agosto 26, 2025

MOTOCICLETAS SÃO UM MAL NECESSÁRIO OU APENAS UM MAL? OU: COMO SE CRIARAM AS BESTAS-FERAS




Motocicleta: no futuro, esse veículo será um item de destaque no que eu chamo de “museu da estupidez humana”.

Sim, podem me xingar, podem dizer o que quiserem contra essa afirmação, mas não consigo considerar que seja lógico que um ser humano dotado de racionalidade se sente sobre um motor de não sei quantas cilindradas de potência, equilibrando-se em duas rodas, e saia por aí a 60 quilômetros por hora (velocidade em que nenhum motociclista anda, não é?), em estradas e ruas cheias de obstáculos, de buracos, sob chuva, no meio do trânsito etc. etc. etc.

O mínimo que se pode dizer é: todo motociclista é candidato a uma queda, que vai ocorrer mais cedo ou mais tarde. E uma queda de moto é risco de machucado muito feio. Imagine, então, uma batida contra qualquer outro veículo!

Acidentes de moto, por mais simples que sejam, quase sempre deixam sequelas. Quando não matam o condutor da moto!

Só dois números, para não me alongar: de janeiro a junho de 2025, morreram na capital paulista 219 motociclistas. No Estado de São Paulo, foram 1.329 mortes, no mesmo período.

Agora, imaginem quantos se feriram, quantos ocuparam leitos de hospital, quantos fizeram ou estão fazem fisioterapia para recuperação, quantos vão ficar com sequelas para sempre... E quantos dias de trabalho foram perdidos!

Tudo isso pago pelo contribuinte.

Por que há tantos acidentes de moto? A resposta – talvez não a resposta definitiva – está neta crônica publicada em 4 de julho de 2001, portanto há 24 anos!!!

Seu autor: Mauro Chaves, jornalista, advogado, escritor e produtor cultural. Mauro faleceu em 10 de fevereiro de 2011, vítima de complicações respiratórias e renais, aos 69 anos, no Hospital Bandeirantes, em São Paulo. Deixou inúmeras crônicas publicadas no jornal O Estado de São Paulo.

Publico-a aqui como o meu protesto contra a existência das bestas-feras que matam e morrem no trânsito, pelo país afora:



COMO SE CRIARAM AS BESTAS-FERAS



Dispunha o artigo 56 do texto original do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503, de 23/9/97): "É proibida ao condutor de motocicletas, motonetas e ciclomotores a passagem entre veículos de filas adjacentes ou entre a calçada e veículos de fila adjacente a ela." Esse dispositivo repetia uma restrição comum ao trânsito de motocicletas nos países civilizados, expressa nos dizeres: "Riding between lanes prohibited."

Traduzia, acima de tudo, a tendência moderna e universal de fazer prevalecer sempre, nas disputas do espaço público urbano, a segurança de todos sobre a comodidade de alguns, e o interesse coletivo sobre o individual.

Ao vetar o artigo 56 do código, aceitando a justificativa, absolutamente falsa, de seu ministro da Justiça de então - Íris Rezende - no sentido de que esse tipo de "agilidade de deslocamento" das motos, entre os carros, era regra geral no mundo inteiro (quando, como veremos, na realidade é exatamente o oposto), o presidente Fernando Henrique Cardoso criou, num curto espaço de tempo (quatro anos), uma categoria de cidadãos que se julga dona absoluta, erga omnes, de caminhos "virtuais" indefiníveis, variáveis, balizados apenas por suas próprias destrezas e ousadias - coisa que não existe em nenhum país civilizado do mundo.

É claro que a essa categoria não pertencem apenas os jovens office-boys motorizados, chamados motoboys - na verdade, as maiores vítimas, pela imprudência juvenil e pela deseducação, desse perigoso "privilégio", que têm levado à multiplicação de acidentes no trânsito. Eles são até minoria, dentro de um contingente muito maior de motociclistas e/ou motoqueiros de várias profissões e todas as classes sociais, os quais se deseducaram em seu relacionamento com o próximo no espaço público - pois é isso o que faz a permissividade legal acoplada à impunidade endêmica. Atribuir esse desrespeito (que não se restringe a quebrar espelhinhos retrovisores) à "ganância" dos que encomendam serviços aos motoboys ou à "pressa" da vida contemporânea é bobagem clicheresca semelhante à de considerar a violência fruto exclusivo da pobreza. A "pressa" nos negócios não implica, necessariamente, o desrespeito dos (ou aos) cidadãos - em qualquer lugar do mundo.

