteúdo, ou seja, seus autores buscaram sua melhor forma e, através dessa melhor forma, conseguiram transmitir mensagens importantes para nós.

Assim, eu repito: TORTO ARADO é uma obra rara na literatura brasileira atual. Deve ser lido, discutido e apreciado em todas as rodas e por todos que tiverem o privilégio de tê-lo em mãos, seja o livro físico ou digital. Mas, tem esses dois pecadilhos: o de não utilizar a melhor forma no trato da linguagem dos narradores e de não incorporar, linguisticamente, os regionalismos das personagens que ele delineia tão bem. É um bom livro, bom de ler, mas não é uma obra prima. Uma pena.


Notas:

[1] Editora Todavia, 2019; 264 páginas.

[2] 

[3] J. Olympio, 1943; 386 páginas.

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