Já não se discute se houve ou não
golpe no País. Está mais do que claro e provado que a balela do “respeito à
Constituição” serviu de escudo para uma das mais bem tramadas conspirações da
direita hidrófoba do Brasil, para nos transformar, em pleno século XXI, na
vergonha do mundo, numa nova “república de bananas”, onde por qualquer motivo
se dá um golpe de estado.
Também não é necessário voltar às
causas do golpe: o governo Dilma Rousseff irritou profundamente uma certa classe
financeira, que se rebelou, e é claro, financiou o golpe, através de uma
sórdida campanha na mídia que sempre foi golpista, nas mãos das famílias de
extrema direita que a dominam e zombam de palavras, como as da atual
presidenta, sim, presidenta, do STF, a bradar por respeito à “liberdade de
imprensa”, como se isso existisse por essas plagas. Sim, há liberdade de
imprensa para a grande mídia, mas não para os jornalistas que nela trabalham.
Há “liberdade de imprensa”, não de opinião. E não existe liberdade de imprensa,
quando qualquer mídia alternativa, que não viva à sombra ou das sobras das
grandes famílias dominadoras, não consiga sobreviver, para veicular opiniões
diversas daquelas que é consagrada e oficializada por essas famílias.
O pretexto para o “golpe
constitucional” (Ulysses Guimarães que, com todos os seus defeitos, não era
golpista, nunca sonharia que sua Constituição Cidadã serviria um dia de escudo
para tal canalhice, deve estar se remoendo, onde quer que esteja) é pífio e não
resiste à lógica mais elementar. No entanto, o golpe foi aprovado por um
Congresso vendido e comprado a peso de milhões, pagos, em primeira instância
pela FIESP e demais congêneres, e, em segunda instância, pelo títere que se
senta hoje na cadeira presidencial, através de medidas econômicas de interesse
dos golpistas e distribuição de benesses a estados e municípios, através dos
deputados e senadores que apoiaram o golpe. Uma das mais tristes páginas de
nossa história, com absoluta certeza.
Mas isso são águas passadas. O
que eu quero mesmo falar é sobre um certo raciocínio que vigora entre muitas
pessoas de esquerda ou ditas de esquerda. E abro um parêntese para uma crítica
severa a movimentos, partidos, associações e quejandas que se dizem de
esquerda, mas que criticaram ou criticam posturas do partido que esteve no
poder nos últimos dez anos, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores. Primeiro,
lembrar que o PT obteve vitórias históricas e significativas em todos os
terrenos políticos, econômicos e sociais, algo absolutamente notável, num País
dominado pelo conservadorismo, doutrinado por entidades conservadoras, enganado
por mídias conservadoras, o que o habilita a ter todo o respeito possível de
quaisquer grupos, grupelhos, partidos e organizações de esquerda não só do
Brasil como de todo o mundo. Segundo, lembrar que seu líder máximo, Lula, tem o
respeito e admiração de praticamente todos os países, por sua obra de resgate
da pobreza, por suas posições moderadas e conciliadoras e por sua capacidade
não só de realizar, mas de aglutinar através do diálogo forças e ideias
diferentes e até contraditórias, conseguindo, com isso, a tal governabilidade
que a Constituição Cidadã deixou como uma bomba de efeito retardado para todos
os presidentes. Portanto, quaisquer que sejam as ideologias que estejam no
espectro oposto ao direitismo arraigado de PSDB, DEM e demais asseclas, a
formar uma quadrilha aguerrida de defensores do liberalismo econômico e até do
capitalismo mais selvagem, advirto que críticas públicas ao PT, a Lula ou a
Dilma, tendo ou não razão, mesmo que consistentes ou baseadas apenas em
teorias, só servem para divertir a direita e aprofundar divergências que não
levam a nada. São estúpidas manifestações de inveja ou de incapacidade de
perceber e ler corretamente o contexto e as consequências do que isso pode
trazer. O PT, com todos os seus erros e acertos, não está acima de críticas,
entendam bem. O que eu quero dizer é que não pode haver divisões em momentos de
crise. O que eu quero dizer é que é burrice tentar buscar no PT e no governo
Dilma as razões para o golpe. E entro, agora, finalmente, no cerne da questão
deste texto: a estupidez de culpar a vítima pelo ato criminoso do outro.
Sim, exatamente isso. Busca-se,
em alguns textos e comentários que se leem e se ouvem por aí, dizer que a
presidenta Dilma é, por exemplo, muito radical em suas posições, tanto no
aspecto político quanto no econômico. Que ela cutucou a onça com a vara curta.
Que provocou o mercado com medidas que irritaram os financistas e os ditos
rentistas que vivem do poder dos juros altíssimos. Que ela provocou a fera do Norte,
ao se aliar aos BRICS e a países como a Venezuela e a Argentina de Cristina
Kirchner (outra que sofreu um “golpe eleitoral”, por suas posições). Que
irritou ainda mais o governo estadunidense ao criar com os demais países dos
BRICS um novo banco de financiamento internacional e pregar a futura
substituição do dólar por uma nova moeda, o que significa pregar uma nova ordem
mundial de comércio. Enfim, que a presidenta Dilma é que foi culpada do golpe
que sofreu. Isso é o mesmo que criminalizar a vítima de estupro, porque
provocou o estuprador. Constitui um dos maiores absurdos de qualquer tipo de
pensamento, seja de direita ou de esquerda, mas torna-se ainda mais assustador
quando vem de pessoas que se dizem de esquerda.
O mundo, meus senhores e
senhoras, tem sido dominado há séculos por um capitalismo que alterna a
selvageria econômica com a selvageria das armas, para saquear e destruir
nações, matar milhões e milhões de pessoas e jogar outras tantas na vala mais
cruel da miséria, da fome, da humilhação. Palavras corteses, gestos de boa
vontade, pregações e lutas pontuais têm-se travado em todos os cantos do
planeta, mas são plumas ao vento, que pouco têm arranhado a couraça
paquidérmica dos capitalistas que dominam o mundo. O único temor desses capitalistas
é a pregação radical através do empoderamento de pessoas como Chaves e seu
sucessor, Maduro, como Kirchner, Dilma, Castro, Morales, Mujica e tantos outros
pelo mundo afora, não importando o tamanho de seus países. Essas pessoas, os
radicais de esquerda de todo o mundo, mesmo aqueles que nenhum poder possuem
que não seja a força de suas palavras, são necessárias para dar um pouco de
equilíbrio à estupidez capitalista. Eles, realmente, quase nunca são bem-sucedidos
em suas empresas, mas incomodam os capitalistas pela grandeza moral de suas
ações ou de suas palavras. E isso são sementes que podem gerar movimentos populares,
quando o desespero bate à porta dos cidadãos oprimidos, que se lembram dessas
pessoas e repetem as palavras dessas pessoas e tomam os exemplos dessas pessoas
como bússola para suas tentativas, frustradas ou vencedoras, de sair da miséria
e conquistar uma vida mais digna, menos humilhante.