A real causa disso - ou o berçário das bestas-feras - foi a irresponsabilidade lobística, disfarçada, contra o artigo 56, que se escondeu muito bem durante toda a tramitação do projeto de lei do código, no Congresso, de 1993 a 1997, para que, de mansinho, se chegasse ao surpreendente veto (certamente num dos momentos de apagão mental presidencial). Caso esse lobby "secreto" (como as motos que surgem de onde o pedestre menos espera...) se tivesse manifestado antes, nas comissões do Congresso ou no plenário, poderia ter sido contestado com o simples levantamento da legislação de outros países. E teria ficado claro, para o presidente da República, que, especialmente nas grandes cidades, como São Paulo, onde a disputa pelo espaço de locomoção - tornado exíguo pelo excesso de veículos, por deficiências do transporte coletivo e consequentes congestionamentos - pode chegar a acirramentos insuportáveis, o artigo 56 era parte indispensável e indissociável de um longo processo educativo e disciplinador de comportamento no trânsito, justamente o que o moderno Código de Trânsito Brasileiro, inspirado na melhor legislação internacional, pretendia conseguir.

Só para mencionar alguns exemplos: dispõe a lei espanhola (Real Decreto Legislativo 339/1990, artigo13) que esses veículos circularão, obrigatoriamente, "por la derecha y lo más cerca posible del borde de la calzada, manteniendo la separación lateral suficiente para realizar el cruze con seguridad". No mesmo sentido, a lei italiana (Codice Della Strada, artigo 143) determina que "deveno circolare sulla parte destra della carreggiata e in prossimità del margine destro della medesima, anche quando la strada è libera". A portuguesa (Decreto Lei 114/94) enfatiza que só poderão circular "pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes". A francesa (Code de la Route, artigo R. 4-1) estabelece com rigor, sem privilegiar veículos de que número de rodas for, que, "les conducteurs doivent rester dans leur file". No Canadá e em Estados norte-americanos, as regras variam em torno da citada norma para motos: "proibida a circulação entre as filas de carros" (riding beetwen lanes prohibited). E, na Inglaterra, o melhor depoimento a esse respeito vem de nosso colega de editoriais do Estadão, o motociclista Marco Antônio Rocha, que de tal forma se acostumou, em Londres, à proibição de andar entre os carros que, no Brasil, faz a mesma coisa: espera a vez nos semáforos, na fila, como se estivesse num carro - e não se sente nem um pouco prejudicado por essa corriqueira civilidade.

Em razão de meu artigo anterior sobre o assunto (Impuníveis bestas-feras, 16/6, A2), recebi grande quantidade de e-mails de pessoas que se sentiam literalmente aterrorizadas ante reações violentas, desproporcionais, de grupos de motoqueiros, subitamente formados, porque um motorista não conseguiu deixar de esbarrar numa moto que "costurava" - todos os veículos têm seus pontos cegos. Foram depoimentos impressionantes, que falavam de espancamentos e de quase-linchamentos. Mas também recebi outros e-mails, de alguns grupos que pareciam bem-organizados e interligados (nada que ver com motoboys), cujo traço comum era a linguagem intimidatória. Por exemplo, um engenheiro da Volkswagen (de nome Ralf G. Theil) usou o e-mail da prestigiosa montadora para avisar que meu "infeliz artigo" poderia acarretar-me "processo por calúnia, difamação e preconceito", e me fazer perder o "trabalho bem remunerado no digno veículo de comunicação". No mesmo sentido, outros me "exigiram" uma rápida "retratação". Como se vê, é a mesma mentalidade dos que, talvez antes, até fossem pacatos e respeitadores cidadãos, mas, depois de "contemplados" com um descabido privilégio, e vendo-o contestado, reagem da mesma forma com que "argumentam", no trânsito, os que dão chutes nas latarias dos carros e espancam - sempre enturmados - quem ouse atrapalhar suas "vias variáveis".

Não haverá ninguém - no governo ou no Congresso - disposto a enfrentar o "lobby secreto" e acabar de vez com essa exuberante demonstração de subdesenvolvimento - social, comportamental e mental?